segunda-feira, 29 de março de 2021

sobre a morte e os sentidos

eu não iria escrever hoje, mas a verdade é que nunca sei quando vou querer. às vezes penso em algumas coisas que me transbordam e sei que elas só fariam algum sentido se eu as escrevesse. se fazem sentido ou não quando viram palavras, não posso afirmar com certeza - aliás, a certeza não tem feito muito parte do meu vocabulário e talvez isso seja bom, não sei é só o que sei; que não sei de nada. não saber pode parecer libertador por um lado, mas por outro é só desespero. ando sobre a linha que separa uma coisa da outra. sinto as duas ao mesmo tempo, mas ainda consigo distingui-las, o que causa um pesar na liberdade e uma leveza no desespero. a vida fica agridoce, mas acho que ela é assim mesmo a maior parte do tempo.

não tinha colocado os pés para fora de casa hoje, até que os cigarros acabaram. eles são um grande motivador de procura da rua. lá vou eu então. satisfeita em ir de livre vontade buscar por algo que acaba comigo. até quando? eu digo que serei uma pessoa melhor, mas continuo comendo cigarros. o curto passeio pela noite é gostoso. o clima está agradável depois da chuva e, na volta, sinto uma vontade passageira de ir ao cemitério, mas desisto porque já me surgia a vontade de estar aqui, escrevendo.

penso na morte e daí percebo que penso nela todos os dias e isso não é ruim. penso que preciso fazer um testamento vital porque as pessoas só escolhem quem vai ficar com o quê no caso da morte, enquanto estão vivas e, como ela tem nos rondado tão corriqueiramente, acho que é acertado pensar nos seus detalhes. ainda vou escrever algo elaborado e minucioso. um inventário de coisas que significam algo para mim e, bom, isso não quer dizer que quem continuar vivo depois de mim vai querer as minhas quinquilharias, mas é porque não quero ser esquecida, quero continuar viva mesmo depois de morta e só consigo isso se as pessoas se lembrarem de mim.

alguns pontos mais amplos: quero doar meus órgãos, o que for possível - não sei o quão estragada estarei quando ela chegar; quero ser cremada, mas ainda não sei que destino quero que deem às minhas cinzas... não sei se quero ficar na estante da sala, se quero ser dividida entre entes queridos, se quero ser jogada no mar ou em algum lugar bem bonito... pensando agora, não sei se tenho um lugar preferido onde gostaria de ter minhas cinzas espalhadas... é algo a se pensar. quero criar uma playlist com as minhas músicas favoritas para que sejam tocadas no meu velório. quero deixar uma grana reservada só para os comes e bebes desse dia. não quero ser cremada na pressa, no mesmo dia, nada disso! quero ser celebrada. quero a galera comendo pizza e dizendo enquanto choram: a Karla adorava pizza! =~~ quero ver a galera enchendo o caveirão de álcool e falando: vou sentir falta dela... =~~ quero ver a galera comendo um pudim de leite e entre uma colherada e outra reclamar: o pudim que a Karla fazia era melhor do que esse =~~ vocês vão chorar porque é claro que uma pessoa encantadora como eu fará muita falta ao planeta, mas eu quero que chorem enquanto comemoram o fato de eu ter existido um dia, sabe?

por favor, não me interpretem mal; eu não quero morrer, mas já que esse é o destino que espera por todos nós, quero que a minha despedida seja feita do meu jeito e acho que todo mundo deveria pensar nisso também, porque de alguma forma dá um norte pra quem fica e como a morte em si já é tão dura e triste, como a perda abrupta de quem a gente ama já é foda o bastante, fazer o que a pessoa queria é um gesto também de carinho, vocês não acham? eu me esqueço de que estou falando comigo mesma, mas todas as minhas inúmeras moradoras concordam comigo e isso basta.

no fim de semana passado fomos assistir ao sol nascer na praia. a última vez que tinha feito isso foi no dia do meu aniversário no ano passado, e o sol sorriu lindamente comemorando o meu nascimento, mas era um dia frio. no domingo, quando fomos, havia chovido na noite anterior e o dia que nascia estava nebuloso no horizonte. o clima estava deliciosamente ameno, quase abafado, em um início de outono. o sol não brilhou em plenitude porque as nuvens o encobriram, mas indomável que ele é, surgiu alaranjado como um olho que pisca faiscante no céu, lindo. deus é o sol e isso é uma outra conversa. como o clima estava bom, fui checar a temperatura da água que, como eu havia imaginado, estava ótima! quase morna, propícia. o mar estava do jeito que é, falando pelas ondas, com a água transparente, mas salpicado de pequenas algas. ali ficamos por um tempo, cortando as ondas, sendo levemente arrastados, mergulhando e engolindo água em momentos desavisados. ficamos por tempo o bastante para a água entrar nos ouvidos, fazer arder as narinas e começar a assar os lábios com o seu sal.

parece que quanto mais pueril, mais significativo é o momento. ir à praia e tomar um banho de mar é das coisas mais satisfatórias que pode haver pra mim. é em ocasiões como essa que coloco mais um tijolinho no muro de sentidos da vida, da minha vida. isso é o que faz sentido, estar ali, assim como agora estou aqui, fazendo registro, querendo que toda a experiência caiba no que escrevo, mas não dá. a gente vive a experiência e puf! - já foi. as minúcias evanescem, mas a sensação permanece e talvez isso seja o suficiente para manter o sentido aceso, válido, quente e possível.

segunda-feira, 22 de março de 2021

sobre não haver garantias

joga fora o que tinha escrito antes, apaga. tudo confuso, emaranhado. é complicado explicar a ansiedade que não é a mesma da pessoa que vive em constante estado de alerta, não é disso que tô falando. não acho que vou infartar ou morrer, mas meu coração está aos saltos dentro do peito. o estômago congelado, difícil de ligar os pontos entre as vísceras. não estão concatenando as sensações. odeio não conseguir expressar. - fala! - eu penso, mas não sei o que dizer. oscilo entre a aflição e um breve estado de plenitude. não sei se o chão se abriu sob os meus pés ou se fui eu que subi em um altíssimo prédio e me joguei, mas sinto que estou em queda livre. não sei quão perto estou de chegar ao chão de novo, mas sinto algum conforto de saber que não posso ultrapassá-lo uma vez que nele esteja; esborrachada talvez.

quem sabe seja sempre como um passeio em uma montanha-russa. você vê o brinquedo no parque e ele parece ser o mais excitante entre todos. todas as subidas, descidas, loopings e curvas. você, então, entra na fila e descobre que ela é grande, exige espera, paciência e, enquanto sua vez não chega, você fantasia e já sente toda a sorte de reviravoltas na barriga. quando você percebe que é o próximo, pode pensar em desistir da aventura ou pode escolher sentar no primeiro carrinho. vai da coragem do passageiro. enquanto você sobe bem devagar e protegido em seu assento, pensa que nunca deveria ter sentado nele, na medida em que se vê cada vez mais distante de onde seus pés pisam. eu não falei, mas nessa montanha-russa, seus pés estão suspensos; você flutua e não sabe dizer se isso é bom ou não. 

a subida é lenta e gradual e você quase para quando chega no ponto mais alto, quando em um milésimo de segundo, pensa: - hm, acho que poderia ficar aqui mesmo, não quero ir adiante e, apesar de muito alto, aqui não parece tão aterrorizante... antes que finalize a linha de raciocínio, você é lançado trilhos abaixo, em toda a velocidade, ao mesmo tempo em que tem a sensação de morte e de desespero, da total falta de controle porque você só está ali - não há como fugir e tudo, tudo, tudo e qualquer coisa pode acontecer, inclusive nada. quando você consegue se entregar às engrenagens do brinquedo é que entra na brincadeira, é que se satisfaz com ela. só quando você entende que está tudo bem é que consegue gozar e aproveitar o passeio, e é só quando o passeio termina que você percebe que poderia fazê-lo de novo, mais vezes, se seu coração aguentar. 

montanhas-russas têm um risco calculado; são seguras. é fácil quando você sabe que mesmo sentindo todas as emoções ali, você vai sair inteiro no final das contas. a parte não divertida da vida é saber que andamos em montanhas-russas que foram construídas por outras pessoas quaisquer. ninguém é especialista em montanhas-russas. na vida, vemos os parques de todo mundo, andamos em carrosséis sem graça nenhuma; dirigimos carrinhos-de-choque, nos assustamos nos trens-fantasmas, nos empapuçamos com algodão-doce e maçãs-do-amor, mas o que a gente quer mesmo é dar uma volta na montanha-russa. a grande questão é que não há garantia de nada. se você vai chegar intacto no final do passeio, só saberá depois que ele começar. 

segunda-feira, 8 de março de 2021

sobre não ter mais desculpas

quando eu era criança, lá pelos nove anos, eu era bem ativa nas brincadeiras da escola. adorava correr! a gente brincava de pega-pega e tinha até uma modalidade muito peculiar, acho que criada por mim mesma: elegia um colega de sala como Jason - o Vorhees, com a máscara e o facão, dos filmes, sabe? - e a brincadeira consistia em eu sair correndo gritando por socorro porque o Jason queria me matar. corria em círculos em volta da escola, desesperada... ah, a infância, essa época de ouro em nossa vidas! jogava queimada, brincava de cabra-cega, de esconder... até que ali pelos dez anos, tive uma crise de falta de ar na casa da Luiza, isso nunca tinha acontecido antes. Minha mãe me levou no doutor Kleber e fui diagnosticada com asma. nessa época não usava bombinha nem nada, mas fazia nebulizações com berotec que me deixavam com uma tremedeira do cão!

me lembro de uma crise em que precisei ir para o hospital várias vezes no mesmo dia, por conta da falta de ar. de repente, isso virou uma autorização para eu ser uma vadia. não podia correr porque sentia falta de ar. com doze anos, me lembro de uma outra crise feia em que fiquei na cama por uns dias, tamanho o cansaço pra qualquer atividade física. o Felipe, meu irmão, me levava até no banheiro porque eu sentia falta de ar no percurso. pronto. ganhei um atestado eterno para ficar imóvel em todas as aulas de educação física durante todo o resto do meu percurso escolar. na sexta série, ao invés de jogar com meus colegas, eu era dispensada e ia pro cemitério, que ficava do lado da escola, e ficava fazendo brincadeira do compasso em cima das lápides. meu fôlego se mantinha intacto com isso.

e assim foi, da sexta série ao terceiro ano. eventualmente eu fazia alguma coisa, mas nunca era obrigada e achava ótimo. idiota que fui. com dezesseis anos comecei a fumar e aí a merda se instaurou na minha vida. eu nunca mais tive crises tão sérias, mas depois de namorar um asmático, eu, que nunca tinha usado uma bombinha, comecei a usá-la, isso já com vinte e três, vinte e quatro anos. 

depois de tanto tempo sedentária, várias foram as vezes em que me inscrevi na academia, fui alguns dias e depois nunca mais. não sentia nem vergonha de abandonar; sentia um pouco de vergonha de estar ali, gorda e desajeitada no meio da galera fitness que não é lá muito receptiva, ou pelo menos não eram naquele tempo. eu odiava as músicas, as pessoas, o ambiente em si; odiava tudo, mas talvez só estivesse mesmo com ódio de mim mesma e da minha falta de persistência. tá bom, academia não era pra mim. tentei natação, e só faltava colocar os bofes pra fora na piscina. fiz yoga, que gostava muito, mas as pessoas namastê também me incomodavam. fiz pilates e super curtia, mas achava muito caro pra tão poucas vezes na semana. tentei andar de bicicleta, mas três delas foram roubadas... enfim, vejam que eu sempre arranjava uma boa desculpa pra desistir e pra continuar me odiando por isso.

bom, corta pra uns quinze anos depois e cá estamos hoje. Karla, 36 anos, fumante, asmática e sedentária. os três maiores prazeres da vida? dormir, comer e foder, nessa ordem. quem me conhece sabe que dormir é o meu maior talento, no qual sempre fui bem sucedida, mas se eu quiser chegar aos quarenta, que estão logo ali na esquina, com alguma dignidade, preciso me mexer. por essa razão, parti para mais um investimento de peso, depois de uma esteira que virou cabide, depois de um simulador de caminhada; depois de uma enorme plataforma vibratória que virou um elefante branco na despensa, desta vez, meus empreendimentos de sucesso são uma estação de musculação e uma bicicleta ergométrica que comporão minha academia em casa. três andares de casa têm que servir pra alguma coisa afinal de contas.

estou ansiosa e animada e terei até um treino personalizado porque sou uma pessoa séria que tem um personal trainer. quero informar que os tempos de vadiagem acabaram para esta pessoa. tenho objetivo de ser musa fitness? obviamente que não, e por favor, se eu me tornar a pessoa que tira fotos dos momentos de "treino" e que escreve na legenda #tapago, me deem um tiro! mas, a despeito disso, minhas grandes pretensões são de fazer a minha bunda crescer e ficar dura e me tornar uma pessoa forte, porque apesar do tamanho, sou uma franga de fraca. não quero músculos, quero tônus, disposição, mais fôlego e mais movimento para a minha vidinha linda.

o cigarro vou parar eventualmente, calma que é uma coisa de cada vez!


terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

sobre despedidas simbólicas


são 22h01. cheguei em casa. estou levemente embriagada. depois de quase vinte anos, enterrei meu pai. não, ele não estava mumificado e entocado no meu guarda-roupas. ele já não existe há quase vinte anos. quando ele morreu, eu era mais nova do que a Ana é hoje e eu estava a milhares de quilômetros de distância. não participei da despedida. não tive escolha; soube da morte pouco antes do enterro. eu não sabia de nada, não entendia coisa alguma.

hoje enterrei meu pai simbolicamente porque senti como se fosse. morreu sua irmã mais velha, minha tia. ela tinha 88 anos. as pessoas da família do meu pai - e também da minha mãe - vivem tanto quanto as tartarugas de Galápagos. elas insistem em continuar existindo apesar do passar dos anos. não sei se terei toda essa gana porque viver cansa muito. ela foi velada e enterrada no mesmo cemitério que meu pai. eu o visitei. fumei um cigarro com ele enquanto chorava e conversávamos mentalmente.

minha irmã me avisou que ela tinha morrido hoje de manhã e eu quis ir ao enterro por consideração ao meu pai. tia Zélia era meio que sua mãe. ele era o caçula. eu sou a caçula. descobri que "destronei" um primo do posto de neto mais novo do meu avô. pedi desculpas a ele porque não foi a minha intenção nascer e fazê-lo descer do trono. descobri que sou a sexagésima sobrinha entre os filhos de todos os tios. eram quatorze filhos. as pessoas gostavam muito de se reproduzir nos tempos passados. a sexagésima e a última. sou a caçula entre eles também, mas bela bosta. nessa família gigante, ser o mais novo nunca trouxe nenhuma vantagem, meu pai que o diga.

foi pra mim como o enterro do meu pai e eu não sabia que encontraria lá todos os meus irmãos e a Lili. acho que isso ajudou na sensação de que era dele que eu me despedia. nossa pequena família nuclear ali, junta. doeu quando eu vi uma das filhas da tia Zélia se desfazendo em lágrimas quando o caixão deixou a capela. doeu quando o caixão subiu a pequena ladeira seguido de inúmeras coroas de flores muito bonitas, mas sem todos os seus representantes. não sei porque não estavam lá, não sei se já tinham estado, não me cabe nenhum juízo apesar de fazê-lo só pra mim. me doeu ver o caixão fechado sobre a lápide esperando para ser descido. imaginei meu pai dentro dele e senti nas filhas da minha tia a angústia de saber que entram no cemitério duas pessoas, mas que só uma delas sai de lá porque a outra fica. última morada, adeus. fica a carne e segue a lembrança. senti a dor de deixar meu pai ali, apesar de aquela já ser a sua casa há tanto tempo. foi a concretização de uma morte que eu não presenciei e doeu.

me consola um pouco saber que a vista é muito bonita. gente rica é enterrada com vista pro mar. apesar do dia quente, na hora em que o caixão deixou a capela, chovia uma chuva de verão, dessas a que já estamos acostumados e, entre céu aberto e nuvens densas, apareceu um arco-íris como tem aparecido nos últimos dias, mas os que ficam o olham e o enxergam com os olhos molhados de quem vê nisso o sinal de alguma coisa. meu pai morreu no começo do inverno - mesma estação em que nasci - e chovia naquele dia também. perguntei pro Calo se no dia em que ele morreu havia muitas pessoas no velório; ele disse que sim, que não havia onde parar mais carros no estacionamento do lugar, de tantas pessoas que havia. ele era querido. que saudade, pai. descansa. 

sobre a vizinhança à noite

eu estava escrevendo, então só quando parei foi que notei o bebê, do prédio em frente ao meu, berrando. o choro é desesperado e imagino qual a sua demanda. sono, fome, dor, fralda suja, birra... enquanto não desenvolvemos a linguagem de maneira articulada, a atenção sempre vem por intermédio de altos decibéis, pela potência da garganta. será que gritamos e urramos em algumas situações pela falta de melhor forma de nos expressarmos? será que regredimos? ou será que só somos?

vejo a silhueta de um vizinho no mesmo prédio, emoldurada pela porta da varanda, à meia luz. as luzes do meu quarto, de onde escrevo, também estão acesas e penso se ele também me vê e elocubra qualquer coisa a meu respeito. agora ele está sentado, não sei o que faz, mas a minha curiosidade não vai além do que posso ver.

o bebê que tinha parado de chorar, voltou. ele grita como uma gata no cio; é potente. sua dor reverbera, mas tento abstrair; não há nada que eu possa fazer para apaziguá-lo. será que um colo diferente ajudaria? será que um colo diferente pioraria? não sei.

olhar pela janela me lembra de todas as vezes em que transei de luz acesa e janela aberta durante a noite, na madrugada. não foram muitas, mas não sei enumerar quantas. na ocasião mais divertida em que isso aconteceu, minha cama ficava sob a janela, como o é hoje em dia também, mas em outra morada. depois da foda, meu namorado e eu começamos a ouvir algo como aplausos e um pequeno coro que gritava do alto do prédio no outro lado da rua: mais um, mais um! sentimos algum embaraço, mas era tardio porque já havia acabado, não havia o que esconder, nem onde se esconder porque já estávamos em um lugar seguro - em casa. rimos, fechamos as cortinas e dormimos. fosse hoje, estaríamos na rede e eu teria virado uma estrela de filmes amadores contra a minha vontade. bons tempos em que a lembrança ficava emoldurada apenas por uma janela e não em uma tela sob o comando de um botão que pode recriar a ação à exaustão.

o bebê ainda chora, mas vou dormir.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

sobre o que a gente quer

noite passada eu sonhei com a minha vizinha que tem o meu nome; na verdade, sou eu que tenho o nome dela porque ela é mais velha do que eu; mas na verdade verdadeira, tenho esse nome porque é o nome do meu pai, mas ele quis enfeitar e trocou o C pelo K; suponho que tenha sido pra combinar com o sobrenome. e ao primeiro nome, juntou-se a minha avó materna inteira: Cristina Fernandez. sou também ela, a quem nunca conheci. sou toda a família paterna da minha mãe, Philipovsky, e sou toda a família paterna do meu pai, Koerich. apesar de ser a minha avó materna inteira, ela provavelmente também era toda a família do pai dela, Fernandez. os homens tomam todos os espaços, não é mesmo? até nos nossos nomes... que triste é isso, pensei agora.

apesar de a minha filha ter somente os meus sobrenomes, basta uns passos pra trás pra ver que não são meus, são de homens. não foram mulheres legadas adiante, foram filhas de homens, netas de homens. que bosta. o texto não era sobre isso, mas fica a reflexão em meio à minha náusea. em meio à tensão pré-menstruação, em meio aos seios explodindo de inchaço e sensibilidade, em meio à angústia mensal de existir e não tenho nem uma boceta de um sobrenome que tenha como origem uma mulher. você nasce com uma boceta, sofre a vida toda por inúmeras questãs em razão de ter uma boceta e no fim das contas o seu sobrenome é de um homem! veja, nada contra eles, apesar de ter muito contra. gosto muito deles e inclusive anseio por me relacionar com o gênero, mas foda-se porque isso não vai dar em lugar algum.

voltando ao meu sonho com a vizinha de mesmo nome. no meu sonho havia uma casa - como quase sempre há -, a dela. e havia também a minha; mas a dela era invejável no meu padrão onírico. ocupava um longo terreno e tinha os ambientes conjugados e ao mesmo tempo bem segmentados. tudo amplo, bonito, sofisticado, mas acolhedor. nessa casa tão bela aos meus olhos, ela tinha um quarto que me permitiu visitar. não era um quarto propriamente; era uma biblioteca/ateliê/estúdio/escritório (enquanto escrevo, a azia me consome), tinha um pé direito alto, estantes de livros dispostas no meio do espaço, inúmeros quadros e ilustrações e fotos de diversos tamanhos pelas paredes. no meio de tudo havia um cavalete e agora não me lembro o que ele apoiava, se havia nele um quadro ou não...

eu ficava maravilhada como todo o lugar exalava vida, ordem e cotidiano. parecia que ali dentro tudo fazia sentido. eu invejava a casa dela e sabia que na minha casa havia um espaço assim como o dela, mas o meu não estava tão bem acabado e presente como o dela; não tinha toda a história que o quarto dela tinha; o meu espaço era um rascunho, um devir, um vir a ser do espaço que já era o dela. mas sabe o que eu vejo? não estou falando dela; falo na verdade de mim, porque ela sou eu amanhã. ela é a minha aspiração. e eu vejo no quarto como quero estar depois, no futuro. no aconchego daquele quarto na minha casa, que também sou eu, tudo eu, sempre eu e sobre mim.

no fim do sonho, em algum momento aleatório, eu ia pra casa acompanhada de um pedreiro gato, um homenzarrão do tipo bruto sensível, com quem eu caminhava pela rua de braços dados, contemplando um céu cor-de-rosa alaranjado cujo sol se punha ao fundo em um cenário atribulado de movimento e de vida se dando por toda a parte, caótica. mas ali estávamos nós dois, tão entretidos um com a presença do outro. me senti amparada, segura. o que isso pode querer dizer? me diz aí, você que observa, que interpreta, que analisa. dorme de novo. sonha mais, joga pra fora o que deseja. deixa estar. sim, tô falando com você, Karla.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

sobre mais uma primeira sessão

estou nauseada. a porrada de hoje foi ainda maior do que a de ontem. ah, ontem não teve bem uma porrada. ontem havia plantas, cristais e cheiro bom que não me lembro qual era, mas era bom. ontem tive meu ego inflado enquanto pensava que logo estaria no divã. o caso nem é esse, foda-se quando ficarei olhando para o teto ao mesmo tempo em que vomito tudo o que preciso e me engasgo com as minhas próprias palavras.

hoje havia livros e livros e livros e até um bonequinho do Freud (?) na sala. acho que o analista é meio nerd e a sala tem cheiro de desinfetante barato ou de naftalina, não sei ao certo. vi Freud e vi Lacan. será que ele empresta os livros dele? a primeira impressão entre eles foi a de que eu queria o primeiro date, o de ontem, e sei exatamente o que tô fazendo aqui comparando o analista a um cara do tinder... as possibilidades são infinitas e a gente sempre pode encontrar um melhor, então pra quê sossegar no primeiro? que diabos! eu gostei do primeiro, mas o segundo, ele me machucou de verdade, então acho que vou ficar com ele.

o primeiro parece mais fácil, mais bonito, mais apresentável e não me refiro à pessoa - que fique claro, mas a todo o contexto. eu poderia ficar com ele porque parece mais conveniente, mas eu gosto mesmo do que me fere, do que me desestabiliza. foi demais pra mim, denso. foi uma enxurrada de coisas e tô me secando até agora, que inferno!

ontem, saí da sessão quase feliz. hoje, depois de chorar sob a máscara mais uma vez - graças à minha mãe - saí da sessão triste, doída e agora tô chorando de novo porque a gente acha que o problema são as relações de agora, mas oh, que grande surpresa pra mim, descobri, falei e comecei a chorar: o lance é a minha mãe e eu pequena, lá atrás. fui desmascarada por mim mesma na frente do grilo falante. minha mãe me dilacerando de novo e eu nem sabia do que precisava, mas era de amor. minha criança ali, fodida, e eu vejo que eu sou uma fraude, que todas as minhas grandes certezas sobre o que eu poderia esperar dela e que estão bem aqui no meu consciente, gritando comigo, podem até funcionar pra Karla de 36 anos, mas pra Karlinha, praquela menina, não querem dizer nada porque a sensação de falta, de abandono e de necessidade de aprovação e validação ainda estão aqui.

meu buraco é minha mãe e nem sequer tocamos no meu pai. durante muito tempo eu busquei nos caras o amor do meu pai e só encontrei nada. minhas faltas, meus vazios, eu achava que era o meu pai que eu queria e talvez seja, também seja. eu queria os dois e agora soluço chorando porque me veio à cabeça uma das visões mais significativas que já tive quando fumei salvia. nela, eu era pequena e meus pais vinham, cada um segurando uma de minhas mãos e caminhávamos felizes sob um céu amarelo. era algo como uma cúpula amarela, uma bolha e nós estávamos lá dentro. eu estava ali com meus amores primordiais, protegida, amparada, segura. eu era amada; na minha visão eles me amavam, eles amavam aquela criança. era o ideal de amor. era felicidade, era plenitude, era tudo o que aquela criança precisava. isso aconteceu há quase dez anos e voltou, emergiu em mim hoje. não que eu tivesse esquecido, é que hoje fez mais sentido do que nunca. eu sempre usei os alucinógenos esperando ter uma expansão de consciência, buscando entender o que tinha de mais profundo e escondido em mim e esteve ali o tempo todo desde então, eu só não entendia, mas agora eu vejo.

acabei de me jogar; vou experimentar então e ver o quão fundo eu consigo ir. desejem-me sorte porque eu sei que vai doer, mas vai me desenrolar, vai me deixar livre e eu vou poder transitar melhor entre o meu raso e as minhas profundezas, como eu sempre quis.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

sobre a primeira sessão

lá dentro a impressão já fora ótima. interlocutor que interage. não sei qual é o princípio da psicanálise que diz que o analista deve ouvir. isso se aplica? existe de fato? usei a expressão "de fato" muitas vezes durante a sessão e me senti repetitiva e então me policiei. isso quer dizer que as coisas que eu falei ocorreram como foram narradas por mim? eu as cristalizei pela minha perspectiva e as deixei estáticas, chapadas como uma pintura rupestre sem graça?

ele me provocou; eu gostei. isso é um fato. quero análise com um grilo falante. quero uma consciência fora de mim, me cutucando com a vara curtíssima, me ferindo, me abrindo. saí de lá vibrante, quase feliz. não encontro a música que quero ouvir porque não sei qual é. parece que me limitei e ouço, ouço, ouço, mas não é o que quero escutar, não é a música que corresponde a como me sinto. quando eu canto junto com a música, me sinto potente, afinada, mimetizada; quando canto sozinha, sou só uma voz desafinada, perdida no meu próprio ritmo.

é como buscar o que comer quando não se sabe do que tem fome. você come o mundo, o regurgita e continua insatisfeito. quero me satisfazer. quero entender o desejo, o meu desejo, por que o desejo para daí poder gozar.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

sobre o que me faz gozar

no famigerado aplicativo de paquera - sim, sou antiga -, escrevi no meu perfil: 

"buscando um encontro que faça sentido; que não seja cretino, que me faça rir e que me faça gozar."

"eu arroto no primeiro encontro, e em todos os outros."

vamos, então, por partes. o que é um encontro que faz sentido? é daqueles que na conversa já me interessam minimamente. faz sentido falar sobre a chuva que não passa, sobre o governo bosta que temos, sobre novas abordagens do "oi, tudo bem?"... muita coisa pode fazer sentido ou não.

os super espertos e engraçadões dizem que são capazes de me fazer rir e gozar, logo assim, de cara. já sei que se trata dos cretinos. sabe o que me faz gozar além de uma boa foda? gente bem-humorada, mas não idiota; homem que sabe rir de si mesmo e que entende uma ironia sem que eu precise desenhá-la. homem que se abre, que fala dos seus problemas, que mostra fragilidade. que fala da família, dos filhos, da ex. eu quero conhecer a pessoa! me fala de você! eu tô fazendo faxina agora; acabei de comer a sobra do almoço; meu dia foi uma merda; tem uma vazamento no meu banheiro... às vezes a conversa envereda para perdas e para as expectativas de vida, vai por labirintos e portas e eu não faço ideia nem do seu sobrenome, mas tô entretida, quero conhecer você. às vezes, fazemos encenações bobas, mas divertidas. é troca; você mostra um pouco de você e eu mostro um pouco de mim, mas por favor, que vá sempre mais além.

sobre os arrotos, não, eles não são piada; não são pra chamar atenção, não me tornam a diferentona porque você também arrota. os arrotos no perfil servem pra dizer que eu não faço média, que eu não perco mais tempo fazendo de conta, que eu não tô a fim de te impressionar positivamente. eles querem dizer que essa é a minha maneira de mostrar que eu sou de verdade e que se você não curtir, desculpe, mas quem perde não sou eu porque a despeito de todos os meus defeitos, eu sou uma mulher foda e se você não tem estrutura pra lidar com isso, beijo!

eu não quero saber do seu carro, da sua casa, do seu super emprego, foda-se; também tenho tudo isso. não quero saber das viagens que você já fez, nem das suas fotos sem camisa mostrando o seu corpo super sarado, foda-se. eu quero vínculo, quero relação. isso não quer dizer namoro necessariamente, muito menos casamento. mas eu quero alguém que tenha disposição para o mesmo que eu. quero quem se interesse, quem proponha. e não falo de grandes proposições, não. poxa, vamos sair pra conversar? tá de bobeira aí? então vamos no mercado comprar umas coisas pra cozinhar? vamos assistir um filme? vamos só ficar de boa, ouvindo uma música e curtindo a companhia um do outro?

eu, sinceramente, não sei o que os homens esperam desse tipo de aplicativo - além de uma foda fácil - e veja, não me queixo disso. só sair e transar pode ser ótimo, mas definitivamente não é o meu objetivo. e você pode dizer: ué, mas é só o que você vai encontrar, e eu discordo. cara, a gente vive conectado nessas porras de smartphones. faz muito tempo que aplicativos de encontros são só mais uma forma de conhecer pessoas, como um bar ou uma balada. Mas, como esses ambientes nunca foram muito a minha realidade, me vejo um tanto limitada, ainda mais em tempos de pandemia... 

a questão é: não espere que eu corresponda porque você começou a me seguir no instagram e curtiu todas as fotos em que eu estou pelada. vá à merda! como já dito em sobre o corpo, um corpo é a merda de um corpo e se o que te interessa em mim é a minha forma, sai fora. eu sou linda? sou. gostosa? pra caralho! não espere confete por me dizer o óbvio ululante. vem saber de mim, do que eu gosto, o que eu quero, o que eu penso, daí sim a gente vai poder conversar. 

os melhores momentos que tive por intermédio desse aplicativo foram ter, por exemplo, um homem na minha casa, sábado à tarde, lavando o meu banheiro. tem noção do que é isso? é isso que eu espero do tinder. não um empregadinho - o que não é tão má ideia -, mas iniciativa, sabe? nossa, esse banheiro tá precisando de uma limpeza e eu digo: meu bem, vou pegar os instrumentos necessários pra que esse banheiro fique limpo. e daí o cara vai lá e lava o recinto de cima abaixo. isso não é absolutamente maravilhoso? e faz isso com graça, enquanto eu fico na cama dando ordens. isso quer dizer que eu sou uma vadia? ora, claro que não. isso é troca. 

o melhor dos mundos no tinder seria, para mim, conversar sobre o absurdo da vida, assistir documentários e filmes e realmente falar sobre o que eles nos suscitam, provar oito drinques diferentes em uma noite, transar no carro por quase uma hora ininterrupta, sentar na lagoa e ficar olhando os carros passarem, feito dois idiotas; encontrar meus melhores amigos, ao acaso, no primeiro encontro, e me juntar a eles sem a preocupação de que não se faz isso no primeiro encontro. o melhor dos mundos é fazer tudo isso e no fim das contas dormir juntos, roçando os pés e querendo fazer de novo. isso é o que me faz gozar.

p.s.: intimidade; eu me esqueci da intimidade, mas ela também é uma grande fonte de gozo.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

sobre a praia

                                              

eu não gostava de lá a princípio. sentia-me bagunçada. vulnerável ao sol, ao vento, à areia. pra quê tanta areia? no último final de semana, vi um homem fazendo um castelo formado por uns tantos baldes das pequeninas esferas molhadas e gostei. senti vontade de fazer um com as mãos, sem ferramentas que lhe dessem forma. queria que fosse todo por minha obra, mas pensei que, para isso, deveria estar mais perto do mar, longe da areia fofa e com a areia compactada à mão. eu me sentaria sobre ela e trabalharia construindo meu castelo. não tão perto, para que as ondas não o levassem enquanto ainda estivesse inconcluso. queria poder contemplá-lo, e me imaginar dentro dele; porto-seguro instável.

a praia, esse lugar bravio onde as pessoas vão. nela sentem toda a sorte de natureza. os quatro elementos. o calor do sol, a brisa do ar, o sal da água e a terra que não é firme; é macia, é seca e molhada, quente e gelada. você fica dentro e fora. sobre e sob. são muitas sensações e quase todas à nossa revelia. a praia é uma experiência de desprendimento. de frescor em dias escaldantes. de imaginação em dias encobertos. de apreciação da luz e do som assustador e nunca repetido das ondas. da brisa salgada que cola na pele junto com a areia que empana os corpos. a praia é uma grande experiência de pessoas à moda milanesa. alguns, as crianças especialmente, alegram-se de se refestelar sobre seu chão; outros, como eu, não apreciam o contato inquietante com o que há lá em muito maior quantidade do que se poderia contar. quantos grãos será que há? serão passíveis de contagem? incômodos que são, jamais me daria ao trabalho infinito, mas me pergunto.

da mesma forma, me pergunto como funciona o mar. por que não nos invade? por que não nos toma enquanto estamos virados para ele, fitando-o com olhos embasbacados de admiração? por que não se vinga de nós? eu me vingaria, todos os dias. arrastaria vários para o fundo. se fosse o mar, eu afogaria a todos que viessem brincar em minhas ondas. só porque eu poderia; só porque eu teria esse poder selvagem.

o sol faz isso. age implacável sobre quem está abaixo dele, na praia. agiu sobre mim. "insolei". o corpo todo, mas um pouco da sua quentura se alojou mais vigorosamente na parte posterior de minhas coxas. o ardor ainda persiste, embora menos intenso. senti seu calor como pedras quentes cozendo minha pele; como se se amalgamasse ao meu couro, ao mesmo tempo em que ele se desfaz no inferno vermelho localizado. dói. digo que jamais voltarei à praia e que toda a areia que há nela poderia ser substituída pelo porcelanato que está presente no chão das casas burguesas. é muito chique, fresco, limpo. eu não sou chique, fresca, limpa. mas assim me vingaria dela.

tiraria um pouco de sua beleza primitiva e colocaria no lugar um pedra sintética, lisa, brilhante, chique, fresca e limpa. que tipo de pessoa uma atitude como essa me tornaria? o tipo do qual o sol se vinga, torrando.

sábado, 16 de janeiro de 2021

sobre a segunda sessão

quando desci do carro foi que percebi que o havia estacionado muito longe da calçada, para variar. eu já estava um minuto atrasada, mas minha falta de habilidade precisava ser corrigida. entrei no carro novamente e manobrei - ele continuou mal parado, mas estava um pouco menos no meio da rua - eu disse foda-se e fui adiante. achei que não tinha tempo a perder, mas receio tê-lo perdido de qualquer forma, já lá, sentadinha na cadeira de couro sintético que grudava nas minhas costas por causa do calor. 

eu falei, falei e falei mais um pouco do quanto tinha se desvanecido aquela figura da minha mente - um mês atrás, quando comecei em uma sessão solitária pré-natal e sem qualquer efeito positivo, queria saber por que diabos depois de mais de seis meses de fósforo queimado, eu continuava insistindo no que existia somente na minha cabeça? falei de pai e de mãe, chorei sob a máscara - o que é um verdadeiro horror, e não cheguei no que achava que me consumia.

então, hoje, já me consumia por outra figura, uma que há muito me atormenta: eu mesma. não está fora, Karla, está dentro, como sempre. entenda esta merda de uma vez por todas! saí da sessão tão frustrada quanto entrei e foi só a segunda. acho que não gosto do meu analista. interaja comigo, por favor, me provoque! em quarenta e cinco minutos só consegui sentir angústia e alguma paz de leve observando as nuvens rosadas pela janela aberta. o som dos pássaros junto ao som da vida acontecendo pela rua era de alguma forma reconfortante. ainda na poltrona de napa vagabunda, recostei a cabeça sobre ela, quase contemplando minha perda de tempo enquanto pensava em tudo e em nada juntos.

na frente do prédio acendi um cigarro que parecia não querer estar aceso. fumei-o a contragosto, não meu, mas do próprio cigarro. entrei no carro e não quis voltar para casa. não gosto de não querer voltar pra casa. dirigi pacientemente enquanto os automóveis se enfileiravam à minha frente. a noite estava finalmente surgindo e fitei a lua. não estava grande nem nada. era apenas um pequeno pedaço dela. um pequeno pedaço brilhante e amarelo. a lua parecia a unha do polegar de um violeiro, daqueles que fumam cigarros de palha à beira do lago em noites de lua como esta. acrescento à noite o som das cigarras e dos pernilongos confiados que nos comem as pernas enquanto os esconjuramos.

mais um dia passou. já é sábado.


domingo, 10 de janeiro de 2021

sobre os encontros




no encontro, passamos os dois pela mesma porta, cada um vindo de um lado diferente dela. eu no meu mundo - dentro -, você no seu mundo - fora. não só porque vem de fora, mas porque não sou eu. é só no pequeno espaço da soleira da porta que se dá a reunião, sempre breve. você toca na aldrava da minha porta e eu permito que entre. vem, senta aqui comigo. olha só como é a vida que levo. o que é que quer ver? eu mostro. vê o amontoado de coisas que posso te mostrar; tudo meio confuso, meio misturado, meio raso, meio fundo.

olha aqui, no espelho, enquanto me fode, enquanto molhamos a cama de suor, enquanto o encontro não acaba. olha todas as demais dimensões e camadas que se dão ainda na piscina infantil, com a água batendo nos joelhos, clara; ainda consigo ver meus pés, é seguro. na fossa das Marianas ninguém se arrisca a mergulhar. molhar a cabeça pode ser perigoso. aqueles peixes horrorosos e brilhantes estão lá embaixo, como vagalumes do mar. tem certo encanto nisso, não tem? nossos pequenos demônios que carregam a feiúra dos nossos males, mas que têm sobre suas cabeças uma lanterninha cintilante mostrando que a despeito de serem feios e amedrontadores, têm que ser vistos e, no fim das contas, são menos piores do que imaginávamos que fossem.

tem certo encanto na surpresa aterrorizante da apnéia. por quanto tempo você suporta ficar sem ar? até onde consegue ir sem se afogar? ninguém quer ficar azul no encontro. só queremos passar pela porta, tê-lo. convido que entre em mim, no meu mundo. se joga, então, até onde conseguir. te encontro no meio termo, no meio do caminho, onde ainda conseguimos ver a nós mesmos sem perder a claridade do sol. sem que a água fique turva pela falta de luz, pela profundidade. sem que possas conhecer a sombra que só pode ver quem vai mais fundo no salto.

 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

sobre a noite passada



Para pensar ouvindo silence - Portishead

Esteja alerta para as regras dos três
O que você dá retornará para você
Essa lição, você tem que aprender
Você só ganha o que você merece

Tempted in our minds
Tormented inside, lie
Wounded and afraid
Inside my head
Falling through changes

Did you know when you lost?
Did you know when I wanted?
Did you know what I lost?
Do you know what I wanted?

Empty in our hearts
Crying out in silence
Wandered out of reach
Too far to speak
Drifting, unable

Did you know when you lost?
Did you know when I wanted?
Did you know what I lost?
Do you know what I wanted?

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

somethin' stupid - Frank Sinatra


I know I stand in line
Until you think you have the time
To spend an evening with me
And if we go some place to dance
I know that there's a chance
You won't be leaving with me

Then afterwards we drop into a quiet little place
And have a drink or two
And then I go and spoil it all
By saying somethin' stupid like, "I love you"

I can see it in your eyes
That you despise the same old lies
You heard the night before
And though it's just a line to you
For me it's true
And never seemed so right before

I practice every day
To find some clever lines to say
To make the meaning come through
But then I think I'll wait
Until the evening gets late
And I'm alone with you

The time is right, your perfume fills my head
The stars get red, and, oh, the night's so blue
And then I go and spoil it all
By saying somethin' stupid like, "I love you"

The time is right, your perfume fills my head
The stars get red, and, oh, the night's so blue
And then I go and spoil it all
By saying somethin' stupid like, "I love you"

"I love you"
"I love you"
"I love you"
"I love you"

https://www.youtube.com/watch?v=0f48fpoSEPU

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

sobre estar aberta a ser fodida pela vida - mas com amor

não tem muito sentido, nada tem sentido, a menos que coloquemos sobre qualquer coisa a intenção do sentir. não é nada muito lírico, nem bonito e nem poético. passaram os dias com a noite especial abarrotada de comida boa e os farofeiros tiveram três (!) variedades de farofa para se empapuçarem. a gente come, se embriaga, ri e ouve músicas ruins com um sentimento de nostalgia sem igual. nos embalamos e nos nauseamos; dormimos e comemos sobras, muitas delas. nos frustramos com a sobremesa que não era doce o bastante, não era saborosa o bastante, não tinha gosto de nada. o nada sempre nos desaponta. queremos sentir a doçura; melhor é o açúcar queimando a garganta do que a apatia do bege sem sabor. melhor se foder com gosto do que estar afundada na cama.

depois da interação com um número maior de pessoas do que de hábito, me sinto letárgica, cansada. gosto mesmo é de ficar afundada na cama. mesmo que o dia esteja azul, mesmo que a rua chame... me olho no espelho e fico assustada com minhas olheiras, parecem cada dia maiores, não importa quantas horas eu durma. concluo, então, que melhor mesmo é se foder com gosto.

quero que a vida me foda assim, como quem não quer nada, como foi da última vez. andando pela calçada, no frio, depois da meia-noite; mas desta vez, por favor, que além de me foder, me ame.

para ler ouvindo: gente aberta - Erasmo Carlos

domingo, 20 de dezembro de 2020

time moves slow - badbadnotgood




I found you at the window again

Looking out, watching the leaves falling in

And it was something like a dream

Wow so perfect, couldn't talk to me


Time moves slow

When you're all alone

And the time moves slow

When you're out on your own

And the time moves slow

When you're missing a friend

And the time moves slow

When you came to the end


Running away is easy

It's the leaving that's hard

Running away is easy

Running away is easy

It's the living that's hard

And loving you was easy

It was you leaving that scarred


But what was I to do?

Just couldn't help myself falling in love with you

And what could I say?

Oh, if I had another chance

To make you stay

Cause when you ran away

I knew just what you were thinking that day

You just didn't love me like I do

Like I love you

The sad thing is we're better off this way


Time moves slow

When you can't have a thing

Time moves slow

When you're lost in the dream

Time moves slow

When you wait by the phone

And the time moves slow

When you're all alone


To run away is easy

It's the leaving that's hard

Running away is easy

Running away is easy

It's the living that's hard

And loving you was easy

It was you leaving that scarred


Cause when you're so alone

Time moves slow

When you're so alone

Time moves slow

When you're so alone

Time moves slow

Time moves slow


https://www.youtube.com/watch?v=UWIIPX_5rbM
 

domingo, 13 de dezembro de 2020

sobre o que passou


para mim, este ano começou comigo acordando num sofá, cheia de areia. passara o dia anterior bebendo, fumando maconha e transando com alguns intervalos de tempo ao longo daquele dia. estava quente como hoje. eu estava feliz. fomos à praia para ver os fogos, já cambaleantes. antes de chegar lá, já era meia-noite. ouvíamos os estampidos de comemoração. tiramos a espumante da minha mochila e voltamos a beber despejando-a em uma caneca de acrílico. em frente a um canteiro de lavandas, coloquei algumas no decote do meu vestido. tinha uma flor amarela no cabelo. seguimos. passando pela pequena trilha, vi no breu as dunas. cruzamos com outras pessoas. ali fiquei. deitei sobre a areia e não consegui me mover pelos próximos quarenta minutos (?). - Babe, vamos - ele dizia. minha cabeça só girava e eu me sentia confortável sobre a areia fria.

quando, finalmente, consegui me levantar, fizemos o caminho de volta. eu estava feliz. na descida da rua, resolvi tirar meu vestido e fazer parte do percurso pelada, só porque me deu vontade. ele teve medo de que passasse alguém e me visse. coloquei o vestido de volta. depois disso, só me lembro de acordar com ele no sofá. não sei como chegamos em casa. não sei. mas eu estava feliz, antes de dormir e depois que acordei.

daquele dia tão distante para cá, a vida correu impassível, como sempre. os acontecimentos foram se dando diariamente, de toda a sorte. a vida veio em forma de morte, de espera, de dor. veio também como expectativa, como ansiedade, como frustração. a vida veio me empurrando até este momento, aqui e agora, em que suo no terceiro andar escrevendo. a vida veio se reverberando em separações, em novas vidas (serei tia de gêmeos!). a vida veio se adaptando por detrás de máscaras em público. só podemos nos ver no privado. no privado, em frente ao espelho, refletindo todo o peso de chegar até aqui.

conquistei e me exauri. fechei ciclos com muita dor, porque ainda queria estar no dia 31 de dezembro do ano passado. porque ainda carrego a nostalgia e a saudade do que foi idealizado. tantos véus me coloquei sobre a cabeça... todos eles tive que tirar para poder ver. enxergar que a vida acontece sem controle, enquanto o cigarro queima entre os meus dedos, enquanto durmo afogada nos meus sonhos. a brisa agradável da noite volta a me dar calafrios. os dias azuis e quentes me levam à praia, àquela, que era minha, mas é de todos e também de ninguém.

vê a vida, então, como um truque massivo que não nos deixa perceber que entre um grande acontecimento e outro, tudo parece irritantemente igual, ao passo que na verdade, o tempo nos consome a vida e é tudo diferente. somos constantemente atropelados pelos seus fatos. mesmo que ainda estejamos atrelados a um deles, logo vem outro e outro e outro. como ondas, os segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos vão passando por cima de nós, levando-nos para as profundezas, mesmo quando o mar parece de calmaria. isso não existe. calmaria não existe. a vida está no caos, do qual eu tento escapar mesmo quando sou criadora do meu próprio.

quando a gente já perdeu demais, gosta de se agarrar às coisas, às pessoas ou, ao contrário, solta de vez pra não sentir que perdeu. quando a gente muda demais, gosta de se estabelecer ou, ao contrário, não para de mudar pra não se sentir estagnado. quando a gente ama demais, ama até se consumir no sentimento. a gente, no caso, sou eu. não é porque sou a apaixonada intensa - o que sou -, mas é porque sentir é o que move a gente. a gente sente tudo. eu sinto demais por vezes, e por vezes nada. sentir é melhor e dentre todos os sentimentos, amar é melhor, é sempre melhor.

mas é melhor quando o outro sente também. amar sozinho é um peso sem fim. é um inferno, que diante de todo o tempo de uma vida é pouco, mas enquanto se sente é sofrimento embaixo d'água. das piores coisas que há está a imersão na dor, mas ela serve pra alguma coisa, não serve? diga pra mim que sim, que logo consigo emergir da minha lama cheia de ar nos pulmões, na pulsão de vida de respirar, de continuar. 

então continuo, amparada pelos outros tantos amores que uma pessoa pode ter. enquanto alguns laços se desfazem, outros se apertam cada vez mais. um amor que se torna o melhor amigo, uma amiga que transcende a amizade, e o que é a amizade senão o tipo de amor mais genuíno que pode existir? ah, que secamos tanto as lágrimas uma da outra. que atendemos ao primeiro pedido de socorro. que refletimos juntas pensando em todas as possibilidades e impossibilidades da vida. amores assim sempre vale a pena serem vividos e eu os vivo. sigo sendo amada como posso, aberta sempre, mesmo que seja para o arrependimento porque a vida é campo de aprendizado. 

escorro como a chuva que bate na janela, me desfaço e me refaço. o que passou vira saudade do que foi e nostalgia do que poderia ter sido. corre o tempo demasiadamente rápido neste ano tão comprido e confuso. parece que faz anos, parece que foi ontem. pelo menos, não choro mais.


para ler ouvindo:

jewel box - Jeff Buckley





domingo, 6 de dezembro de 2020

sobre o que vem depois

é depois de amanhã. levei três anos pra dizer que é depois de amanhã, e agora que o dia chega não sinto nada além de esgotamento. meus braços já não têm mais veias pros anestésicos que me injeto todos os dias. o sono, a fome, as redes sociais que me sugam para dentro do telefone. a paranoia, os pensamentos acelerados, são o que têm me aplacado e me estancado. gosto muito das singelezas, elas me afetam, mas o espírito de felicidade desmedida e "good vibes only" ainda me dão engulhos.

sinto inveja do que está limpo e fácil porque a sujeira e o acúmulo me tomam. os pimentões abertos na fruteira lá ficaram por muitos dias. murcharam, sua água começou a pingar preta pelo chão, enquanto eles iam se desfazendo com o passar das horas, apodrecendo sob as minhas vistas. por que eu deixo? por que permito que as coisas se consumam, enquanto eu, na minha inércia, apenas permito e vejo a imundície se espalhar? me sinto presa, estática, empedrada e incapaz.

enraizei-me no chão mesmo me movendo, porque a mente diz que não consigo agir. ela me tolhe e fico em estupor. escondo-me sob as cobertas, mergulho nos sonhos que me aprazem; eles são sempre melhores do que estar acordada. os pedidos que fiz ao fogo se dissiparam nas cinzas do papel e volto pro lugar onde já estive tantas vezes, andando em círculos que desgastam meus pés, meus sapatos, o próprio terreno onde piso de novo e de novo e de novo.

eu deveria estar feliz, cheguei ao dia que pensei estar distante demais da minha capacidade, muito além do que imaginei poder e, prestes a vivê-lo, não sei de mais nada. segue a estrada, ela continua, mas não sei como caminhar por ela.

sábado, 14 de novembro de 2020

sobre o corpo


GROTESCO: diz-se de ou categoria estética cuja temática ou cujas imagens privilegiam o disforme, o ridículo, o extravagante etc.
que ou o que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil, bizarro, estapafúrdio ou caricato.

é curioso como um corpo pode causar tantas reações. no meu caso, vejam, o peito cai sobre a barriga, a barriga cai sobre o púbis, o umbigo é "triste", há estrias, muitas. excesso de gordura, celulite, flacidez, varizes, manchas e cicatrizes. é um corpo, é meu corpo, com o qual já briguei por muito tempo, do qual já tive raiva. eu tinha raiva de mim mesma por me olhar no espelho e não reconhecer em mim um padrão que eu via por toda a parte, mas que não era eu. no fim das contas, percebi que eu não sou o meu corpo, sou TAMBÉM o meu corpo, mas não só ele.

"meu" corpo, parece que a gente fala de um objeto, né? "o corpo dela". não parece que falamos de uma pessoa, parece que nos referimos a uma coisa, mas é bom lembrar que esse corpo só tem valor quando está vivo, quando tem uma energia vital que o faz funcionar e é, então, que podemos nos ver para além de um corpo. somos todos corpinhos no mundo, andando por aí; o corpo nos leva a passear, mas ele só faz isso porque estamos vivos, então, somos mais do que o corpo. tanto é, que é só morrermos para quererem se livrar do "corpo" que, por si só, não quer dizer muita coisa. quando alguém morre, a gente se lembra de como a pessoa "era", cabendo nesse "ser" um corpo e tudo o mais que a gente não consegue enxergar nele.

o corpo personifica a gente, junta tudo o que somos dentro de um amontoado de carne. ninguém pode ver você por dentro, mas podem ver o nosso corpo e daí há pessoas que confundem tudo; acham que ver o corpo é saber quem somos, e não é. claro, o corpo dá pistas da gente, assim como as nossas roupas falam um pouco do nosso "estilo", mas olha, o estilo se refletir na roupa é só uma das suas nuances, como o corpo é só um pouco do que a gente é por dentro. os ditados mais clichês são os mais verdadeiros: "a verdadeira beleza vem de dentro" é real porque a beleza física é só um ponto e tudo o que é material tende a definhar com o tempo. quando a gente permite que o corpo nos defina e não somos capazes de enxergar a nossa subjetividade, a tendência é que nos odiemos e definhemos por dentro também, mas por dentro a gente não engorda, nem emagrece. por dentro, a forma não importa coisa nenhuma.

vou simplificar: pensa num fusquinha e numa ferrari. por fora eles são bem diferentes, é verdade, mas se não tiver ninguém que os dirija, eles vão ficar parados pra sempre, não servem pra nada. sendo bonitos ou feios, sendo um super carro ou um carrinho popular. o que importa é quem conduz o carro, quem vai dentro dele, sabe? 

queria publicar essa foto há algum tempo, mas queria elaborar o porquê de estar fazendo isso. primeiro e determinado pela forma e pelo MEU conceito de beleza, acho que estou espetacular nela. linda, maravilhosa, fantástica e, de verdade. podem pensar: "ah, mas ela está se expondo". sim e não. estou expondo o meu corpo, não quem eu sou. "ah, ela quer chamar atenção!". sim, eu quero. quero mostrar que um corpo é só um corpo e eu não tenho nenhuma vergonha do meu, mesmo que ele esteja longe de um padrão estético, é assim que ele é, ué... poderia ser mais "bonito"? poderia, mas está desse jeito no momento. "nossa, mas é ridícula, gorda, feia, boba e cabeça-de-melão", o que você pensa a meu respeito é um problema só seu e você vai continuar pensando, eu estando pelada ou vestida. "caramba, que corajosa!", corajosa por quê? me exponho muito mais nas palavras que posto aqui de vez em quando do que nua, então... minhas palavras mostram muito mais quem sou eu do que a minha forma física. 

a gente se expõe todos os dias, quando fala, quando se manifesta e quando cala também. às vezes, as grandes exposições vêm no silêncio, quando a gente deveria de fato dizer alguma coisa. tô aqui usando meu corpo e minha escrita pra dizer que meu corpo não sou eu, que você não faz ideia de quem eu sou só porque me viu pelada. e não me sinto vulnerável por estar sem roupa, por mostrar meus "defeitos", primeiro porque eu me vejo perfeita; segundo porque quem quer julgar vai fazer isso não importa como você esteja. se você se sente plena e maravilhosa ou "o cocô do cavalo do bandido", não faz diferença; quem quiser dar palpite na sua vida, no seu corpo, vai vir com seu caminhãozinho de merda e vai estacionar na sua frente e começar a descarregar toda a frustração dela em cima de você, do seu corpinho feliz e satisfeito. eu, hein!

eu postei essa foto porque queria compartilhar com quem quiser ver que essa sou eu, fisicamente apenas, e eu não tenho qualquer razão para me sentir embaraçada de me mostrar porque eu me curto. eu me gosto. todos os dias? obviamente que não. há dias e dias e tá tudo certo! a única regra da vida é a instabilidade/ a impermanência, então eu não teria como me amar o tempo todo, mas no geral, oh, eu me amo! eu não publiquei essa foto buscando validação, porque como vocês podem ver, eu faço isso por mim mesma e é só a minha aprovação que importa pra mim. 

estou preparadíssima para ser julgada, achincalhada - porque parece que as pessoas se ofendem com o que não acham "bonito", mas é aquele ditado milenar: "ema, ema, ema, cada um com seus problemas". eu não tenho um problema com o MEU corpo, então, se você, que não sou eu, tem um problema com o meu corpo, você realmente tem problemas; busque ajuda. eu não quero "biscoito" e acho essa expressão horrível, porque não sou um cachorro treinado que ganha biscoitos quando faz um truque legal pro seu dono. 

essa foto não tem nenhum intuito sexual, mas se você é o tipo de homem asqueroso que acha que se uma mulher posta uma foto é pra VOCÊ, vá tomar diretamente no olho do seu cu. se eu receber algum tipo de comentário nojento ou desrespeitoso, você será exposto. se você, que é homem, leu tudo o que escrevi e ainda assim insistir em se comportar como um neandertal, saiba que você tem sérios problemas cognitivos; busque ajuda.

no geral, temos muito mais empatia pelos outros do que por nós mesmos. a gente se maltrata, se maldiz, mas consegue olhar pro outro com compaixão - isso quando conhecemos e gostamos da pessoa; quando não conhecemos ou não gostamos da pessoa, a gente acha que tem o direito e a propriedade pra falar dela. é importante que tenhamos uma atitude mais amorosa diante de nós mesmos. nosso corpo não é imperfeito ou defeituoso porque a gente não se parece com alguém que faz parte do padrão estabelecido, mas de mentira. a gente é como é, e é passível de mudar sempre que quiser, se quiser, quando quiser. 

considerando que somos todos singulares por dentro - com todas as nossas vivências, modos, costumes, maneiras de pensar e de agir -, se a nossa subjetividade é única, por que é que deveríamos nos parecer com alguém que não é a gente? por que é que não podemos parecer com nós mesmos sem nos sentirmos errados/feios? por que é que nos importamos tanto com o que pensam/acham/dizem de nós? por que é que nos maltratamos para caber, sendo que já estamos dentro do nosso corpo e cabemos nele perfeitamente? bom, tenho certeza de que não há uma resposta só pra isso, nem que haja uma resposta certa.

as respostas são muitas e estão por toda a parte, em todos os lados para os quais olhamos, porque a resposta está no culto às coisas, à aparência; na insistência do sistema em nos reificar e nos tornar insatisfeitos, infelizes e bons consumidores... dá canseira só de começar a falar, mas o caminho é provocar pra refletir. e é isso aí. a gente pode pensar a respeito. a gente pode olhar pra um corpo e fazer o exercício consciente de pensar que é só um corpo, que todos temos uma forma - fisicamente falando - de estar no mundo e, se uma pessoa escolhe ser ou é de determinado jeito, isso não tem nada a ver com você. não é pra você, não é sobre você. 

no caso, aqui, é sobre como eu aprendi a me amar - e isso não quer dizer que vou gostar do meu corpo todas as vezes em que o vejo refletido no espelho, a coisa não funciona de maneira permanente, NADA funciona de maneira estanque e definitiva -, é sobre colocar as coisas em perspectiva, não ter vergonha de ser/estar como se é/está, mas também não é sobre ter coragem. é sobre ser ridículo, sabe? anormal, grotesco... é sobre estar aqui agora, neste exato momento, e me achar uma pessoa incrível, por dentro, por fora, virada do avesso e é muito bom se sentir assim, liberta do crivo alheio... não pra sempre, mas hoje estou livre.

P.s.: sim, eu tenho pelos, como todas as pessoas adultas têm. caso você não goste dos seus, você pode dar a eles o fim que quiser. Eu gosto dos meus pelos. Acho que eles me deixam bonita e ponto. 


sábado, 31 de outubro de 2020

sobre o dia das bruxas

Eu sempre gostei de filmes de terror, muito influenciada pelo meu irmão, Felipe, e fui iniciada nesse meio muito cedo. A primeira lembrança de um filme de terror, que hoje soa ridícula, era do bebê monstro. Eu não me lembro do enredo da história, mas o protagonista dela era um bebê - monstro. A criança não só era um monstrinho, como matava pessoas, e o Felipe, quando queria me assustar dizia: o bebê monstro vai te pegar!. Com seis anos já tinha assistido Chucky - O brinquedo assassino, A Hora do pesadelo - meu irmão tinha os quadrinhos com a história do Freddy Krueger -, alguns filmes da série Sexta-Feira 13 (do famigerado Jason Vorhees) e de Halloween (do psicopata Michael Myers), e Hellraiser, um clássico do gênero - sem entender nada obviamente, mas o sangue, a dor, a morte e a representação do inferno estavam ali e eu sabia o que aquilo queria dizer. Depois, vieram A hora do espanto, Poltergeist, Cemitério Maldito, Evil Dead... mais uma galera de filmes.

Então, com oito anos eu já era bem traumatizada - e fascinada - por toda a coisa macabra. Acho que foi com essa idade que assisti O Exorcista pela primeira vez, e esse se tornou meu filme favorito e o que mais me dá medo até hoje, e olha que eu já o assisti umas dez vezes. Entre os traumas proporcionados pelas películas, eu morria de medo que algo me puxasse para debaixo da cama, e quando ia me levantar, dava um pulo a uma distância segura, que garantisse que um braço não conseguiria me puxar. E também não dormia de frente pra parede, porque algo poderia vir por trás de mim durante a madrugada. Dormir só de costas pra parede, porque ela era uma proteção, além das cobertas. Fora as histórias da boneca da Xuxa e do Fofão e de ouvir os discos das Xuxa ao contrário. Ser criança nos anos oitenta era uma pira! 

Depois, vieram os filmes da Faces da Morte, que alugávamos na locadora. Assisti vários deles. Pra quem não sabe, eram "documentários" que mostravam cenas de mortes reais, de todas as formas. Havia cenas de necrópsias, acidentes, suicídios, assassinatos, atentados... tinha de tudo, e eu assistia a essas coisas com uns dez anos de idade! não sei como não virei uma freak, se bem que sou. Veja, eu era a menina que gostava de fazer a brincadeira do copo, do compasso. Eu era a menina que gostava de passear no cemitério - ainda gosto muito, na verdade. As pessoas têm medo da morte, e eu também tinha medo dos monstros, do diabo, dos fantasmas, só que esse medo também me excitava e me fascinava. Mas veja, medo de gente morta eu não tinha, ali no caixão, eu não tinha. Nunca tive.

Agora as bruxas, as mulheres, ah, esses seres misteriosos e diabólicos, não? O primeiro filme de bruxas a que assisti foi Convenção das bruxas, com a Anjelica Huston. Que filme! Ser uma bruxa era ser outra pessoa, má, não que eu fosse, mas ser uma bruxa era ser diferente e eu nunca quis ser ou fui igual aos outros. Não tinha a pretensão de me enquadrar, mas queria chamar atenção, chocar. O estereótipo da bruxa é o da mulher que não se encaixa, que é livre, destemida, que não obedece à norma em nenhum aspecto. Eu queria ser uma bruxa. 

Pouco antes de entrar na adolescência, assisti Abracadabra, um daqueles filmes fofos da Disney, mas lindamente marcante e fez com que eu gostasse ainda mais delas. Depois, com uns doze, acho, assisti Jovens Bruxas, outro filme inesquecível pra mim, mas o que acho que me fez querer ser outra pessoa mesmo foi A volta dos mortos-vivos III. Esse eu assisti, claro, depois de ver os dois primeiros da série, dos quais também gosto muito, mas a Julie, protagonista do filme era a personificação do que eu queria ser - uma morta-viva. Antes dos treze, eu já tinha pintado o cabelo de vermelho e usava piercings de pressão na boca e no nariz, como a personagem. Quando mudei de escola e cheguei lá assim, eu passava pelos corredores e as pessoas me chamavam de "defunta", de "esquisita" e eu adorava! Era isso que eu queria ser, a diferentona.

Ser como os outros, não era pra mim, porque os outros eram todos iguais. Com dez anos, eu participei de um concurso de fantasias, promovido por uma escola de inglês que celebrava o dia das bruxas com uma festa à fantasia, e que ficou muito famosa e virou tradição na cidade em que eu morava. Fui vestida de quê? De morta-viva. Ganhei? Não, mas ser um zumbi era fantástico! Eu ia a essa festa todos os anos, sempre com o mesmo mote de vestimenta, mas não necessariamente com a mesma roupa.

Pra mim, ser uma bruxa, uma morta-viva era a possibilidade de mostrar um lado meu que as pessoas não acham bonito. Eu gostava de deixar as pessoas desconfortáveis com as certezas delas e com os padrões do que era legal ou belo. Flertar com a morte, com o incerto, com o macabro, com o medo alheio era muito satisfatório pra mim. Eu era a "maluca", mas eu nunca quis ser normal, então tava tudo certo.

A minha excentricidade arrefeceu depois que eu cresci, porque a vida foi se mostrando pavorosa de verdade, muito mais do que qualquer filme, qualquer zumbi, qualquer fantasia. Continuo aqui, me sentindo diferente dos outros, já que sou de fato. Continuo fazendo passeios pelos cemitérios - inclusive gosto muito de saber que sou vizinha de um, mesmo sabendo que esse não será o meu fim. Sim, vou morrer, como todo mundo, mas espero ser cremada e ter minhas cinzas jogadas em algum lugar ainda não definido. Sim, continuo gostando da ideia de me fantasiar de morta-viva, porque é uma excelente alegoria da nossa realidade. Não estamos todos meio mortos?

Afogados nas nossas vidas maçantes, temendo o futuro vivo que é incerto, e fazendo de conta que não existe o futuro da morte, pra onde todos caminhamos. Viver é caminhar pra morte todos os dias, mas não pensamos nisso. O dia das bruxas é a véspera do dia de todos os santos, que é um dia de homenagem a todos os santos e mártires mortos que, por sua vez, é véspera do dia dos mortos. Vejam que felicidade, temos dois dias que nos celebram: o dia em que nascemos e o dia dos mortos. Um, quando chegamos a esse mundo, e outro que celebra todos os que já partiram - e que nos celebrará eventualmente. Assim é que a vida se mantém pra sempre eterna. Enquanto formos lembrados, nos manteremos vivos.

Os filmes de terror nos colocam de frente com a morte, que é representada sempre como o mal, como um monstro, um demônio, um fantasma, e talvez por isso, muitos não gostem desse gênero. As pessoas não querem sentir medo, mas na verdade o que acho que elas não querem é encarar que a vida termina, então, a morte é sempre vista como algo terrível, daí não pensamos nela, falamos de flores... fingimos que somos eternos e quando ela chega perto da gente tem esse impacto tão devastador. A morte é o outro lado ao qual não temos acesso, é o lado que não conhecemos porque só sabemos o que é viver. Talvez por isso a demonizemos dessa maneira, criando mitos e horrores simplesmente porque não conseguimos explicá-la.

Enfim, eu não sei como serei lembrada, só espero que não seja como uma pessoa "normal". Ser a bruxa, a esquisita, a maluca me soa muito melhor. =)