quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Como morrer sem querer e como ficam os que ficam

Tinha médico às 10 da manhã; a casa estava uma zona há mais de uma semana, mas ela não percebia que isso era uma das poucas coisas que estava sob o seu controle, a organização e a manutenção da sua casa. Preferiu a internet, como muitos.

Tomou banho correndo, vestiu-se correndo, passou protetor solar correndo e correndo também, falou consigo mesma. Andava tendo conversas muito claras, em voz alta e não só dentro da cabeça, chamava sua própria atenção, se exigia, esperava ainda colocar em ação todas as coisas que se dizia. Continuou correndo quando foi abastecer o carro; não sabia mais se ele tinha gasolina ou não, porque a boia da bomba de combustível só funcionava quando queria, e nos últimos dias, ela não andava muito a fim de trabalhar.

Quando abasteceu o carro, já se avisou que o atraso era de sua única e exclusiva responsabilidade, então que deixasse de ser uma Zé-pressa e fizesse as coisas no tempo em que era capaz de fazê-las.

Foi pela Beira-mar, ouvia Statler Brothers, e como a vida é cheia de ironia, foi num muro, em que mais tarde as pessoas colocariam flores, que ela se espatifou. Apressada como o coelho de Alice, ela fez uma curva, pensou em fazê-la; não reduziu a marcha e foi direto em direção ao muro. Muito rápido. Instantâneo. Irreconhecível. Perda total para o carro, perda total para ela.

Agora é que o peito aperta. Enquanto via o muro se aproximar, enquanto não havia mais nada a se fazer, pensou em tudo. Viu 27 anos passarem diante de si. Percebeu finalmente o significado da palavra efêmero. Viu que não era nada. Viu o que era impermanência e entendeu de uma vez por todas que tudo pode mudar a qualquer momento. Uma corda bamba eterna. Roda gigante safada, que não só sobe e desce, mas que por vezes é equipada com um banco ejetor, e mesmo que você ache que está lá em cima, é lá de cima que você vai ser lançado. Dói mais.

De viva, indo para um compromisso, à morta, esfacelada, com cacos de vidro no rosto, cabeça quebrada, sangue escorrendo por todos os buracos, ossos trincados, pele pendurada. Nunca mais um abraço, um beijo, um carinho. Era só a casca.

Tudo isso numa manhã de sol primaveril. Não é um paradoxo? O sol nunca para de brilhar, não importa o que aconteça em terra firme. 

Carro no muro, game over pra ela. Os carros que vinham atrás, primeiro frearam bruscamente para que não batessem também, depois, descendo com pressa e temor pela gravidade do acidente, os motoristas vinham ver a morta. O tesão gerado por acidentes traz muitas reflexões para quem os assistem. Muitas perguntas, muita consternação. O que houve? Como aconteceu? Ela estava bêbada? Dirigia em alta velocidade? Perdeu o controle? Ela está morta? É, acho que está morta... Coitada, pobre da família...

Vinte minutos depois, chegam a ambulância, a polícia, os bombeiros e mais curiosos. Com alguma dificuldade, conseguem abrir a porta do carro. Ela, de cabeça caída pro lado, olha pro nada com as pupilas dilatadas de defunto. Morta? Sim, nem poderia ser diferente. Mais uma ironia para quem sempre achou que morreria em um acidente automobilístico. Assim foi.

Removeram-na. Saco preto, carro da polícia técnica. Ela já era estatística. Pegaram a bolsa, olharam o nome na identidade. Pegaram o telefone celular e começaram a olhar os números para que pudessem avisar alguém sobre a mais nova perda da família. Estava escrito na agenda “Casa” e ligaram. Lá, o telefone tocou à exaustão, e os gatos miaram sem saber da notícia. Ninguém. Tentaram o último número discado e ele atendeu. Acidente? Ele ainda estava dormindo... É que a morte é assim mesmo, chega sem avisar. Se você está vivo, pode empacotar a qualquer momento; para ela não tem tempo ruim ou bom, é tudo igual. 

Sim, acidente. Você é da família? Precisamos falar com alguém da família. Sou namorado. Namorado não é família e ele sabia que nem namorado era, e se arrependeu, todo mundo se arrepende. Ah, burrice! A gente acha que a morte vem sempre amanhã, como a felicidade, como o fim de semana, mas ela sempre chega! E quando chega, pluft! Arrependimentos não resolvem nada. Nada.

Ele pensou imediatamente na menina, eram onze e meia, ela estava na escola, e naquele dia sua mãe não iria pegá-la, e nem em nenhum outro dia. Como dizer? Cadê minha mãe? Sozinha ela, sozinha com a menina. Todo mundo tem família e coisa e tal, mas era ela e a menina, sempre a menina e ela. Família de duas, como faz agora? Família de uma? Isso é família?

Tudo perdido, muito louco. Numa noite, mercado, carnes para o natal, planos indefinidos de natal aqui e ali, panetones que ela tanto gostava, chocolates envenenados pra ele, chinelo novo pra menina. Dorme, acorda e come coxinha. Lanche gorduroso do Beps na véspera da batida. Mas morreu em jejum, deixando o que mais estimava na vida, que era um pedaço seu de legado pra terra.

A menina deixada ao léu, cheia de comida em casa, mas sem a mãe preguiçosa pra cozinhar, pra brigar, pra deixar usar o computador. Ao menos ela já estava matriculada na escola para o ano que vem, mas a mãe não a veria mais. Oh vida que passa. O amanhã que nunca chega ou que chega rápido e sem aviso prévio. Leva, bagunça, empilha e deixa de lado. 

Desestabilizadora a grande ceifadora.


P.S.: Não, eu não morri, nem estou pensando em morrer. Eu sempre reduzo nas curvas, mas gosto tanto de falar sobre ela, que me deu vontade de escrever. Você já se imaginou morrendo de repente e deixando tudo pra trás? Hoje, eu imaginei, mas é tão complicado pensar em quem fica... pensei na minha Ana, mas eu morta de repente, nada poderia fazer por ela, mas sei quem poderia cuidar dela. Se eu morrer de repente, cuidem dela!

P.S.²: Não, eu definitivamente não estou pensando em morrer, fiquem tranquilos, é só que a vida tem dessas coisas. Se alguém por aí também quiser que eu ajude em caso de falta por morte, estamos aí, é só deixar avisado. =)

P.S.³: Na verdade, estou bem feliz, porque o natal é uma época de luzes coloridas e comidas gostosas! 

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Não sei por que, mas 10 x 7

Quando eu era pequena, às vezes tinha uma sensação que me incomodava muito; em alguns momentos, parecia que tudo à minha volta acelerava, tudo acontecia muito rápido, as pessoas, os movimentos, as coisas, tudo se mexia em uma velocidade maior e aquilo me dava uma enorme agonia, porque era como se eu estivesse devagar diante de tudo.

Outra coisa que me deixava desconfortável, mas que acontecia nos meus sonhos, é que, com certa frequência, sonhava com uma claridade tão forte que eu não conseguia abrir meus olhos; eles ardiam e a minha cabeça doía, e nos sonhos, eu ficava impaciente, porque dentro deles se passava considerável tempo, e eu era obrigada a andar com os olhos cerrados, me sentindo importunada pelo clarão.

Mas o ponto não é esse, o ponto é que hoje, andando pela rua, de repente senti como se todas as coisas tivessem um destaque maior dentro do ambiente, tudo. Duas vezes senti o cheiro da minha infância. Primeiro, senti o cheiro do meu pai, depois senti o cheiro de um chiclete paraguaio que mascava quando era menor. É incrível como a rua me leva a lugares que estavam guardados há muito tempo. Cruzei duas vezes, em dois pontos diferentes do bairro, com a mesma garota que usava tênis cor de violeta. Passei em frente a um salão de beleza e vi uma senhorinha que, apesar de toda a decrepitude estampada em si, tinha os cabelos emplastados de tinta, na tentativa de esconder todos os anos que já tinha vivido. Vi uma menina, parada, atrás de uma linha branca, feita no chão de uma das pracinhas daqui. Ela olhava pro nada e esperava o momento de cruzar aquela linha, quando sua mãe séria, veio e a levou. Ouvi o barulho ritmado de marteladas, e vi a água que escorria pela sarjeta. Tudo muito vivo, muito singular.

Ontem, depois de piscar, abri os olhos e não podia parar de rir; eu ria, ria, ria e não havia nada de engraçado, mas eu ri tanto que babei; ri descontrolada; ri e não conseguia falar. Do meu lado direito, tudo girava, e eu ria. Depois, fechei os olhos e um enorme leque de plástico transparente amarelo se colocou sobre o céu, ele cobria tudo, dava ares de verão, de calor ameno; eu mexia minha mão para um lado, e era pra lá que o leque cobria o céu; eu fazia isso para o outro lado, e o leque seguia minha mão. Eram as minhas mãos que controlavam o céu, e eu sentia toda a minha parte frontal formigar; me via em sonho. Então eles apareceram, meu pai e minha mãe, vieram em minha direção e falaram comigo carinhosamente, como se eu fosse uma criança, cada um deles tomava uma de minhas mãos e me levavam pra algum lugar que eles diziam ser bom. Por trás da parte que formigava, lá estava a minha consciência, me segurando, me impedindo de ser, dizendo que era tudo mentira. E, assim, acabou.

Ontem também, descobri que tenho uma prima que me lê, do lado paterno. Ela me procurou, disse que gostava do que eu escrevia, disse que se dava muito com meu pai, e que ele falava muito em mim. Em algum momento, antes de se perder em si mesmo, ele deve ter falado de mim, acho. Ela disse que ele ficaria orgulhoso, mas acho que não. Certamente ele ficaria chocado. Enfim, disse ela que se orgulhava de ser minha prima. Fiquei feliz por saber que uma pessoa, que eu sequer sabia que existia até ontem, se orgulha de mim. Tenho função no mundo?

Depois disso, recebi um e-mail com o convite para participar de uma constelação familiar, e no fim de semana conversamos sobre isso, não é? A primeira pessoa que me falou a respeito do assunto tem o mesmo nome da segunda pessoa que falou comigo sobre; uma é família, a outra é amiga. Isso é destino, coincidência ou conspiração? A gente, então, decidiu que vai se aventurar, se expor, e expurgar o que for possível.

E hoje, ah, hoje foi bonito. Hoje, vieram tantas coisas que as mãos dela ficaram quentes, fiz ela suar com o tanto de energia que entrou em mim. Ela viu nas minhas costas um lobo muito bonito e um delicado veadinho também. Li algo a respeito, e gostei dos significados. O lobo representa amor, relacionamentos saudáveis, fidelidade, generosidade e ensinamento. O veado denota delicadeza, sensitividade, graça, alerta, adaptabilidade, coração/espírito, gentileza. Oh sim, existe o bem em mim. E lembrei da cadela do vídeo, Mishca, linda, uivando, e lembrei do cachorro mais lindo que tivemos, nosso lobo, Zowie, querido devorador de gatos. Lobos são leais...


Mas nem tudo foi bom. Vi nitidamente uma briga. Nós dois em frente a um espelho. Me dava de dedo na cara, irado com a minha falta de compreensão, porque era inadmissível. Em frente a um espelho oval, apoiado em uma penteadeira, a mesma que vi no sonho em que eu era baleada no pescoço. O que se reflete nisso tudo? O que estamos projetando?


Ela me disse que há omissão, foi essa a palavra que ela ouviu de alguém. Há mais de uma pessoa dentro do corpo, e uma delas eu não conheço, porque ela se esconde, não se aceita, não se admite pra ninguém. Mas disse também que eu perceberei certas coisas nessa pessoa, e que os véus serão tirados dos meus olhos, e então, eu verei que não existe mais nada a agregar, e conseguirei me libertar do que me faz sofrer hoje.


Bolha de luz azul, bolha de luz violeta.


Ontem conheci alguém que me deixou feliz, porque pude conversar e dar um pouco do que tenho sido ensinada. Por isso agradeço, mas ainda acho que preciso de um gravador.