quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

sobre tirar vícios e colocar outras coisas no lugar deles

faz 55 dias que parei de fumar; não parece muito porque fumei durante mais de 7.500 dias da minha vida. o negócio está desbalanceado por enquanto, mas confesso que estou bem. tenho fugido de escrever sobre isso não porque está sendo difícil, é porque eu não sabia exatamente como seria estar aqui, digitando, sem um cigarro comigo. então eu digo: estou mais preocupada com o fluxo das ideias do que com o cigarro. ele me trazia um senso de continuidade, parece que tudo fluía melhor com um cigarro entre os dedos. eu já falei sobre isso em diversas ocasiões, mas o fato de eu ser asmática, sedentária e fumante não era algo que me favorecesse até então e menos ainda me favoreceria conforme os anos fossem avançando. este ano completo 38 e, apesar de perceber que estou derretendo com o passar do tempo, gosto da ideia de envelhecer - embora o que vem embutido nela (a morte) não me agrade muito.

por ter medo da morte, por não querer ficar doente, por não querer sofrer e por não querer ficar dependente de alguém em razão de uma enfermidade, já vinha considerando parar - sem fazer absolutamente nada pra isso. Continuava fumando em média um maço de cigarros por dia, tendo crises eventuais de tosse, falta de ar durante a madrugada, sentindo forte as mudanças no clima tanto pelo combo rinite/sinusite, quanto pela junção asma/cigarros, mas estava lá, abraçada nele. ai, que sempre fomos tão amigos... escrevi sobre nossa intimidade aqui e aqui. por gentileza, considerem que o primeiro texto é de quase treze anos atrás, tempo em que eu era uma verdadeira imbecil. gosto de como ele se inicia, mas depois descamba pro senso comum de gente otária. ainda bem que os anos passaram.

tirando tudo pelo que passamos juntos e toda a consideração que tinha por ele, eu não o deixei fazendo um esforço grande e, talvez, possa dizer que trapaceei no jogo de largar o vício, uma vez que tive ajuda para isso e nem me dei conta. vejamos, no ano passado, reencontrei o amor. senti-me feliz e leve de uma forma que não imaginava ser possível. a vida foi correndo descontrolada, não porque estivesse negativamente indomável, mas porque eu só não quis segurar as rédeas pelo caminho. claro que essas coisas não acontecem sem medo, e ter iniciado a análise no começo do ano foi me dando segurança para o fato de que pouco temos controle do que é externo a nós, mas ainda estou praticando esse fato, tornando-o palpável dentro da minha realidade. bem, depois do arrebatamento feliz, senti que apesar do amor, estava sem energia, um pouco estuporada, como se tivesse um interruptor que me ligasse e que me desligasse quando na presença dele ou não.

diante da sensação instigante de estar feliz e amando e, ainda assim, não ter muita energia para as outras demandas da vida, numa consulta com meu psiquiatra, falei como me sentia e perguntei se não poderíamos fazer algo. ele aumentou a dose do meu remédio, que ainda era de início de tratamento, embora já o tomasse havia mais de um ano. aos poucos, a nova dosagem foi se colocando e dois meses depois, sem que eu atribuísse isso ao remédio, fui fumando cada vez menos (o medicamento que tomo também é usado por pessoas que querem parar de fumar, mas a minha dosagem nunca havia influenciado no vício até então). de um maço diário, passei a fumar três cigarros por dia e passava outros dois sem fumar. sem esforço, sem fissura, sem sofrimento, sem me dar conta. eu simplesmente não sentia vontade de fumar como antes.

assim estava, até que no dia 19 de novembro, meu outro vício - em redes sociais - teve uma utilidade prática na minha vida. exercitando meus dedos rolando o feed infinito na tela, vi uma postagem que dizia que a indústria tabagista usava animais - cães, gatos, camundongos, coelhos, porquinhos da índia - para fazer testes. o que fazem é basicamente tortura, como colocar uma máscara com fumaça de cigarro na cara do bichinho e fazê-lo inalar essa merda por dez horas diárias para verem o que pode causar. sabe o que pode causar? pode causar câncer, filhos da puta! milhões de imbecis como eu, fumam e sabem exatamente dos riscos que correm, então fiquei indignada de saber que torturam os bichos para descobrir os males que o cigarro pode causar! e já não sabemos?! fiquei puta com toda essa patifaria e disse que não compactuaria mais com essa merda. disse a mim mesma que não colocaria mais um cigarro na minha boca, não sem antes chorar a ponto de soluçar vendo a foto do cachorro com uma venda nos olhos e máscara no focinho inalando fumaça.

eu sei que isso pode soar muito hipócrita da minha parte, uma vez que como carne e não quero entrar nesse mérito. eu sei que pode soar extremamente individualista a minha decisão ter se baseado no fato de eu ter imaginado que poderia ser meu gatinho mais novo, o Suri, naquela situação - porque sempre imagino meus gatos em todas as situações, boas e ruins -, mas também me compadeço por todos os outros animais, apesar de ainda comê-los e, sim, somos contraditórios, precisamos aprender a lidar com isso também. a questã é que desde aquele dia, não fumo mais. já estive em várias ocasiões cercada por fumantes e fiquei bem, sem tremeliques, sem lições de moral, sem bancar a ex-fumante chata porque cada um sabe de si e, eu, sabendo de mim, estou muito melhor sem o cigarro.

falta-me agora instaurar um vício saudável, liberador de endorfinas que me torne uma pessoa ativa e tudo o que o meu recalque não permite que eu admita. consegui me livrar do cigarro, mas ainda não consegui me livrar da persona fumante; ainda acho que "perco" em aura de mistério por não fumar; minha adolescente interna ainda acha que fumar é cool, mas a Karla adulta pensa que cool é não ter enfisema pulmonar, que cool é subir escadas sem colocar os bofes para fora. enfim, muitas habitantes minhas têm opiniões diversas sobre parar de fumar e sobre deixar de ser quem eu era quando fumava e isso envolve anos e anos não só de vício, mas também de armaduras que me serviram, de atitudes que me preservaram, de momentos e situações em que o cigarro foi mesmo um amigo, mas ser adulto é fazer o que nos faz bem, mesmo que a gente não queira. mesmo que a minha adolescente tenha uma crise porque muito da nossa identidade se forjou em cima de uma carteira de cigarros e de tudo o que ela representava pra gente. 

parar de fumar é também deixar ir, é calar, é adormecer, é talvez matar muitas vozes dentro de mim, vozes que só querem prazer a satisfação, vozes que não veem consequências, vozes que não se importam com o que fazem comigo porque não sabem distinguir certo e errado; isso poderia caracterizar meu id, mas serve perfeitamente para denotar um  comportamento de adolescente desvairado. eu já fui essa adolescente. eu já fui a menina insegura que com um cigarro na mão adquiria superpoderes: o de ser notada, de ser segura, de ser adulta, de ser sensual e misteriosa. lindo! me serviu por muito tempo, me ajudou incontáveis vezes a me sentir melhor comigo mesma. mas o cigarro não pode me definir porque, com o passar dos anos, eu me fiz notar, me senti segura, cresci e fui interessante e sensual e todos os adjetivos positivos que me cabem não graças ao cigarro, mas apesar dele. eu fui tudo isso porque sou tudo isso. os anos me deram isso. todas as coisas boas e todos os acontecimentos majoritariamente cagados da minha vida me fizeram ser essa mulher incrivelmente foda que eu sou e o cigarro estava ali do ladinho, mas não foi por causa dele que vivi nenhuma dessas experiências. sou eu, e todas as várias da minha mente que me trouxeram até aqui. sou tantas que os outros não veem e sou muitas mais que nem conheço, mas algumas delas, deixo ir, e quando elas se vão é porque outras já surgiram e, assim, seguimos.

bebam água.