quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A morte

Morreu. Ninguém sabe para onde pode ter ido, se céu, inferno ou algo que o valha. Mas foi, foi assim de repente. Num dia estava bem, bebendo com os amigos depois do trabalho, no outro dia, nem acordou, ou “acordou morto”, muito chato.
No funeral os mais próximos choravam, questionavam a brevidade da vida, sem perceber que eles, figurinhas com data de validade expirada, já deveriam ter dado adeus à existência se a vida fosse tão breve quanto diziam.

Uns choravam mais e outros só se faziam presentes por gentileza. Quem não conhece o morto pode até achar meio exagerado o misto de lágrimas e auto-piedade que surgem nos velórios, enterros e afins. Assim é a vida, não? E olhando bem o sujeito no caixão, não parecia mesmo alguém muito notável, que vá fazer falta, pelo menos para mim – assim pensa quem não conhecia o que já partiu.

Morreu. E daí que deixou contas, que fez prestações, que tinha o nome sujo? E daí que traiu, embebedou-se, mentiu e adoeceu? E daí que sofreu, amou sem medida e fez mais inimigos do que amigos? E daí que atropelou um animalzinho logo que tirou a carta de motorista, e que por isso não conseguiu dormir durante dias? E daí que até o dia de sua morte, ainda não achava justa a surra que o pai lhe dera na adolescência? E daí que não se conformara com o grande amor perdido anos antes, ou que fumou mais baseados do que deveria ter fumado?

E daí que não plantou uma árvore, não escreveu um livro e não teve nenhum filho? – pelo menos até onde era de seu conhecimento.

Morreu. Nada mais importava. A promoção do emprego, a consulta médica marcada, a final do campeonato, a comida dos peixes, a visita aos pais... Tudo planejado, tudo certo. Nada importava.

As roupas na lavanderia, o novo tênis de corrida, a troca das pastilhas de freio, a grande viagem de aniversário, os filmes para devolver à locadora... Tudo por fazer. Nada importava.

As guerras pelo mundo, as catástrofes naturais, os animais em extinção, a nanotecnologia e a existência de Deus... A oposição ou o partido de situação? Tudo por refletir, agir, entender, mudar. Nada importava.

As pazes com os desafetos, as palavras de ira, de alento, de amor e desabafo que deveria dizer a tantas pessoas... Perderam-se no corpo que feneceu, falhou, encerrou atividades e deixou tudo bagunçado.

Um morto não deixa só saudades e tristeza para quem fica. O morto também deixa medos, remorso, pavor de que você tenha seu pézinho puxado na madrugada fria por aquele fantasma que agora que morreu, sabe tudo o que você pensava sobre ele. Pior! Sabe tudo o que você fez para ele! Caso de vingança póstuma na certa!

Pessoas mortas também deixam dívidas e dúvidas, sim, porque a pessoa morre, mas a dívida permanece, portanto pense duas vezes no discurso suicida “estou fazendo isso pela minha família”, porque a sua família pode ter que pagar as suas contas, e isso não é legal. Dúvidas, porque se quando a pessoa morreu vocês estavam brigados, você nunca saberá se aquela pessoa te odiava de verdade ou só da boca para fora, mas agora isso não importa porque você reza para elas todos os dias antes de dormir, e assim, tenta se redimir de alguma maneira.

A morte não é só uma passagem transcendental para debaixo da terra ou para outra dimensão, isso no caso do morto; a morte é também mudança profunda, ou nem tanto, para quem aqui permanece, e nem precisa ser de alguém que conhecia efetivamente o falecido.

Se o falecido era funcionário público, por exemplo, e uma pessoa bem viva e concurseira já estava rezando pela morte de alguém do setor em que ela deveria ser chamada pra trabalhar... Bingo! Essa pessoa se beneficia da morte. Mudança profunda na vida dela, porque o concurso estava em vias de expirar, e agora ela pode respirar aliviada porque mamar nas tetas do governo e ainda ter plano de saúde é muita sorte!

Pode ser também uma herança, o que não subentende apenas dinheiro, que pode trazer boas mudanças profundas, ou boas dores de cabeça judiciais tão profundas quanto o oceano. Quando morre alguém dentro da nossa casa, se é alguém realmente muito próximo, queremos ficar com tudo o que era dela, mas depois a gente percebe que a quinquilharia toda começa a cheirar à morte, daí ninguém mais quer nada, excetuando-se jóias, dólares, quadros e arte, em geral, de valor significativo no mercado.

A pessoa que morre, não pode cobrar mais nada, de mais ninguém. Nem satisfação, nem discrição, nem amizade, nem dívidas, nem amor, nem respeito. Acabou para ela. Fim da linha. C’est fini. Não importa quanto tempo ela tenha passado no leito de um hospital, naquele “vai não vai” para o além, porque quando ela vai de fato, nossa! É chocante, arrepiante, tocante, marcante, mas não é crocante e gostoso como um pacote de Dorito’s.

Não sei se morrer dói, fisicamente falando, independente de machucados e traumas, mas para quem fica, a morte de quem nos importa dói. Tudo para, sangra imensamente, parece que nunca vai fechar, formar ferida, aquela casquinha fina, que com qualquer coisa faz a crosta abrir de novo e sangrar mais um pouco. Antes de cicatrizar por completo, quando a ferida abre novamente, já não sai mais tanto sangue “vivo”, sai mais plasma, aquela aguinha, sabe? Que não deixa mais você tão apavorado consigo mesmo de ver uma chaga exposta, para que qualquer um a enxergue.

Morrer é coisa séria. Coisa que dói, lacera, deixa a dor fantasma do membro que não existe mais, morrer é tão sério, que a gente só tem chance de morrer uma vez nessa vida! E antes que a morte chegue até nós, prematura ou já vindo com alguns anos de atraso, que aproveitemos melhor nossas pequenas conquistas, vinganças, contas, sofrimentozinhos baratos que temos e que não têm qualquer peso diante da morte.

Nem amor, nem dinheiro, nem desejo, nem amizade. Nada sobrevive a ela, que é a única certeza, que é o clichê que mais gosto de usar, e tirando todo o sofrimento que todos sabemos que ela causa, mas que não deveria, adoro fazer graça dela.