sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

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Naquele dia... Tudo estava como antes. Via as marcas secas de copos sobre a mobília, um programa que regride as mentes infantis passava na televisão, a casa ainda estava com resquícios de bagunça e seguramente suja. Não saberia dizer como um apartamento poderia acumular tanta poeira ao ponto de se juntar com os cabelos que caem pelo chão, e com os pêlos que caem da gata formando bolas de pó que andam para lá e para cá quando o vento entra pelas janelas e esfria os cômodos mesmo que o dia lá fora não esteja frio.
O apartamento é frio, estranhamente gelado...
Ela usa grandes sacos de lixo pretos, que permanecem semanas dentro de casa até que comecem a apodrecer as coisas que estão dentro deles. Lixo de banheiro, papel higiênico usado, lixo de cozinha... Como produzimos lixo, lixo, lixo... Para tudo há uma embalagem, e sua vida sedentária acaba ainda mais com o meio ambiente. Mas ela não parece se importar muito, quem se importa?
Para variar, ela está nua, quase nua. Na frente do computador digita suas impressões sobre a manhã. Espreguiça-se e vê os roxos em seus braços, os roxos que Ele deixou. Seu seio direito está apoiado em seu braço direito. Ela sente-se farta do que comeu. Os cabelos estão presos de forma desgrenhada, e os fios que caem sobre sua nuca, roçam-lhe a pele como algodão.
Lembra-se de ter sonhado com livros. Em seu sonho, seus livros estavam desaparecendo. E ao acordar sentiu-se sedenta por lê-los, e recorda-se de que quando mais nova lia com muito mais gosto e motivação. Suas vontades para com o que lhe pode ser de fato proveitoso têm-se mostrado a cada dia menos presentes...

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

História da Ana

Minha afinidade com crianças sempre foi perto de zero. Achava que elas eram seres que choravam, faziam birra e só serviam pra atazanar a vida dos adultos. Quando eu era criança, adorava brincar de boneca... fazia quartinhos... e era uma “mãe amiga” dessas bonecas. Adorava-as! Pensava: Quando eu tiver meu filho será assim e assado. No começo queria uma menina... e já tinha idéia de nomes que hoje em nada me agradam. Depois pensei que queria um menino, porque eles são mais fáceis de lidar, não têm tantas frescuras quanto uma menina cheia de laços cor-de-rosa... Mais tarde, decidi que não queria filho algum, pois só me atrapalharia e eu não gosto mesmo de crianças... não tenho jeito com elas, e elas também parecem não ir muito com a minha cara. Certo, filhos eu não teria.
Mas quando de um namoro inconstante e irresponsável veio a notícia de que eu estava grávida... ai ai... tudo, tudo mudou! Minha mãe me deu a notícia pelo telefone – ela foi buscar o resultado do exame: Parabéns Karla! Você acaba de estragar a sua vida!
Eu só tinha 18 anos... e de repente, estava grávida! Era algo inimaginável! Não conseguia acreditar, conceber aquilo na minha cabeça era demais! Não me sentia grávida, parecia uma grande mentira, um sonho... e eu queria muito acordar!
Abortar foi a primeira coisa que me passou pela cabeça, pois eu não me sentia mãe, nem preparada para tudo aquilo. Eu tinha acabado de passar no vestibular de enfermagem da universidade federal, meu namorado era um zero à esquerda, só estávamos juntos há três meses, e o principal, nem ele, nem eu tínhamos condições de ter um bebê. Mais tarde eu percebi que só poderia contar comigo, porque com ele... Bom, o fato é que estou aqui pra relatar a experiência de ser mãe.
A minha mãe e o meu irmão foram terminantemente contra o aborto: Você fez, você assume! Certo... a idéia esvaiu-se no primeiro dia, e logo eu tive que me acostumar a ter uma pessoa bem pequenininha dentro de mim.
Então tive de ir ao médico pra fazer o pré-natal e acompanhar tudo. Ele solicitou vários exames para mim, e outros tantos para o bebê. Aí já começaram os primeiros medos, porque mesmo que você não queira um filho, que você não se sinta apta a criar uma criança, mesmo assim você espera que ela seja saudável. Quando fiz exames para saber se o bebê tinha síndrome de Down e uns outros que não me lembro agora, ficava bastante apreensiva com os resultados.
Quando fiz o primeiro ultra-som, acho que aos quatro meses... nossa, quanta emoção!!! Era de verdade, pequeno, como um grãozinho de feijão com perninhas e bracinhos! E já me sentia um pouco mãe... o pequeno serzinho era nutrido por mim... o meu sangue era o seu sangue... eu era a sua casa... o lugar mais acolhedor por onde ele já havia passado...
Os meses iam passando, e eu engordando... minha barriga, minha pobre barriga encheu-se de estrias medonhas, mas é porque o cantinho do bebê precisava crescer. Eu queria que fosse um menino, e chamar-se-ia João, mas para meu engano, no ultra-som feito no quinto mês e cheio de expectativas, descobri que era uma menina que eu acolhia. O pai então escolheu o nome: Ana, mas minha mãe achava Ana um nome muito simples, deveria ser composto. Então ela tornou-se antes de nascer a quarta geração de Cristinas da família. Depois da minha avó Cristina, minha mãe Márcia Cristina, eu Karla Cristina, ela seria Ana Cristina.
E eu pensava nesses meses: será que ela vai gostar de mim? Será que terei leite? Será que saberei cuidá-la? Será que a amarei? Será que ela terá meus olhos ou os olhos do pai? Ah... foram tantas coisas passando... Acostumei-me com seus chutes e mexidas. Ela costumava chutar minhas costelas... Eu conversava com ela e às vezes chorava de medo de não conseguir. Era tudo surreal...
O enxoval foi feito, era tudo simples. Ela acabou sendo um bebê tão esperado quanto se tivesse sido encomendada pela cegonha. E eu já a amava... Enquanto o tempo passava, eu ia me preocupando cada vez mais com o dia do parto... morria de medo! Medo da dor, medo de morrer, medo de que acontecesse alguma coisa a ela.
No dia em que fui para a maternidade para ganhá-la, ao entrar na sala de trabalho de parto, vi duas mulheres gritando por causa das contrações, e agradeci porque faria uma cesárea. Mas é bem constrangedor: tire suas roupas e vista isso – um avental que te deixa com a bunda de fora. Ok, fiz isso, fiquei um tempinho deitada entre as duas grávidas e suas contrações, enquanto preparavam a sala de cirurgia. Quando me levaram à sala, pensei: fim da linha. É hoje que eu vou morrer, porque a sensação é a de que você está indo para o abate. A sala era fria, e a mesa era estreita. Sentei nela, e uma enfermeira veio a disse que me aplicariam a anestesia, e que eu sentiria uma picada nas costas. Na verdade não doeu nada, foi só uma picadinha mesmo, mas talvez tenha doído e eu não tenha sentido por causa dos nervos.
Deitei, os médicos chegaram. Acho que fora eles havia mais duas ou três pessoas na sala, enfermeiros suponho. Havia um rádio ligado, e o grupo falava de coisas aleatórias.
Fiquei com um dos braços esticado no soro, e comecei a passar mal. Parecia que a anestesia não era só da cintura pra baixo, parecia que meus pulmões estavam anestesiados e eu não conseguia puxar o ar. Colocaram-me no oxigênio, e eu não dormi, mas parecia bêbada. Uma hora olhei para as luzes, e elas refletiam minha barriga aberta, e muito sangue! Eu não sentia nada, absolutamente nada, então fiquei olhando para o lado, e esperando que acabasse logo, e acabou. Deve ter durado uma meia hora. Então ela veio, mostraram-me a Ana. Coberta de sebo, sangue, meio roxinha, meio amassada, eu a olhei e tive o desplante de dizer: Nossa, como ela é feia!
Que belo primeiro comentário sobre a filha, hein! Arrependo-me até hoje. Levaram-na, e eu dormi. Lembro-me de estar na sala de recuperação e de depois ser levada para o quarto. Quando acordei, começaram as dores... a anestesia estava passando e tudo formigava. Queria fazer xixi, mas como não podia levantar, colocaram em baixo de mim um daqueles penicos de hospital. A dor era imensa, não conseguia sequer me virar na cama. Então trouxeram-na. Embrulhadinha num cueiro de coelhinhos, com a carinha ainda amassada e arranhada por suas unhas compridas que não deveriam ser cortadas ainda. Ela parecia cansada da viagem que fizera, mas tinha fome. Meus seios estavam bem cheios, mas precisavam ser massageados para que o leite saísse, já que a pequena ainda não tinha a prática de sugar. Logo na primeira tentativa, ela já conseguiu alguma coisa, não o suficiente para satisfazê-la, mas estávamos nos conhecendo.
Logo na primeira noite, ela já ficou comigo no quarto, e dormiu num daqueles bercinhos que mais parecem gaiolas para crianças. Durante toda a noite, a cada duas ou três horas, ela chorava para mamar. E como eu tive leite! Ainda bem! No outro dia, levaram-na para tomar banho, e depois a trouxeram para mamar. Eu estava apaixonada por ela. Ana era linda, tinha olhinhos tão azuis que pareciam cinza. Era incrível acreditar que aquela menina tão linda havia saído de dentro de mim, de mim! Ela é um pedaço de mim, é minha continuação... meu legado... e isso não é nada perto da emoção de saber que ela existe, e que ainda, é minha... 

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Confidência

Quando vejo minhas fotos antigas ou recentes, em todas percebo um semblante muito parecido. Tirando as poucas em que eu rio, na maior parte delas eu tenho uma cara emburrada, ou um olhar triste... pareço sempre distante, distraída.
Vejo-me nelas e penso: por que eu estava com essa cara? Talvez não fosse por nada... é provável que tudo estivesse bem, mas ainda sim eu sinto, lá bem no fundo que eu sou uma daquelas pessoas infelizes... daquelas que não encontraram o seu lugar, porque elas simplesmente não fazem parte de lugar algum.
É claro que eu gozo em alguns momentos, mas são momentos... cada vez mais percebo que minha essência é triste e solitária. Prefiro ficar sozinha, em silêncio. Gosto de cantar, de ouvir minha voz desafinada... Às vezes tenho uma overdose de solidão, e requisito os amigos, que são tão poucos a ponto de contá-los em uma só mão e ainda me restarem dedos...
Parece egoísta dizer que requisito meus amigos, como se quando eu não precisasse deles, dispensasse-os, mas é porque esse é meu ritmo. As pessoas que me cercam fazem parte da minha vida, e eu da vida delas, e nem por isso ficamos umas em função das outras. Quer dizer, por vezes ficamos, mas uma mão lava a outra, e por isso somos amigos.
O caso é que apesar de ter uma vida estável, ainda não consegui me decifrar, mas há quem ache que conhece tudo a meu respeito. Dentro de mim há um enorme abismo, de coisas sobre as quais eu não gosto de falar, há planos e projetos que não me sinto capaz de realizar, sinto-me freqüentemente deslocada, pensando que EU não faço parte da realidade assim como os outros.
Ao mesmo tempo em que não me preocupo, procuro aprovação, mas acho que na verdade é minha própria aprovação que busco. Aquela que vem da minha consciência e que diz: Isso Karla, você está no caminho certo, não dê atenção ao que nada lhe acrescenta. Vá em frente, você pode!
Infelizmente minha alma milenar ainda não consegue ser tão independente, pelo menos nessa vida. Mas quem sabe com algum trabalho, eu consiga me tornar um pouco mais “alegre”, mas não para os outros, porque para os outros eu até sou extravagante, mas para mim mesma, para o meu “deleite pessoal”, um dia espero poder dizer que apesar dos revezes que acontecem dentro de mim, e não na minha vida em si, eu consiga manter o equilíbrio e não me deixe cair muito abaixo de onde as pessoas pisam.
E sei bem o que a falta de equilíbrio me causa... Tudo fica muito escuro... assim, de um dia para o outro, você olha para o lado e todos os sentidos construídos por você se foram. Você não tem idéia de onde possam estar nesse momento, mas o Escuro parece tão confortável... ele não exige nada de você, nada. Apenas entregue-se...
Mas hoje em dia, até que há uma lâmpada fluorescente na minha vida. É certo que de vez em quando ela dá umas piscadelas, mas não voltou a se apagar, então no futuro espero não sentir culpa pelo que não é minha culpa, e espero também me amar mais e me desfazer do que sei que não me traz nada. Porque a vida é feita de trocas, de relações de interesse mesmo que inconscientemente, mas continuamos a nos agredir todos os dias aceitando situações que nenhum bem nos fazem, que nada nos trazem de bom, e esquecemos de ser egoístas quando o melhor a fazer seria sê-lo.
A partir de agora, serei egoísta e não me violentarei mais insistindo no que não me diz respeito, é bom relacionar-se com pessoas com as quais a gente ria, em quem se confie, converse, planeje, chore, aconselhe, acalente, abrace, comemore... Enfim, que haja um elo de compreensão, e que desejemos ao outro tudo o que de melhor queremos a nós mesmos.

Escrito em: 11/07/07

domingo, 18 de janeiro de 2009

Das unhas roídas

Olhei para o lado e percebi que a pequena dormia. A boca estava brilhante de manteiga de cacau, que ela pedira a mim que passasse para que seus lábios frágeis de criança não ficassem rachados. Engraçado como uma pessoinha tão pequena poderia ser voluntariosa e cheia de argumentos...
De repente, ela suspira e vira-se na cama. Pousa a pequenina mão sobre o meu seio, e mais uma vez percebo que não adiantaram as conversas sobre parar de roer as unhas, porque Ana está com os dedinhos... ah, os dedinhos, as unhas foram tão roídas pelo hábito que eu não saberia explicar de onde surgiu, que parece até que a criança de nariz arrebitado passa por muitas situações estressantes.
Então, lembro-me de passar novamente nos tocos de unha aquela base com o cheiro de esmalte que sempre me agradou, mas com o sabor de fel que espero, mude o comprimento das unhas de minha filha.
E há de ser nessa hora, enquanto escrevo, enquanto ela dorme... pois depois de passá-la pela primeira vez, e sentir o amargo na boca, era só eu falar em pintar as unhas que a pequena fazia cara de choro e dizia que não mais iria roê-las.
Enquanto ela espalha-se pela cama, e fala dormindo: “Eu tenho certeza...”, ronca aquele ronco gostoso de criança... eu procuro pelo esmalte para passá-lo.
No vidrinho lê-se: Inibidor do hábito de roer unhas. Mas isso não deveria ser um hábito...
Pego suas mãozinhas e começo a passar-lhes a base... ela com os olhos não totalmente cerrados, ronca... passo em todos os dedinhos, sem muito jeito. E aguardo os resultados. Amanhã verei Ana fazer cara feia quando puser as mãos na boca.

Escrito em: 11/07/07

sábado, 17 de janeiro de 2009

Para começar...

Quando eu era pequena, queria morrer queimada. Na minha cabeça de criança, morrer queimada era o melhor, pois enquanto o corpo ardesse, eu viveria por mais alguns momentos. Mas nunca, na infância, me dei conta de que os momentos a mais em vida corresponderiam a agonia e desespero. Hoje, quero morrer dormindo.