terça-feira, 17 de dezembro de 2019

sobre conversas no espelho

estava com os pés molhados, gelados. calçava sandálias em uma dia de chuva que, durante a manhã, não se prenunciava para tão breve. saiu da sala, trancou a porta, e logo sentiu os pelos se eriçarem de frio. desceu as escadas com cigarro, isqueiro e drops em uma mão e o telefone celular na outra.

passou pela rampa, tomou alguns pingos grossos de chuva na cabeça, deu três passos sobre o gramado e sentou-se no banco de concreto. de óculos escuros, o dia parecia ainda mais fechado do que era de fato. olhou o estacionamento minguado de carros; as férias estão chegando.

sentiu a ideia vindo, uma frase solta que poderia chegar a um texto. abriu seu blog no telefone e fez o que não gosta: escrever usando o pequeno teclado. sua única vantagem é o corretor ortográfico. no tempo de três cigarros, escreveu sobre isto:

Tinha incríveis diálogos consigo mesma, nua, em frente ao espelho. Falava com interlocutores imaginários interessantíssimos, ou que o eram de sua perspectiva. Sua mente tagarelava sobre o sentido das coisas, das escolhas e das dores. Cada dor era uma pequena ferida que teimava em sangrar. Sujava os lençóis e secava sobre a pele que já tinha tantas outras cicatrizes. Sentir dor era bom porque assim sentia, da mesma forma que os fugazes momentos de alegria figuravam agora em lembranças soltas, escondidas embaixo do travesseiro com um fio de cabelo perdido.

Olhava para o teto, para a luz branca, fixamente por tempo o bastante para que não enxergasse mais nada, apenas o nada; era como uma meditação. Poderia ficar imóvel por horas, com a cabeça leve e cheia de luz. Mas de repente, revolvia-se na cama, até que ficasse confortável novamente, com o cobertor entre as pernas. Deitada de lado, sentia saudades até dormir.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

sobre morrer pela boca

estou ansiosa, não cabendo em mim. dizem que o peixe morre pelo boca; será que é por isso? falei demais, expressei demais? durante anos entrei em jogos de comunicação. muitas vezes me perdi neles, porque não sabia quando falar. elaborava longas respostas perfeitas para o confronto, mas elas sempre vinham tardiamente, quando já não fariam mais sentido. me perdia nos meus argumentos e, depois, quando dava por mim, me sentia pequena, feita de boba, me imaginando em uma catatonia que me impediria de articular o que estava tão claro em minha mente. perdia a "briga", o debate, a discussão. não falei o que deveria ou me expus demais, me coloquei em uma posição vulnerável, naquela em que o outro poderia fazer o que quisesse comigo.

não se tratava só de falar o que me incomodava; se tratava de falar tudo. do ruim e do bom. das borboletas no meu estômago, do peito saltando, dos sonhos felizes. o que eu posso fazer com isso? pra que falar, contar, tirar de dentro de mim se o que parece é que não dá, que não pode ser?

por isso, o melhor era que me fechasse na minha concha. não demonstrar fraqueza, nem interesse, nem preocupação, nem apreço, nem afeição. ser duro é ser forte, eu pensava. com o tempo (muito recentemente, na verdade) percebi que por mais que me mostrasse frágil, isso ainda era mais sensato do que ficar calada, com os dedos sobre a boca, num gesto inconsciente de querer verbalizar o que eu escondia em mim.

aos poucos, fui me abrindo, achando que, de fato, estava fazendo o certo, mesmo me sentindo exposta, ainda que me sentisse prestes a levar uma surra no escuro que eu não saberia de onde viria. ao mesmo tempo em que me senti mais confiante na entrega, me senti também insegura porque falar o que se passa dentro da gente não é garantia de entendimento e nem de reciprocidade por quem ouve. com isso, me sinto diminuindo de novo, me sinto despida e indefesa e eu sou a única que pode me proteger de mim mesma.