segunda-feira, 29 de março de 2021

sobre a morte e os sentidos

eu não iria escrever hoje, mas a verdade é que nunca sei quando vou querer. às vezes penso em algumas coisas que me transbordam e sei que elas só fariam algum sentido se eu as escrevesse. se fazem sentido ou não quando viram palavras, não posso afirmar com certeza - aliás, a certeza não tem feito muito parte do meu vocabulário e talvez isso seja bom, não sei é só o que sei; que não sei de nada. não saber pode parecer libertador por um lado, mas por outro é só desespero. ando sobre a linha que separa uma coisa da outra. sinto as duas ao mesmo tempo, mas ainda consigo distingui-las, o que causa um pesar na liberdade e uma leveza no desespero. a vida fica agridoce, mas acho que ela é assim mesmo a maior parte do tempo.

não tinha colocado os pés para fora de casa hoje, até que os cigarros acabaram. eles são um grande motivador de procura da rua. lá vou eu então. satisfeita em ir de livre vontade buscar por algo que acaba comigo. até quando? eu digo que serei uma pessoa melhor, mas continuo comendo cigarros. o curto passeio pela noite é gostoso. o clima está agradável depois da chuva e, na volta, sinto uma vontade passageira de ir ao cemitério, mas desisto porque já me surgia a vontade de estar aqui, escrevendo.

penso na morte e daí percebo que penso nela todos os dias e isso não é ruim. penso que preciso fazer um testamento vital porque as pessoas só escolhem quem vai ficar com o quê no caso da morte, enquanto estão vivas e, como ela tem nos rondado tão corriqueiramente, acho que é acertado pensar nos seus detalhes. ainda vou escrever algo elaborado e minucioso. um inventário de coisas que significam algo para mim e, bom, isso não quer dizer que quem continuar vivo depois de mim vai querer as minhas quinquilharias, mas é porque não quero ser esquecida, quero continuar viva mesmo depois de morta e só consigo isso se as pessoas se lembrarem de mim.

alguns pontos mais amplos: quero doar meus órgãos, o que for possível - não sei o quão estragada estarei quando ela chegar; quero ser cremada, mas ainda não sei que destino quero que deem às minhas cinzas... não sei se quero ficar na estante da sala, se quero ser dividida entre entes queridos, se quero ser jogada no mar ou em algum lugar bem bonito... pensando agora, não sei se tenho um lugar preferido onde gostaria de ter minhas cinzas espalhadas... é algo a se pensar. quero criar uma playlist com as minhas músicas favoritas para que sejam tocadas no meu velório. quero deixar uma grana reservada só para os comes e bebes desse dia. não quero ser cremada na pressa, no mesmo dia, nada disso! quero ser celebrada. quero a galera comendo pizza e dizendo enquanto choram: a Karla adorava pizza! =~~ quero ver a galera enchendo o caveirão de álcool e falando: vou sentir falta dela... =~~ quero ver a galera comendo um pudim de leite e entre uma colherada e outra reclamar: o pudim que a Karla fazia era melhor do que esse =~~ vocês vão chorar porque é claro que uma pessoa encantadora como eu fará muita falta ao planeta, mas eu quero que chorem enquanto comemoram o fato de eu ter existido um dia, sabe?

por favor, não me interpretem mal; eu não quero morrer, mas já que esse é o destino que espera por todos nós, quero que a minha despedida seja feita do meu jeito e acho que todo mundo deveria pensar nisso também, porque de alguma forma dá um norte pra quem fica e como a morte em si já é tão dura e triste, como a perda abrupta de quem a gente ama já é foda o bastante, fazer o que a pessoa queria é um gesto também de carinho, vocês não acham? eu me esqueço de que estou falando comigo mesma, mas todas as minhas inúmeras moradoras concordam comigo e isso basta.

no fim de semana passado fomos assistir ao sol nascer na praia. a última vez que tinha feito isso foi no dia do meu aniversário no ano passado, e o sol sorriu lindamente comemorando o meu nascimento, mas era um dia frio. no domingo, quando fomos, havia chovido na noite anterior e o dia que nascia estava nebuloso no horizonte. o clima estava deliciosamente ameno, quase abafado, em um início de outono. o sol não brilhou em plenitude porque as nuvens o encobriram, mas indomável que ele é, surgiu alaranjado como um olho que pisca faiscante no céu, lindo. deus é o sol e isso é uma outra conversa. como o clima estava bom, fui checar a temperatura da água que, como eu havia imaginado, estava ótima! quase morna, propícia. o mar estava do jeito que é, falando pelas ondas, com a água transparente, mas salpicado de pequenas algas. ali ficamos por um tempo, cortando as ondas, sendo levemente arrastados, mergulhando e engolindo água em momentos desavisados. ficamos por tempo o bastante para a água entrar nos ouvidos, fazer arder as narinas e começar a assar os lábios com o seu sal.

parece que quanto mais pueril, mais significativo é o momento. ir à praia e tomar um banho de mar é das coisas mais satisfatórias que pode haver pra mim. é em ocasiões como essa que coloco mais um tijolinho no muro de sentidos da vida, da minha vida. isso é o que faz sentido, estar ali, assim como agora estou aqui, fazendo registro, querendo que toda a experiência caiba no que escrevo, mas não dá. a gente vive a experiência e puf! - já foi. as minúcias evanescem, mas a sensação permanece e talvez isso seja o suficiente para manter o sentido aceso, válido, quente e possível.

segunda-feira, 22 de março de 2021

sobre não haver garantias

joga fora o que tinha escrito antes, apaga. tudo confuso, emaranhado. é complicado explicar a ansiedade que não é a mesma da pessoa que vive em constante estado de alerta, não é disso que tô falando. não acho que vou infartar ou morrer, mas meu coração está aos saltos dentro do peito. o estômago congelado, difícil de ligar os pontos entre as vísceras. não estão concatenando as sensações. odeio não conseguir expressar. - fala! - eu penso, mas não sei o que dizer. oscilo entre a aflição e um breve estado de plenitude. não sei se o chão se abriu sob os meus pés ou se fui eu que subi em um altíssimo prédio e me joguei, mas sinto que estou em queda livre. não sei quão perto estou de chegar ao chão de novo, mas sinto algum conforto de saber que não posso ultrapassá-lo uma vez que nele esteja; esborrachada talvez.

quem sabe seja sempre como um passeio em uma montanha-russa. você vê o brinquedo no parque e ele parece ser o mais excitante entre todos. todas as subidas, descidas, loopings e curvas. você, então, entra na fila e descobre que ela é grande, exige espera, paciência e, enquanto sua vez não chega, você fantasia e já sente toda a sorte de reviravoltas na barriga. quando você percebe que é o próximo, pode pensar em desistir da aventura ou pode escolher sentar no primeiro carrinho. vai da coragem do passageiro. enquanto você sobe bem devagar e protegido em seu assento, pensa que nunca deveria ter sentado nele, na medida em que se vê cada vez mais distante de onde seus pés pisam. eu não falei, mas nessa montanha-russa, seus pés estão suspensos; você flutua e não sabe dizer se isso é bom ou não. 

a subida é lenta e gradual e você quase para quando chega no ponto mais alto, quando em um milésimo de segundo, pensa: - hm, acho que poderia ficar aqui mesmo, não quero ir adiante e, apesar de muito alto, aqui não parece tão aterrorizante... antes que finalize a linha de raciocínio, você é lançado trilhos abaixo, em toda a velocidade, ao mesmo tempo em que tem a sensação de morte e de desespero, da total falta de controle porque você só está ali - não há como fugir e tudo, tudo, tudo e qualquer coisa pode acontecer, inclusive nada. quando você consegue se entregar às engrenagens do brinquedo é que entra na brincadeira, é que se satisfaz com ela. só quando você entende que está tudo bem é que consegue gozar e aproveitar o passeio, e é só quando o passeio termina que você percebe que poderia fazê-lo de novo, mais vezes, se seu coração aguentar. 

montanhas-russas têm um risco calculado; são seguras. é fácil quando você sabe que mesmo sentindo todas as emoções ali, você vai sair inteiro no final das contas. a parte não divertida da vida é saber que andamos em montanhas-russas que foram construídas por outras pessoas quaisquer. ninguém é especialista em montanhas-russas. na vida, vemos os parques de todo mundo, andamos em carrosséis sem graça nenhuma; dirigimos carrinhos-de-choque, nos assustamos nos trens-fantasmas, nos empapuçamos com algodão-doce e maçãs-do-amor, mas o que a gente quer mesmo é dar uma volta na montanha-russa. a grande questão é que não há garantia de nada. se você vai chegar intacto no final do passeio, só saberá depois que ele começar. 

segunda-feira, 8 de março de 2021

sobre não ter mais desculpas

quando eu era criança, lá pelos nove anos, eu era bem ativa nas brincadeiras da escola. adorava correr! a gente brincava de pega-pega e tinha até uma modalidade muito peculiar, acho que criada por mim mesma: elegia um colega de sala como Jason - o Vorhees, com a máscara e o facão, dos filmes, sabe? - e a brincadeira consistia em eu sair correndo gritando por socorro porque o Jason queria me matar. corria em círculos em volta da escola, desesperada... ah, a infância, essa época de ouro em nossa vidas! jogava queimada, brincava de cabra-cega, de esconder... até que ali pelos dez anos, tive uma crise de falta de ar na casa da Luiza, isso nunca tinha acontecido antes. Minha mãe me levou no doutor Kleber e fui diagnosticada com asma. nessa época não usava bombinha nem nada, mas fazia nebulizações com berotec que me deixavam com uma tremedeira do cão!

me lembro de uma crise em que precisei ir para o hospital várias vezes no mesmo dia, por conta da falta de ar. de repente, isso virou uma autorização para eu ser uma vadia. não podia correr porque sentia falta de ar. com doze anos, me lembro de uma outra crise feia em que fiquei na cama por uns dias, tamanho o cansaço pra qualquer atividade física. o Felipe, meu irmão, me levava até no banheiro porque eu sentia falta de ar no percurso. pronto. ganhei um atestado eterno para ficar imóvel em todas as aulas de educação física durante todo o resto do meu percurso escolar. na sexta série, ao invés de jogar com meus colegas, eu era dispensada e ia pro cemitério, que ficava do lado da escola, e ficava fazendo brincadeira do compasso em cima das lápides. meu fôlego se mantinha intacto com isso.

e assim foi, da sexta série ao terceiro ano. eventualmente eu fazia alguma coisa, mas nunca era obrigada e achava ótimo. idiota que fui. com dezesseis anos comecei a fumar e aí a merda se instaurou na minha vida. eu nunca mais tive crises tão sérias, mas depois de namorar um asmático, eu, que nunca tinha usado uma bombinha, comecei a usá-la, isso já com vinte e três, vinte e quatro anos. 

depois de tanto tempo sedentária, várias foram as vezes em que me inscrevi na academia, fui alguns dias e depois nunca mais. não sentia nem vergonha de abandonar; sentia um pouco de vergonha de estar ali, gorda e desajeitada no meio da galera fitness que não é lá muito receptiva, ou pelo menos não eram naquele tempo. eu odiava as músicas, as pessoas, o ambiente em si; odiava tudo, mas talvez só estivesse mesmo com ódio de mim mesma e da minha falta de persistência. tá bom, academia não era pra mim. tentei natação, e só faltava colocar os bofes pra fora na piscina. fiz yoga, que gostava muito, mas as pessoas namastê também me incomodavam. fiz pilates e super curtia, mas achava muito caro pra tão poucas vezes na semana. tentei andar de bicicleta, mas três delas foram roubadas... enfim, vejam que eu sempre arranjava uma boa desculpa pra desistir e pra continuar me odiando por isso.

bom, corta pra uns quinze anos depois e cá estamos hoje. Karla, 36 anos, fumante, asmática e sedentária. os três maiores prazeres da vida? dormir, comer e foder, nessa ordem. quem me conhece sabe que dormir é o meu maior talento, no qual sempre fui bem sucedida, mas se eu quiser chegar aos quarenta, que estão logo ali na esquina, com alguma dignidade, preciso me mexer. por essa razão, parti para mais um investimento de peso, depois de uma esteira que virou cabide, depois de um simulador de caminhada; depois de uma enorme plataforma vibratória que virou um elefante branco na despensa, desta vez, meus empreendimentos de sucesso são uma estação de musculação e uma bicicleta ergométrica que comporão minha academia em casa. três andares de casa têm que servir pra alguma coisa afinal de contas.

estou ansiosa e animada e terei até um treino personalizado porque sou uma pessoa séria que tem um personal trainer. quero informar que os tempos de vadiagem acabaram para esta pessoa. tenho objetivo de ser musa fitness? obviamente que não, e por favor, se eu me tornar a pessoa que tira fotos dos momentos de "treino" e que escreve na legenda #tapago, me deem um tiro! mas, a despeito disso, minhas grandes pretensões são de fazer a minha bunda crescer e ficar dura e me tornar uma pessoa forte, porque apesar do tamanho, sou uma franga de fraca. não quero músculos, quero tônus, disposição, mais fôlego e mais movimento para a minha vidinha linda.

o cigarro vou parar eventualmente, calma que é uma coisa de cada vez!