segunda-feira, 22 de agosto de 2022

sobre morrer de raiva

foi no mês passado e eu quis esperar um tempo a mais para escrever a respeito porque achei que poderia estar comemorando antes da certeza, daí poderia ser punida por alguma ironia da vida, mas agora, tenho segurança de que não morrerei de raiva - mas talvez morra, vai saber...

a gente fala em sentir raiva e pensa no quê? olhos faiscantes, cara retraída, perdigotos expelidos aos berros; é uma emoção genuína, primal, daquelas que nos levam de volta aos cinco anos de idade cada vez que algo não sai como planejamos ou quando somos contrariados em nossos desejos. sentir raiva e frustração se jogando no chão, batendo o pé, esperneando, fazendo birra. 

quando a gente cresce, vai aprendendo a enfiar a raiva no cu. a gente aprende a não demonstrar a maioria das coisas que sente, daí viram isso, "coisas", sentimentos e emoções inomináveis diante dos quais não sabemos como agir, e é então que aparece o nosso pequeno eu, aquele que é ainda um animalzinho no processo de castração, que ainda está se moldando ao que a sociedade espera dele.

quando somos pequenos nos deixamos levar pelas emoções e eu me deixei levar quando, naquele dia, parei o carro no meio da rua, a caminho do trabalho, para ver o que parecia ser um sagüi sobre o asfalto, mas entre a via e o chão batido. ele estava com a cara voltada para o chão, com as maõzinhas espalmadas ao lado da cabeça, os pezinhos esticados junto com a cauda que media metade do seu tamanho e estava toda armada, como uma pinha fofa.

ele não se mexia; à primeira vista, parecia estar morto. eu, então, o cutuquei e percebi que ele inspirou profundamente; tinha vida ali! eu já estava nervosa e não sabia o que fazer. eu queria pegá-lo, mas tinha medo de sentir em minhas mãos que aquele pequeno corpinho poderia estar todo quebrado por dentro. tive receio de que se desconjuntasse, se esparramasse, que eu não pudesse contê-lo. Por sorte, havia um pano de praia no porta-malas do carro. Dobrei-o e fui com ele nas mãos tentar pegar o sagüi, que não mostrou nenhuma resistência. Coloquei-o em meu colo e fui para o estacionamento do meu trabalho que era apenas uns poucos metros à frente. eu falava para o macaco: "vai ficar tudo bem, amiguinho".

segue, então, uma parte que não será detalhada, mas que envolve a ida a três lugares diferentes até que chegássemos a


o quarto lugar, esse sim, apto a receber o animal.

durante o período em que estive com o pequeno, apesar de haver um pano entre nós, eu fiquei com ele por cerca de três horas. em mais ou menos metade desse tempo, ele ficou no meu colo enquanto eu dirigia. acordado o tempo todo, ele emitia uns silvos que me davam medo porque eu não sabia se eram de dor ou um pedido de ajuda para os seus. ele não tinha forças para andar, mas em alguns momentos parecia que estava tentando ficar em pé, dando impulso com suas perninhas. durante a outra metade do tempo, ele fez a viagem dentro de uma caixa de papelão - com alguns furos para que ele pudesse respirar -, junto com o pano de praia. às vezes, ele arranhava a caixa querendo sair; noutras, ficava em silêncio.

eu toquei seu pelo muito macio algumas vezes. tanto a pelagem fofa quanto a cara de coitado me lembraram a Chico, minha gata. pude vê-la nos olhinhos dele, tão assustadoramente humanos. ele parecia um pequeno adulto no meu colo. via sua boquinha entreaberta e conseguia enxergar seus mini mini dentes. o bichinho era uma obra perfeita e tão vulnerável diante da sua fortuna. a sorte dele poderia ter sido também a minha. meu destino e minha vida poderiam ter sido selados por aquele bichinho indefeso e adorável porque eu havia me solidarizado com ele.

em duas da três paradas que mencionei antes, comecei a perceber que meu bom gesto poderia ter consequências não calculadas. no primeiro lugar, quando viram o sagüi já disseram que eu deveria ter cuidado porque animais silvestres são vetores de doenças, e eu carregando a criatura no colo como se fosse um bebê reborn. eu estava tão fora de mim, no misto de defensora de animais e de senhora compadecida com a dor alheia, que sequer havia me lembrado de que se tratava de um animal silvestre - silvestre como se está praticamente no quintal da universidade? - eu pensei, em um lampejo de imbecilidade... 

entre um lugar e outro fui me dando conta de que tinha agido de maneira impulsiva mas que, no momento em que o resgatei, me tornei responsável por ele. me senti a porra da raposa do pequeno príncipe. eu poderia ter sido uma escrota e tê-lo jogado em qualquer canto porque, né, foda-se! ele não era problema meu, mas eu o havia tornado meu problema quando o peguei. como eu iria viver bem comigo mesma se não tivesse ajudado aquele sagüi, ou pior, se o tivesse tirado da cara no asfalto com o intuito de fazer algo por ele, mas tivesse desistido no meio do caminho porque não havia nenhum filho da puta disposto a fazer alguma coisa por aquela vida que parecia tão insignificante aos olhos de todo o resto da gente?!

as pessoas pelas quais eu passei me fizeram sentir medo e culpa por tentar ajudar o animal que, até aquele momento, eu achava que poderia ter sido atropelado (abre-se aqui um parêntese para dizer que não, não havia me ocorrido que se um bichinho daquele tamanho e porte tivesse sido atropelado eu sequer seria capaz de identificar a que espécie ele pertencia), até que uma dessas pessoas disse que ele poderia ter levado um choque e caído do poste, pois era comum que recebessem ligações pedindo ajuda por essa razão. foi quando notei que isso fazia total sentido, pois ele estava no chão bem abaixo da linha do fio de luz do poste da rua em que o peguei.

depois de toda a romaria para conseguir encontrar um lugar que pudesse acolhê-lo adequadamente, chegamos ao parque estadual que recebia animais silvestres que precisassem de atendimento veterinário. a minha preocupação ao deixá-lo era de saber se, caso ele ficasse bom, seria devolvido para a mesma rua em que eu o havia encontrado porque estava preocupada com a família dele, e pensei que se ele voltasse apenas à natureza, tipo aquela natureza do parque, não seria a mesma vizinhança à que ele estava acostumado. pensei nos vínculos familiares do macaco; me senti uma filha da puta por tê-lo tirado de lá e por, talvez, ser a responsável por ele nunca mais ver a família dele. dito isso, o senhor que o recebeu me assegurou de que os animais recuperados sempre eram devolvidos aos lugares em que tinham sido encontrados; isso me deixou com menos peso na consciência. 

deixei-o lá, me despedi, desejei que ficasse bem, mas senti enorme alívio por ter me livrado do fardo peludo. tinha cumprido minha missão. depois de cerca de 40 quilômetros percorridos no processo, me senti sugada pelos pensamentos todos que o macaco me suscitou. pensei muito nele, mas pensei também muito em mim. benevolência, culpa, remorso, raiva, angústia e mais um monte de outros sentimentos e sensações passaram pela minha cabeça e pelos meus intestinos. que tipo de pessoa eu era? uma boa pessoa burra? uma pessoa boa impulsiva? uma pessoa irresponsável? que diabo de pessoa se coloca em risco sem nem se dar conta de que está fazendo isso? honestamente, acho que qualquer pessoa um pouco mais desatenta para os perigos racionais estaria sujeita ao mesmo risco que eu.

e por que eu falo tanto de riscos, perigos e o caralho? porque no final da tarde daquele dia, eu recebi uma ligação do parque avisando que o sagüi havia morrido e pedindo que eu buscasse um centro de saúde para tomar a vacina antirrábica porque eu havia tido contato direto com o animal e havia a possibilidade dele ter morrido com raiva; não em decorrência dela porque parecia que a causa da morte tinha sido a queda mesmo, mas ele poderia estar contaminado com o vírus. uma amostra de sangue dele havia sido enviada para testagem, mas o resultado só sairia em 15 dias (!). a ligação foi lá pelas 18h15, momento em que comecei a entrar em pânico. eu disse que não havia sido nem mordida, nem lambida, nem arranhada, nem nada pelo macaco. eu disse que o macaco não tinha nenhum machucado, nem tinha qualquer secreção saindo de seu corpo. ele não babava e nem estava agressivo, mas a sujeita que falou comigo disse que eu deveria procurar o centro de saúde por precaução.

a partir daquele instante, comecei a buscar no google informações sobre a transmissão de raiva, sobre os horários de atendimento dos postos de saúde. liguei para minha sobrinha que trabalha na área da saúde e mandei mensagem desesperada para um amigo que é médico. eram quase 19h quando saí de casa rumo ao pronto-socorro na tentativa de tomar a vacina porque o destino do macaco já havia sido selado e o meu ainda parecia atrelado ao dele.

depois de perder tempo no pronto-socorro pela lotação e por não haver a vacina lá; depois de conversar com a minha sobrinha e com o meu amigo, e de ter sido tranquilizada por eles, a melhor ideia era voltar para casa e procurar o hospital certo na manhã seguinte. naquele noite, não dormi direito pensando que o vírus da raiva poderia já estar se espalhando pelo meu corpo. procurando pelos sintomas da doença era um grande ironia saber que eu tinha a maior parte deles: mal-estar geral, náusea, inquietude, sensação de angústia e irritabilidade, mas esses são sintomas que a população em geral tem nos dias de hoje pelo simples fato de estarmos todos vivos nessa porra de país.

me senti confusa, triste, angustiada de pensar que eu poderia morrer, acabar, encerrar minha existência, virar adubo - e tudo isso de uma forma horrível! - espumando, enraivecida, até que entrasse em coma e  finalmente fosse embora em alguns dias... pensei que ficaria tensa durante todo o período em que o vírus poderia estar incubado em mim, se preparando para me atacar, para me obrigar a mostrar o meu lado mais grotesco e eu senti raiva de mim por talvez ter me contaminado com raiva. que inferno! vida filha da puta querendo me foder até na hora de me matar, eu pensei. você sabe quantas pessoas se recuperaram da raiva depois de tê-la contraído? somente cinco pessoas no mundo inteiro! na porra do mundo inteiro e é bem óbvio que eu não faria parte dessa estatística porque pior do que morrer de raiva é sobreviver a ela, já que essas pessoas ficaram com sequelas. pelo menos essa sorte eu teria, de morrer de uma vez.

no outro dia, cedo, eu já estava na sala de espera do hospital para ser atendida, para ser vacinada, eu achava. Sabrina é o nome da enfermeira que prestou meu primeiro atendimento. ela foi muito atenciosa e humana, dizendo que eu poderia "acalmar meu coração" porque o simples contato com o pelo do animal, sem haver lesões em mucosas ou coisa parecida, não seria o suficiente para me contaminar, mesmo que o macaco tivesse raiva. saí de lá mais tranquila, mas não totalmente confiante. cada vez que meu telefone tocava, eu atendia pensando que seria alguém do centro e zoonoses dizendo que o macaco tinha raiva e ter raiva me enchia de medo.

tinha medo de morrer contra a minha vontade, medo de morrer só por ter sido boa, só por ter sido compassiva, me senti injustiçada antecipadamente, para logo em seguida pensar que a vida não é justa, que na verdade certas coisas só são como são e ponto. depois que acontecem a gente pode se perguntar por que, mas se culpar não muda acontecimentos, fatos que se sucedem apenas porque estamos vivos e, vivendo, estamos sujeitos a qualquer coisa do mundo. está tudo posto, todas as possibilidades estão diariamente à nossa frente, mas na maior parte das vezes, a gente nem se dá conta disso porque está seguindo a cartilha, fazendo o planejado, cumprindo o cronograma.

curioso é que justamente no dia em que eu saí pouquinha coisa da minha rotina, tomando café da manhã na padaria - coisa que faço quase nunca -, foi quando eu passei pela rua precisamente naquela hora e prestei atenção a algo que parecia destoar do caminho. naquele dia, eu desviei do meu caminho. mas quando é que a gente não desvia, não é? mesmo o dia mais monótono e parecido com todos os dias anteriores a ele é apenas isso, parecido. algo sempre muda; estamos sempre desviando, como adultos ou como crianças, por amor ou com raiva, o caminho é o desvio.