terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

sobre despedidas simbólicas


são 22h01. cheguei em casa. estou levemente embriagada. depois de quase vinte anos, enterrei meu pai. não, ele não estava mumificado e entocado no meu guarda-roupas. ele já não existe há quase vinte anos. quando ele morreu, eu era mais nova do que a Ana é hoje e eu estava a milhares de quilômetros de distância. não participei da despedida. não tive escolha; soube da morte pouco antes do enterro. eu não sabia de nada, não entendia coisa alguma.

hoje enterrei meu pai simbolicamente porque senti como se fosse. morreu sua irmã mais velha, minha tia. ela tinha 88 anos. as pessoas da família do meu pai - e também da minha mãe - vivem tanto quanto as tartarugas de Galápagos. elas insistem em continuar existindo apesar do passar dos anos. não sei se terei toda essa gana porque viver cansa muito. ela foi velada e enterrada no mesmo cemitério que meu pai. eu o visitei. fumei um cigarro com ele enquanto chorava e conversávamos mentalmente.

minha irmã me avisou que ela tinha morrido hoje de manhã e eu quis ir ao enterro por consideração ao meu pai. tia Zélia era meio que sua mãe. ele era o caçula. eu sou a caçula. descobri que "destronei" um primo do posto de neto mais novo do meu avô. pedi desculpas a ele porque não foi a minha intenção nascer e fazê-lo descer do trono. descobri que sou a sexagésima sobrinha entre os filhos de todos os tios. eram quatorze filhos. as pessoas gostavam muito de se reproduzir nos tempos passados. a sexagésima e a última. sou a caçula entre eles também, mas bela bosta. nessa família gigante, ser o mais novo nunca trouxe nenhuma vantagem, meu pai que o diga.

foi pra mim como o enterro do meu pai e eu não sabia que encontraria lá todos os meus irmãos e a Lili. acho que isso ajudou na sensação de que era dele que eu me despedia. nossa pequena família nuclear ali, junta. doeu quando eu vi uma das filhas da tia Zélia se desfazendo em lágrimas quando o caixão deixou a capela. doeu quando o caixão subiu a pequena ladeira seguido de inúmeras coroas de flores muito bonitas, mas sem todos os seus representantes. não sei porque não estavam lá, não sei se já tinham estado, não me cabe nenhum juízo apesar de fazê-lo só pra mim. me doeu ver o caixão fechado sobre a lápide esperando para ser descido. imaginei meu pai dentro dele e senti nas filhas da minha tia a angústia de saber que entram no cemitério duas pessoas, mas que só uma delas sai de lá porque a outra fica. última morada, adeus. fica a carne e segue a lembrança. senti a dor de deixar meu pai ali, apesar de aquela já ser a sua casa há tanto tempo. foi a concretização de uma morte que eu não presenciei e doeu.

me consola um pouco saber que a vista é muito bonita. gente rica é enterrada com vista pro mar. apesar do dia quente, na hora em que o caixão deixou a capela, chovia uma chuva de verão, dessas a que já estamos acostumados e, entre céu aberto e nuvens densas, apareceu um arco-íris como tem aparecido nos últimos dias, mas os que ficam o olham e o enxergam com os olhos molhados de quem vê nisso o sinal de alguma coisa. meu pai morreu no começo do inverno - mesma estação em que nasci - e chovia naquele dia também. perguntei pro Calo se no dia em que ele morreu havia muitas pessoas no velório; ele disse que sim, que não havia onde parar mais carros no estacionamento do lugar, de tantas pessoas que havia. ele era querido. que saudade, pai. descansa. 

sobre a vizinhança à noite

eu estava escrevendo, então só quando parei foi que notei o bebê, do prédio em frente ao meu, berrando. o choro é desesperado e imagino qual a sua demanda. sono, fome, dor, fralda suja, birra... enquanto não desenvolvemos a linguagem de maneira articulada, a atenção sempre vem por intermédio de altos decibéis, pela potência da garganta. será que gritamos e urramos em algumas situações pela falta de melhor forma de nos expressarmos? será que regredimos? ou será que só somos?

vejo a silhueta de um vizinho no mesmo prédio, emoldurada pela porta da varanda, à meia luz. as luzes do meu quarto, de onde escrevo, também estão acesas e penso se ele também me vê e elocubra qualquer coisa a meu respeito. agora ele está sentado, não sei o que faz, mas a minha curiosidade não vai além do que posso ver.

o bebê que tinha parado de chorar, voltou. ele grita como uma gata no cio; é potente. sua dor reverbera, mas tento abstrair; não há nada que eu possa fazer para apaziguá-lo. será que um colo diferente ajudaria? será que um colo diferente pioraria? não sei.

olhar pela janela me lembra de todas as vezes em que transei de luz acesa e janela aberta durante a noite, na madrugada. não foram muitas, mas não sei enumerar quantas. na ocasião mais divertida em que isso aconteceu, minha cama ficava sob a janela, como o é hoje em dia também, mas em outra morada. depois da foda, meu namorado e eu começamos a ouvir algo como aplausos e um pequeno coro que gritava do alto do prédio no outro lado da rua: mais um, mais um! sentimos algum embaraço, mas era tardio porque já havia acabado, não havia o que esconder, nem onde se esconder porque já estávamos em um lugar seguro - em casa. rimos, fechamos as cortinas e dormimos. fosse hoje, estaríamos na rede e eu teria virado uma estrela de filmes amadores contra a minha vontade. bons tempos em que a lembrança ficava emoldurada apenas por uma janela e não em uma tela sob o comando de um botão que pode recriar a ação à exaustão.

o bebê ainda chora, mas vou dormir.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

sobre o que a gente quer

noite passada eu sonhei com a minha vizinha que tem o meu nome; na verdade, sou eu que tenho o nome dela porque ela é mais velha do que eu; mas na verdade verdadeira, tenho esse nome porque é o nome do meu pai, mas ele quis enfeitar e trocou o C pelo K; suponho que tenha sido pra combinar com o sobrenome. e ao primeiro nome, juntou-se a minha avó materna inteira: Cristina Fernandez. sou também ela, a quem nunca conheci. sou toda a família paterna da minha mãe, Philipovsky, e sou toda a família paterna do meu pai, Koerich. apesar de ser a minha avó materna inteira, ela provavelmente também era toda a família do pai dela, Fernandez. os homens tomam todos os espaços, não é mesmo? até nos nossos nomes... que triste é isso, pensei agora.

apesar de a minha filha ter somente os meus sobrenomes, basta uns passos pra trás pra ver que não são meus, são de homens. não foram mulheres legadas adiante, foram filhas de homens, netas de homens. que bosta. o texto não era sobre isso, mas fica a reflexão em meio à minha náusea. em meio à tensão pré-menstruação, em meio aos seios explodindo de inchaço e sensibilidade, em meio à angústia mensal de existir e não tenho nem uma boceta de um sobrenome que tenha como origem uma mulher. você nasce com uma boceta, sofre a vida toda por inúmeras questãs em razão de ter uma boceta e no fim das contas o seu sobrenome é de um homem! veja, nada contra eles, apesar de ter muito contra. gosto muito deles e inclusive anseio por me relacionar com o gênero, mas foda-se porque isso não vai dar em lugar algum.

voltando ao meu sonho com a vizinha de mesmo nome. no meu sonho havia uma casa - como quase sempre há -, a dela. e havia também a minha; mas a dela era invejável no meu padrão onírico. ocupava um longo terreno e tinha os ambientes conjugados e ao mesmo tempo bem segmentados. tudo amplo, bonito, sofisticado, mas acolhedor. nessa casa tão bela aos meus olhos, ela tinha um quarto que me permitiu visitar. não era um quarto propriamente; era uma biblioteca/ateliê/estúdio/escritório (enquanto escrevo, a azia me consome), tinha um pé direito alto, estantes de livros dispostas no meio do espaço, inúmeros quadros e ilustrações e fotos de diversos tamanhos pelas paredes. no meio de tudo havia um cavalete e agora não me lembro o que ele apoiava, se havia nele um quadro ou não...

eu ficava maravilhada como todo o lugar exalava vida, ordem e cotidiano. parecia que ali dentro tudo fazia sentido. eu invejava a casa dela e sabia que na minha casa havia um espaço assim como o dela, mas o meu não estava tão bem acabado e presente como o dela; não tinha toda a história que o quarto dela tinha; o meu espaço era um rascunho, um devir, um vir a ser do espaço que já era o dela. mas sabe o que eu vejo? não estou falando dela; falo na verdade de mim, porque ela sou eu amanhã. ela é a minha aspiração. e eu vejo no quarto como quero estar depois, no futuro. no aconchego daquele quarto na minha casa, que também sou eu, tudo eu, sempre eu e sobre mim.

no fim do sonho, em algum momento aleatório, eu ia pra casa acompanhada de um pedreiro gato, um homenzarrão do tipo bruto sensível, com quem eu caminhava pela rua de braços dados, contemplando um céu cor-de-rosa alaranjado cujo sol se punha ao fundo em um cenário atribulado de movimento e de vida se dando por toda a parte, caótica. mas ali estávamos nós dois, tão entretidos um com a presença do outro. me senti amparada, segura. o que isso pode querer dizer? me diz aí, você que observa, que interpreta, que analisa. dorme de novo. sonha mais, joga pra fora o que deseja. deixa estar. sim, tô falando com você, Karla.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

sobre mais uma primeira sessão

estou nauseada. a porrada de hoje foi ainda maior do que a de ontem. ah, ontem não teve bem uma porrada. ontem havia plantas, cristais e cheiro bom que não me lembro qual era, mas era bom. ontem tive meu ego inflado enquanto pensava que logo estaria no divã. o caso nem é esse, foda-se quando ficarei olhando para o teto ao mesmo tempo em que vomito tudo o que preciso e me engasgo com as minhas próprias palavras.

hoje havia livros e livros e livros e até um bonequinho do Freud (?) na sala. acho que o analista é meio nerd e a sala tem cheiro de desinfetante barato ou de naftalina, não sei ao certo. vi Freud e vi Lacan. será que ele empresta os livros dele? a primeira impressão entre eles foi a de que eu queria o primeiro date, o de ontem, e sei exatamente o que tô fazendo aqui comparando o analista a um cara do tinder... as possibilidades são infinitas e a gente sempre pode encontrar um melhor, então pra quê sossegar no primeiro? que diabos! eu gostei do primeiro, mas o segundo, ele me machucou de verdade, então acho que vou ficar com ele.

o primeiro parece mais fácil, mais bonito, mais apresentável e não me refiro à pessoa - que fique claro, mas a todo o contexto. eu poderia ficar com ele porque parece mais conveniente, mas eu gosto mesmo do que me fere, do que me desestabiliza. foi demais pra mim, denso. foi uma enxurrada de coisas e tô me secando até agora, que inferno!

ontem, saí da sessão quase feliz. hoje, depois de chorar sob a máscara mais uma vez - graças à minha mãe - saí da sessão triste, doída e agora tô chorando de novo porque a gente acha que o problema são as relações de agora, mas oh, que grande surpresa pra mim, descobri, falei e comecei a chorar: o lance é a minha mãe e eu pequena, lá atrás. fui desmascarada por mim mesma na frente do grilo falante. minha mãe me dilacerando de novo e eu nem sabia do que precisava, mas era de amor. minha criança ali, fodida, e eu vejo que eu sou uma fraude, que todas as minhas grandes certezas sobre o que eu poderia esperar dela e que estão bem aqui no meu consciente, gritando comigo, podem até funcionar pra Karla de 36 anos, mas pra Karlinha, praquela menina, não querem dizer nada porque a sensação de falta, de abandono e de necessidade de aprovação e validação ainda estão aqui.

meu buraco é minha mãe e nem sequer tocamos no meu pai. durante muito tempo eu busquei nos caras o amor do meu pai e só encontrei nada. minhas faltas, meus vazios, eu achava que era o meu pai que eu queria e talvez seja, também seja. eu queria os dois e agora soluço chorando porque me veio à cabeça uma das visões mais significativas que já tive quando fumei salvia. nela, eu era pequena e meus pais vinham, cada um segurando uma de minhas mãos e caminhávamos felizes sob um céu amarelo. era algo como uma cúpula amarela, uma bolha e nós estávamos lá dentro. eu estava ali com meus amores primordiais, protegida, amparada, segura. eu era amada; na minha visão eles me amavam, eles amavam aquela criança. era o ideal de amor. era felicidade, era plenitude, era tudo o que aquela criança precisava. isso aconteceu há quase dez anos e voltou, emergiu em mim hoje. não que eu tivesse esquecido, é que hoje fez mais sentido do que nunca. eu sempre usei os alucinógenos esperando ter uma expansão de consciência, buscando entender o que tinha de mais profundo e escondido em mim e esteve ali o tempo todo desde então, eu só não entendia, mas agora eu vejo.

acabei de me jogar; vou experimentar então e ver o quão fundo eu consigo ir. desejem-me sorte porque eu sei que vai doer, mas vai me desenrolar, vai me deixar livre e eu vou poder transitar melhor entre o meu raso e as minhas profundezas, como eu sempre quis.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

sobre a primeira sessão

lá dentro a impressão já fora ótima. interlocutor que interage. não sei qual é o princípio da psicanálise que diz que o analista deve ouvir. isso se aplica? existe de fato? usei a expressão "de fato" muitas vezes durante a sessão e me senti repetitiva e então me policiei. isso quer dizer que as coisas que eu falei ocorreram como foram narradas por mim? eu as cristalizei pela minha perspectiva e as deixei estáticas, chapadas como uma pintura rupestre sem graça?

ele me provocou; eu gostei. isso é um fato. quero análise com um grilo falante. quero uma consciência fora de mim, me cutucando com a vara curtíssima, me ferindo, me abrindo. saí de lá vibrante, quase feliz. não encontro a música que quero ouvir porque não sei qual é. parece que me limitei e ouço, ouço, ouço, mas não é o que quero escutar, não é a música que corresponde a como me sinto. quando eu canto junto com a música, me sinto potente, afinada, mimetizada; quando canto sozinha, sou só uma voz desafinada, perdida no meu próprio ritmo.

é como buscar o que comer quando não se sabe do que tem fome. você come o mundo, o regurgita e continua insatisfeito. quero me satisfazer. quero entender o desejo, o meu desejo, por que o desejo para daí poder gozar.