são 22h01. cheguei em casa. estou levemente embriagada. depois de quase vinte anos, enterrei meu pai. não, ele não estava mumificado e entocado no meu guarda-roupas. ele já não existe há quase vinte anos. quando ele morreu, eu era mais nova do que a Ana é hoje e eu estava a milhares de quilômetros de distância. não participei da despedida. não tive escolha; soube da morte pouco antes do enterro. eu não sabia de nada, não entendia coisa alguma.
hoje enterrei meu pai simbolicamente porque senti como se fosse. morreu sua irmã mais velha, minha tia. ela tinha 88 anos. as pessoas da família do meu pai - e também da minha mãe - vivem tanto quanto as tartarugas de Galápagos. elas insistem em continuar existindo apesar do passar dos anos. não sei se terei toda essa gana porque viver cansa muito. ela foi velada e enterrada no mesmo cemitério que meu pai. eu o visitei. fumei um cigarro com ele enquanto chorava e conversávamos mentalmente.
minha irmã me avisou que ela tinha morrido hoje de manhã e eu quis ir ao enterro por consideração ao meu pai. tia Zélia era meio que sua mãe. ele era o caçula. eu sou a caçula. descobri que "destronei" um primo do posto de neto mais novo do meu avô. pedi desculpas a ele porque não foi a minha intenção nascer e fazê-lo descer do trono. descobri que sou a sexagésima sobrinha entre os filhos de todos os tios. eram quatorze filhos. as pessoas gostavam muito de se reproduzir nos tempos passados. a sexagésima e a última. sou a caçula entre eles também, mas bela bosta. nessa família gigante, ser o mais novo nunca trouxe nenhuma vantagem, meu pai que o diga.
foi pra mim como o enterro do meu pai e eu não sabia que encontraria lá todos os meus irmãos e a Lili. acho que isso ajudou na sensação de que era dele que eu me despedia. nossa pequena família nuclear ali, junta. doeu quando eu vi uma das filhas da tia Zélia se desfazendo em lágrimas quando o caixão deixou a capela. doeu quando o caixão subiu a pequena ladeira seguido de inúmeras coroas de flores muito bonitas, mas sem todos os seus representantes. não sei porque não estavam lá, não sei se já tinham estado, não me cabe nenhum juízo apesar de fazê-lo só pra mim. me doeu ver o caixão fechado sobre a lápide esperando para ser descido. imaginei meu pai dentro dele e senti nas filhas da minha tia a angústia de saber que entram no cemitério duas pessoas, mas que só uma delas sai de lá porque a outra fica. última morada, adeus. fica a carne e segue a lembrança. senti a dor de deixar meu pai ali, apesar de aquela já ser a sua casa há tanto tempo. foi a concretização de uma morte que eu não presenciei e doeu.
me consola um pouco saber que a vista é muito bonita. gente rica é enterrada com vista pro mar. apesar do dia quente, na hora em que o caixão deixou a capela, chovia uma chuva de verão, dessas a que já estamos acostumados e, entre céu aberto e nuvens densas, apareceu um arco-íris como tem aparecido nos últimos dias, mas os que ficam o olham e o enxergam com os olhos molhados de quem vê nisso o sinal de alguma coisa. meu pai morreu no começo do inverno - mesma estação em que nasci - e chovia naquele dia também. perguntei pro Calo se no dia em que ele morreu havia muitas pessoas no velório; ele disse que sim, que não havia onde parar mais carros no estacionamento do lugar, de tantas pessoas que havia. ele era querido. que saudade, pai. descansa.
Que texto bacana, cheio de nuances, pungente... Tenho lido seus textos com prazer, Karla. Literatura e vida como uma só coisa indivisível, pra mim também só serve se for assim.
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