quarta-feira, 20 de maio de 2020

sobre comprar cigarros

saí para comprar cigarros de carro e já na garagem eu senti pena de mim mesma, pena de você, pena de todo mundo que eu conheço. eu senti um desespero tão grande que o ar quase não me entrava mais. estamos todos perdidos dentro de nós mesmos nos afogando enquanto uma corda balança lá em cima, mas não vemos a corda, ficamos nos debatendo, eu fico me debatendo e vejo flashes de tudo mais colorido, mais vívido como se fossem lampejos de sanidade, de uma realidade distante. saí do posto pro lado errado; esqueci do carro e ia voltar a pé pra casa.

tô ensandecida. não tá tudo bem, não tá nada bem! o que é que a gente está fazendo nessa merda?! good vibes é o caralho! enfia todo esse sorriso imbecil no cu. a vida não é bela porra nenhuma! tá todo mundo na merda, mas eu só sei da minha merda porque é embaixo do meu nariz que ela está. foda-se! daí escuto uma música aleatória que faz eu querer me desfazer em mil pedaços. não me entendam mal, mas se não ficar louca aqui, fico onde? odeio a quarentena, odeio não poder sair por aí dando a rodo, mas eu só queria uma porra de um abraço, o mínimo de afeto. devia ter comprado alguma bebida porque só assim poderia aquietar meu coração, mas a idiota não trouxe, então eu fumo, choro, soluço, esfrego meu rosto, seco as lágrimas na manga do moletom, ouço músicas até eventualmente dormir, sabendo que amanhã vai ser tudo igual. vou seguir desnorteada, olhando pras paredes, cavando sentidos.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

sobre esquecer

cheguei em casa ébria, mandíbula travada, gritando, não sei por quê. As pernas ainda trêmulas e, nos dedos dos pés, ainda sentia a língua quente que por ali havia passado. Conversamos demoradamente, olhos mergulhados nos olhos, bebemos um tinto do qual não me lembro o nome; mas estava bom. senti as bochechas corarem, dei um suspiro e olhei para cima. veio até mim, colocou as mãos no meu pescoço e começou esfregá-las delicadamente contra a minha pele. eu disse que queria tomar um banho, pois senti minha pressão baixar aos poucos. ele, então, sugeriu me acompanhar; aceitei. enchemos a banheira e eu entrei. a água cobria meu peito. abracei meus joelhos e encostei minha cabeça sobre eles. senti suas mãos massageando minhas costas, me acarinhando com cuidado. a água quente evaporava e eu respirava relaxada. depois, encostei minha cabeça sobre a borda e ele ensaboou todo o meu corpo. tirou minha perna esquerda da água e pôs-se a chupar todos os dedos do meu pé. fiquei em êxtase. queria me afogar ali mesmo.

desculpe pelos transtornos

não gosto de saber que a praia vai voltar a ser só a praia de sempre, aquela em que todos vão. eu gostava de lá porque a praia era nossa. não gosto de saber que vou precisar ressignificar todas as músicas que ouvimos juntos e terei que fazer de conta que as músicas que você me apresentou não têm nada de especial. não gosto de saber que o caminho que eu fazia até aí precisa ser de novo um caminho qualquer, e que a rede em que deitamos e na qual conversamos tantas vezes, a partir de agora, só terá a mim pra embalar. odeio, odeio, com raiva e com força o fato de que, bem, eu fui embora e nem ao menos nos despedimos. e se eu engasgar? e se eu morrer nesses dias de clausura, e se for você a morrer, de doença ou atropelado? e, se, por sorte ou azar, não nos vermos nunca mais?

não tenho mais quem me estale os dedos ou as costas, mas você tem, porque isso é o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa, eu não tenho; você me estalava. a singularidade está no que o outro nos oferece de diferente, naquilo que não vai haver igual pra quem recebe. eu não gostei do texto, mas agora você não tem mais a mim pra dizer isso. ele não é bem traduzido, é estranho e você titubeou várias vezes, alguém deveria ter dito.

eu preciso dissociar o cheiro de óleo de gerânio, das conversas que tínhamos na entrada da sua casa no inverno. o cheiro me leva pra lá todas as vezes. preciso esquecer todas as conversas nas calçadas, nas escadas, nos postos de gasolina... preciso criar novos sentidos pras coisas mais simples e mais significativas que fazíamos porque era nesses lugares, à noite... eu nem consigo mais olhar pra lua sem parecer que meu coração vai sair pela boca, então não olho. ninguém mais vai colocar flores no meu cabelo, porque isso é o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa, e já está fazendo.

eu pensava que era especial pelas suas ações, mas isso é só o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa. achava que eu era especial, mas você só estava sendo o que é, e pode ser com qualquer pessoa. eu só vi o que quis ver, mas não consegui enxergar, ou não quis? costumo achar que o que é óbvio pra mim também o é para os outros, mas geralmente estou errada. você viu que eu me enganava e não disse nada, talvez porque pra você fosse evidente que era só como você é; toda a imagem que eu tinha criado de você me incluía nela como alguém especial, porque era como eu queria me sentir.

"me desculpe pelos transtornos" é a frase mais seca e desprovida de afeto que alguém poderia me dizer. mas isso é quem você é, é o que você faz, e pode fazer com qualquer pessoa.