terça-feira, 23 de agosto de 2011

Limpar ou não limpar?

Nunca gostei dos serviços domésticos, apesar de saber fazer tudo dentro de casa. Aliás, qualquer macaco sabe fazer o serviço da casa. Cresci com a minha mãe me botando pra trabalhar. Ela sempre disse que só podia mandar quem sabia fazer; e isso é certo. Se você gosta que a sua casa pareça um brinco, tem que saber como deixá-la assim.

(Aliás, mesmo não gostando do trabalho sem fim que demanda uma casa, é importante saber fazê-lo. Acho um absurdo gente que não sabe lavar um talher sem deixá-lo ensebado ou que não sabe fazer um feijão com arroz sem fazer drama de que não tem talento pra cozinhar. A gente aprende fazendo e isso serve pra mulheres e homens. "É de menino que se torce o pepino" já diria o ditado. Se você não aprende essas coisas quando pequeno, aos poucos, e a necessidade de fazê-las, é provável que você cresça sendo uma bela bosta. Não adianta ser bom na escola e não saber onde fica a vassoura; não adianta viajar pelo mundo e não saber lavar a porra da sua calcinha; não adianta ser lindo e sarado se você não sabe passar as suas roupas, mas enfim...)

Desse jeito eu aprendi, mas a minha mãe era bem esperta porque enquanto ela fazia coisas mais leves como estender a roupa, meu irmão e eu limpávamos a casa. Ela sempre foi boa em mandar, principalmente em mandar que os outros fizessem coisas que ela era perfeitamente capaz de fazer sozinha; isso me dava nos nervos.

Mas com ela também aprendi a cozinhar, depois de muito feijão e arroz queimados por esquecimento. Ela ia trabalhar, me deixava cuidando da comida que ficava no fogo, eu ia assistir a Xuxa e fodia tudo. Comida torrada, cheiro de comida torrada pela casa e me batia o desespero! A esculhambação ia me tomar inteira ao meio-dia; mas porra, eu tinha uns oito, nove anos... É muita responsabilidade pra uma fedelha uma panela de pressão! Enfim, hoje eu cozinho decentemente e quem já provou minha comida, sabe que ela é boa.

Mas voltando à arrumação... Eu achava que ela era neurótica porque podia estar tudo arrumado, mas se tivesse um copo na pia a tempestade estava feita: "Ninguém me ajuda, essa casa tá sempre uma zona!", e pensava eu que quando eu tivesse a minha casa as coisas seriam diferentes.

Pois então, hoje tenho a minha casa e também sou neurótica; as coisas são iguais. Mas é que, puta que pariu, essa porra de serviço não acaba nunca! Casas deveriam ser limpas e lacradas e deveríamos viver num quarto anexo que seria um chiqueiro.

Eu arrumo tudo, limpo tudo, tiro o pó, aspiro, passo o pano, lavo a louça, guardo a louça, levo o lixo pra fora, coloco a roupa pra lavar, estendo a roupa, recolho a roupa, dobro a roupa e a coloco no cesto pra passar, limpo a caixa de areia dos gatos, limpo privadas, pias, espelhos... Acontece que eu moro na minha casa e é isso que estraga tudo.

No mesmo dia aparece mais louça pra lavar e o chão já começa a ficar sujo de novo. É pelo de gato, meu cabelo que cai sem medida, os gatos que derrubam a tigela de água deles e fazem uma lambança diária na cozinha... É uma merda de trabalho ingrato... E tudo pra quê?

Se arrumo, tudo aparece de novo de qualquer jeito; se não arrumo, a cagada toda vai se acumulando de uma maneira que me deixa doida! Odeio arrumar a casa, mas adoro ter a casa arrumada. Às vezes baixa em mim o espírito da dona de casa perfeita e eu arrumo até as gavetas, jogo quilos de lixo fora, papelada de anos, arrumo o guarda-roupas; mas na maior parte do tempo, queria tacar fogo em tudo e sair correndo.


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Eu, escritora

Não sei quando foi que comecei a escrever, não me dei conta do que fazia. Já tive diários quando era menina, mas não era muito assídua na tarefa de falar sobre o meu cotidiano. Depois que cresci, a verdade é que nunca me imaginei em nenhuma profissão muito significativa. A primeira coisa que quis ser foi arqueóloga, não sei por que cargas d’água. Fui crescendo e passei por várias delas... Professora, médica, veterinária, vendedora, atriz, diplomata... Acabei me formando em Letras, e essa formação não me dá ao menos um nome; “No que você se formou mesmo?” – Me formei em Letras, sou letrada? Acho que não. Das aspirações profissionais da infância passei a algumas outras que me traziam frustração: ser dona de casa, desempregada, sem perspectivas porque puta que pariu (!) não sei o que me deleita! Não sei do que gosto!


Escrever, então, pensei, poderia ser uma boa... Mas sobre o que eu escreveria? Não sou imaginativa como os grandes escritores que criam personagens densos com histórias conflituosas e desfechos bem pensados. Achei que seria uma ideia escrever sobre mim, sobre as minhas vivências, sobre as minhas parcas impressões acerca do mundo, mas vendo agora que não sei sequer o que me excita na vida, descubro que sou uma farsa. Mas isso também é mentira porque já sei disso há tempos, e escrever realmente me faz feliz.

O problema é que nunca acreditei em mim, porque sempre tive os outros como referência, os outros que são melhores do que eu. Sempre que acreditei um pouco mais no meu potencial, bastava que olhasse pro lado pra ver que havia alguém acima, e isso me fazia cair. Caio todos os dias por não conseguir ver em mim mesma tudo o que tenho de único.

A autoajuda vem agora: ninguém é melhor do que eu posso ser; somos únicos em tudo. Eu busco referências ao lado que me desestabilizam, como se elas só servissem pra provar que não sou capaz de fazer o que quero. Esqueço, com isso, que eu também sou referência pra alguém. Alguém me lê, me acha boa e me visita todos os dias esperando que eu tenha escrito algo novo.

Alguém espera ouvir de mim algo que faça uma mínima diferença em sua vida. Eu posso tocar as pessoas; posso ser uma distração em meio ao trabalho, posso ser ridicularizada, posso me tornar uma lembrança agradável ou desconcertante, posso xingar e lavar a alma de alguém e posso também fazer alguém chorar, porque eu sou depravada, mas também sei ser dramática, melancólica, doce e adulta. Eu posso fazer com que você se veja através de mim.

A gente consegue fazer a diferença na vida de várias pessoas, todos os dias e, talvez, a graça de tudo esteja nisso. Estamos sempre marcando as pessoas que cruzam os nossos caminhos. Elas nos deixam marcas e deixamos impressões nelas também. É tudo muito óbvio, mas eu gosto de pensar nisso, e decidi que, mesmo que o meu alcance seja limitado, deixarei a minha marca escrevendo.

sábado, 6 de agosto de 2011

Infância IV

Naquela cidade, a menina conheceu sabores diferentes. Nunca simpatizou com o açaí, apesar de todos em sua casa terem gostado do fruto. As batedeiras ficavam espalhadas por todos os cantos, e na hora do almoço, havia filas para comprar aquele sumo, que era a base alimentar de grande parte da população. Do fino ou do grosso, colocado em sacos plásticos e comprado aos litros, tomavam acompanhado de charque, camarão, farinha demandioca, que lá era amarela e grossa - deliciosa-, com farinha de tapioca, tamuatá ou puro, aquele era o fruto que dava a leseira depois de comê-lo, melhor dizendo, depois de tomá-lo.

Os camarões do rio também eram gostosos, e vendidos pelas ruas em carrocinhas, a preços módicos. A menina não gostava muito do cheiro, mas o sabor... Ela aprendeu a gostar de peixe frito, de palmito de jussara, de macaxeira e de mingau de tapioca. Mas nunca conseguiu sentir nem o cheiro da maniçoba, tão apreciada por aquela gente; tacacá, também, não engolia.

Os sabores das comilanças eram geralmente realçados por uma pimentinha que a menina conhecia bem, mas não era porque gostava; conhecia o ardor da pimenta-de-cheiro desde os oito anos, quando uma vez, numa briga com o irmão, ele por vingança cruel de criança, esfregou-lhe uma dessas na boca da pequena. Naquele dia, de boca inchada e sem jeito de parar de arder, viu que nunca provaria seu molho amarelo.

Naquela cidade, a menina aprendeu a dançar carimbó, ouvindo Pinduca. Lá também aprendeu o que é brega, o ritmo musical, que tocava nos bares, nas rádios, nas casas dos vizinhos, a qualquer hora do dia ou da noite. Com esse som, os casais dançavam colados, rodopiavam e suavam de um jeito safado e, irremediavelmente, contagiante. Ela não gostava da música, mas não havia como não aprender ao menos as suas letras, visto que estavam por toda a parte.

Mas lá, naquele lugar, ela descobriu músicos talentosíssimos, que cantavam a região com todas as belezas que ela tinha, e ainda tem. Com nostalgia, a menina se despede do relato de hoje, com Osmar Júnior cantando o Norte.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sobre as pessoas que caem

Você anda distraído pela rua, não vê um pequeno buraco, pisa em falso, torce o pé e empacota no chão. Se ninguém o vê, dá graças; se há muitas pessoas por perto, é quase certo que não nenhuma delas vai ajudá-lo a se levantar, mas que elas rirão, apontarão para você e o acharão um idiota por ter caído, pode ter certeza.

Nunca achei engraçado ver alguém caindo, nem quando criança, e crianças podem ser bem escrotas ao verem alguém no chão, mas isso nada mais é do que o reflexo da educação que receberam de seus pais. A falta de educação e de solidariedade ficam claras quando o assunto é uma queda.

Fato é que todo mundo cai. Se você tem pernas, anda por aí, descalço ou de salto alto, pode cair. Você pode escorregar e cair de bunda; pode tropeçar nos seus próprios calcanhares e cair de joelhos. O cóccix sente o impacto e seu traseiro pode doer por semanas. Seus joelhos podem ficar ralados e com hematomas, e o mesmo acontece com as suas mãos, que o amparam. Suas mãos impedem que você caia de cara no chão e que quebre os dentes ou o nariz; suas mãos também impedem que se faça um corte no seu queixo.

São as suas mãos que o impulsionam para que você se levante do chão e para que, mais à frente, possa cair de novo. Pode ser que haja alguém do seu lado, em quem você possa se apoiar para não cair, mas também pode ser que você caia e leve essa pessoa para o chão consigo. Pode ser ainda que só você caia, e que ela o ajude a se levantar e a passar logo pela multidão, de cabeça erguida.

Você, em algum momento da sua vida, vai cair; é questão de tempo. As pessoas caem por diversas razões. Elas caem porque andam distraídas e a queda vem para despertá-las; elas caem por medo de cair e também por excesso de autoconfiança. Você pode cair andando em um terreno plano; subindo ou descendo um lance de escadas; pode cair do alto de você mesmo.

Caímos sempre, todos os dias, e cair no meio de uma rua movimentada nos remete a uma vergonha tão intensa, que só gostaríamos de ter caído em um buraco negro, que nos tragasse e nos levasse para longe do riso alheio, porque cair é mais do que apenas perder o equilíbrio; cair é ficar exposto, vulnerável. Cair é ficar pronto para ser chutado, pisado, levado por quem passa.

Melhor é quando caímos sozinhos e podemos rir de nós mesmos; podemos praguejar o chão, nossos sapatos, os degraus, os buracos, as poças que nos fazem escorregar ou mesmo os nossos pés, por não terem visto que o tombo era iminente.

Hoje choveu o dia todo. Ainda chove, na verdade. Saí de casa de botas com solado de borracha, mas eles não puderam me conter. No piso molhado, em algum milésimo de segundo aconteceu: senti meu pé torcer e quando vi, já estava no chão. O joelho direito ardia pelo atrito com o jeans. Xinguei tudo ao mesmo tempo e levantei. Fui andando, mas pelo rabo dos meus olhos, vi as caras maledicentes de quem tinha presenciado o meu tombo. Eu não olhei para trás.

Depois, analisei os estragos. Palmas das mãos doloridas e  pretas do chão sujo; joelhos ralados e instantaneamente roxos. Acontece. Amanhã caio de novo.