sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

sobre o peso do contraditório

Eu não sei dizer exatamente o que me levou para aquele peso; provavelmente não se tratou de um único fato, acho que foi uma somatória de coisas que envolviam uma mãe muito jovem, mudanças repentinas na vida, um namoro que trazia sensação de conforto, muita comida, pouco movimento, novos traumas sendo causados e antigos traumas sendo revirados, uma graduação e o cuidado com uma filha pequena. Nessa época, eu não trabalhava; não precisava trabalhar e mesmo assim, me sentia consumida, mas só entendi isso recentemente.

Para além de todos esses fatos, hoje, encontro uma explicação que faz sentido para mim. Durante todo o período em que a Ana mamou em meu peito – eu não me dava conta na época –, ela era totalmente minha, totalmente dependente dos meus cuidados. Eu era como uma deusa, lembra? Apesar do cansaço, apesar de viver desgrenhada, apesar de achar meu corpo horroroso, apesar de não me reconhecer, apesar de não ter tempo, apesar de tudo tudo tudo, eu tinha ali um pequeno ser gerado por mim, crescido de mim, nutrido por mim e isso é muito poderoso. Enquanto ela mamava, eu estava só um pouco acima do peso, uns quatro quilos, nada demais. Depois que a amamentação cessou e que eu passei a ser a mãe de uma bebê que comia comida, que não se alimentava mais de mim, acho que – inconscientemente – comecei a comer mais para tentar suprir o vazio de não ser mais a deusa, a fonte de nutrição. Eu comia na tentativa de preencher novamente o ventre flácido, de dar a ele forma, de fazê-lo crescer outra vez, para me dar a sensação de que eu estava grávida, plena, recheada com uma vida que dependesse de mim de novo. E assim, comendo comida, retomei o peso do final da gravidez, ainda com um acréscimo. Eu não estava gestando um novo bebê; eu estava preenchida de gordura e cocô, comendo todas as minhas angústias e as ambivalências que me faziam sentir muito foda, sem saber, e de ter toda a ciência de que me sentia um lixo.

Talvez todo o excesso de peso tenha sido a forma que meu corpo encontrou de enganar meu inconsciente para que ele ainda acreditasse que era tão incrível quanto no período em que gestou e nutriu e teve a maior sensação de potência que poderia ter em qualquer tempo da vida. A questão é que eu não pensava nisso naquele momento; eu não pensava em nada. Eu só era arrastada pelas demandas todas da minha existência, que iam me levando sem que eu soubesse para onde estava indo ou por onde passaria.

Na maior parte do tempo, não me percebia maior, mas quando tirava fotos, me via enorme, disforme, envelhecida; não sabia quem era aquela pessoa, me sentia um fracasso. Meus humores se alternavam entre me achar gorda e achar que precisava emagrecer, e a certeza de que emagrecer seria impossível e, então, aliviava a angústia com mais comida gostosa, compensando os anos de moedas contadas. Durante todo esse período houve momentos em que fiz dietas malucas, restritas, mas que duravam pouco, e outros em que eu só comia. Nunca comi compulsivamente, mas me alimentava muito mal, me nutria pouco e quase nunca me movimentava. O ciclo era retroalimentado diariamente: comida, culpa, inércia, ansiedade, comida...

Não quero que isso seja uma ode a nada, mas eu estava gorda e infeliz e sequer me dava conta de como me sentia de verdade; só ia levando. Não quero também que a maternidade seja a protagonista do que escrevo. Quero escrever acerca do que gerar fez comigo, com meu corpo, e como me afetou em relação a quem eu era antes de engravidar e depois de ter me tornado mãe. Como eu me enxergava antes e como essa compreensão foi sendo revista, editada e elaborada ao longo de todos esses anos.

A onda de feminismo e de aceitação do corpo foi um evento bem mais recente na minha vida, coisa de sei lá, dez anos para cá, e foi um dos motivos mais importantes para que eu pudesse me enxergar em outras mulheres comuns, para que conseguisse ver beleza nelas e daí percebesse que eu também era bonita. Sentia-me segura. Não tinha vergonha do meu corpo, mas não me sentia confortável nele. A princípio, eu o via, mas não me via nele; mais tarde, eu me reconheci tanto naquele corpo que me habituei a ele, a ponto de aceitá-lo, em termos.

O feminismo me ajudou muito com isso, mas nem ele foi capaz de me salvar das arapucas do patriarcado. Me relacionei com muitas pessoas e até me casei, assim, de papel passado, com um homem que quis ficar comigo, que me escolheu – em uma fase na qual eu ainda tinha o sonho dourado do casamento e de todas as idiotices que os filmes americanos e as novelas nos fazem acreditar. Pensei que não poderia abrir mão da proposta porque aquilo era uma oportunidade (!), uma chance de mostrar para o mundo e para mim mesma que eu era digna de ser amada, apesar de gorda e com a barriga feia (sempre carregando o peso daquela barriga comigo). Conseguem perceber aqui as ambivalências?

O casamento não deu certo por inúmeras razões e se transformou em outra coisa: família por escolha – a relação de amizade é muito mais feliz. Fato é que depois do matrimônio, voltei a me relacionar com homens com os quais me sentia ainda mais livre. Eu transava com a luz acesa, usava biquínis de fio-dental, tomava banhos de mar pelada. Eu não me importava com o que pensavam de mim; se me tomariam como uma mulher sem noção do ridículo ou se fariam qualquer outro juízo parecido. A sensação era ótima, tanto que escrevi a respeito e postei uma foto minha pelada aqui -> sobre o corpo e era genuína a maneira que me sentia naquele momento, mas ela continuou se modificando.

Retomando a linha do tempo, dos meus dezenove anos para o ano da foto que acabei de mencionar, passaram-se dezessete, a idade da filha adolescente, que queria se distanciar de mim a todo custo para que pudesse se ver sem que eu fosse uma sombra de projeções sobre ela. Eu era a mãe culpada – como todas as outras –, que tinha receio de ser rejeitada pela filha, que deixava limites serem extrapolados por medo e que depois tentava recolocá-los de maneira tirânica. Era a mãe onerada, descompensada, perdida, que se via em fim de linha quanto ao que fazer, como agir, como ser mãe? Como não errar? Como acertar sempre? Como não traumatizar? Como eu poderia querer tanto em relação ao segundo eu que, finalmente, eu havia entendido, pela dor, que era um outro? De vontade independente e diversa. Eu mal sabia de mim, juro. Nesse ínterim, nós duas, juntas e mesmo separadas, éramos uma grande amálgama de angústias, desejos, frustrações e ânsias.

 

(continua...)

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

sobre o leite, o peito e a barriga

 Depois do parto, percebi que a vida seria cada vez mais ambivalente. Ao mesmo tempo em que me sentia felicíssima por ver minha filha se desenvolvendo bem, via a mim mesma abandonada; me abandonei por resignação de perceber que nunca mais seria a mesma, por falta de tempo até para lavar os cabelos. Me deixei porque a dedicação tinha que ser a ela; eu tinha medo de ir ao banheiro e de voltar e ela ter morrido, caído, quebrado. Cortei meus cabelos para ter mais tempo. Em mim, só notava os absorventes de seios encharcados e o cheiro de leite azedo. Amamentando, eu logo perdi os quase vinte quilos que havia engordado na gravidez.

Parei de amamentar a Ana quando ela tinha um ano e meio. Aos seis meses houve a introdução alimentar e, depois disso, ao longo do tempo a alimentação foi substituindo meu leite. Meu peito era feito de chupeta, usado na hora da manha, assim como foi usado como cala-boca de neném inúmeras vezes em qualquer lugar que estivéssemos. Bebê começa a chorar, mete o peito na boca. Era o calmante, já que ela não usou chupeta de plástico. Eu era a chupeta dela. Quando pequena, sempre dormíamos juntas, eu dando o peito a ela até que caísse no sono, isso quando eu não desfalecia junto. Para mim, amamentar foi um grande prazer, mas os seios que antes precisavam ser intercalados para que um não ficasse mais cheio e dolorido do que o outro, começaram a não se encher mais de leite como antes. Estavam sendo deixados de lado aos poucos.

Então, conheci meu primeiro namorado pós-maternidade e queria poder restituir algo de mim que não tivesse a ver com ser mãe, com ser a mãe que usa sutiã de amamentação e que tem sempre uma golfada de vômito seco na roupa. Fui ao médico e disse que queria parar de amamentar, já era hora. Tomei um remédio que secou o restante de leite que eu produzia. Naquela época, as minhas condições financeiras começaram a ficar melhores e eu comecei a usar um carro como meio de transporte. Minha locomoção antes se dava a pé ou de ônibus. Não sei se em função dessa mudança, que tornou minha vida ainda mais sedentária – já que eu não praticava nenhum tipo de atividade física e que isso nunca havia sido um hábito em minha vida – paulatinamente, comecei a ganhar peso.

Quando a Ana tinha cerca de quatro ou cinco anos, eu estava pesando mais ou menos o quanto pesei no final da minha gestação. Algum tempo depois, o peso ultrapassava o final da gravidez, ou seja, não havia mais um bebê dentro de mim; eu não estava grávida, mas estava ainda maior do que quando havia. Esse ganho de peso não foi prontamente notado porque eu ainda estava abandonada por mim. Durante o transcorrer dos anos, fui me acostumando, a contragosto, ao que tinha se tornado meu corpo, sem perceber que ele estava crescendo. O fato de conseguir me relacionar afetivamente de novo fez com que isso passasse batido. Sabe o casal que quando se conhece está magro e depois engordam juntos? Foi isso que aconteceu comigo.

A relação mascarou o fato de que todas as vezes que eu olhava para o meu ventre mole, flácido e cheio de estrias, pensava estar “arruinada para sempre”; tinha vontade de chorar, sentia uma tristeza profunda, mas tentava dizer a mim mesma: “sua barriga foi a casa da Ana, sua filha que você tanto ama”. Sim, mas eu também amava a minha barriga de antes e o fato dela ter sido casa da minha filha, não diminuía o sentimento de “puta que pariu, nunca mais serei a mesma” que eu sentia todas as vezes que me via no espelho.

Ainda assim, ter um namorado após a maternidade foi importante para me validar novamente como mulher porque eu, com vinte e um anos, era uma menina com um bebê de quase dois e uma barriga feia. Quem seria o cara de mesma idade que namoraria uma mãe e que ainda tivesse a minha barriga horrenda? – sim, eu pensava isso, então, quando surgiu uma pessoa que conseguia me ver inteiramente, para além do meu corpo e do meu segundo eu, pude me sentir desejada e foi quando, pela primeira vez, depois de tanto tempo, voltei a me sentir bonita.

 (continua...)

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

sobre parir, nascer e morrer para nascer de novo

Quando eu engravidei, tinha só dezoito anos. Naquela época os hormônios estavam borbulhando e eu ainda não tinha consciência de que todo o amor que buscava não viria tendo o sexo como uma moeda de troca. Eram muitas as variáveis: os hormônios, a falta de amor, a busca desesperada e inconsciente por afeto, aceitação; mas não é sobre essa busca que quero escrever neste momento.

Hoje quero escrever sobre como pari um bebê e sobre como pari a mim mesma depois de vinte anos. Durante a gestação, enquanto meu corpo produzia um ser inteirinho dentro do meu útero, eu o vi se modificar de uma forma incontrolável. Quando minhas primeiras estrias apareceram, ainda aos onze anos nos quadris, isso foi atribuído ao estirão de crescimento da idade, porque cresci em altura, mas era muito esguia.

As estrias se espalharam, ao longo dos anos, pelos seios, nádegas, coxas; por todas as partes que poderiam ser objetificadas por um homem e que eu cresci ouvindo que contavam negativamente nos quesitos de beleza feminina. Havia muitas estrias, como se a minha pele fosse uma lagoa calma e transparente refletindo a luz solar em um pequeno balanço de suas águas. Elas estavam ali, eu as via igualmente na minha mãe; meu corpo era igual ao dela. Tínhamos as mesmas formas e eu não a achava bonita; não me achava bonita. Ouvia as pessoas a elogiarem e então conseguia ver beleza nela e daí em mim.

De volta à gravidez, quando a barriga começou a ficar mais evidente, lá pelos seis meses apareceu a primeira estria, assim, sozinha, na região inferior da barriga. Me lembro de ter chorado muito porque sabia que ela não seria a única; sabia que a única parte desejável e intacta do meu corpo seria maculada pela maternidade antes mesmo que ela começasse de fato. Chorei do mesmo modo que chorei quando menstruei pela primeira vez; porque sentiria dores todos os meses, porque precisaria usar um absorvente estranho entre as pernas, porque meu crescimento seria mais lento dali em diante, porque eu poderia engravidar caso transasse sem prevenção, porque, enfim, havia me tornado uma “mocinha”, uma mulher.

Esse primeiro luto vivi entre absorventes ensanguentados e cólicas; entre seios inchados e doloridos e oscilações de humor. O luto de deixar de ser uma menina para, literalmente, de um dia para o outro, precisar me acostumar com uma nova realidade que se impunha sem pedir qualquer licença e sem que eu tivesse qualquer escolha de poder negá-la. Era isso.

Do mesmo modo, uma vez que o bebê estivesse dentro da barriga e pronto para nascer, isso se daria de qualquer jeito. No prazo x, em que a gestação dura 285 semanas, o que equivale a 26 meses – sim, eu sei que não é isso, mas também não são nove meses –, a criança tem que sair. A Ana saiu de mim de maneira diferente da que imaginei, por razões que eu nunca desejei ter que passar, mas mais uma vez, isso se deu à revelia do meu controle, contrariamente aos meus planos infantis de maternidade ideal.

Ela nasceu por uma cesariana. Minha barriga já estava completamente arruinada pelas estrias, mas naquele momento, depois das lágrimas derramadas pelo aparecimento da primeira, as demais não pareciam tão importantes. Eu estava preocupada em não morrer; eu tinha certeza de que morreria. Nunca tinha feito uma cirurgia na vida e, de repente, na última consulta com o obstetra, fico sabendo que teria que fazer uma cesariana no outro dia. Assim, sem qualquer preparo emocional, como seria se a minha bolsa tivesse rompido a qualquer tempo, mas teria sido por vontade da Ana, pelo tempo certo de nascer, pela vontade dela que ela sequer sabia que tinha; teria sido pelo meu corpo avisando que funciona perfeitamente e que a encomenda estava pronta para ser entregue. Mas não foi.

Ela veio. Mas antes dela chegar, já falei que achei que ia morrer? Estava tão nervosa que sequer senti a agulha enorme da anestesia entrando nas minhas costas. Logo estava deitada na maca estreita enquanto não sentia qualquer dor, mas sentia que mexiam na minha barriga. Eu olhava praquela luz branca que vinha do teto. Ela refletia a minha barriga aberta, mostrando tudo o que o lençol azul na minha frente me impedia de ver. Olhei para outra direção e sentia como se o médico estivesse sentado sobre o meu peito. Não tinha forças para puxar o ar e encher os pulmões. Me queixei à equipe, disse que não conseguia respirar. Colocaram uma máscara de oxigênio sobre meu rosto. Me senti ligeiramente menos pior. Os médicos estavam ouvindo rádio, a narração do que parecia ser um jogo de futebol. Eu nem gosto de futebol; eu não queria que meu parto parecesse a coisa mais corriqueira da vida como pareceu a eles; mais um parto. Era o meu parto, mas ali, com dezenove anos, não tive qualquer ingerência sobre ele, sobre nada.

A única coisa sobre a qual pude opinar naquele momento foi sobre a beleza de um ser que acabara de ser parido. Quando retiraram a Ana de dentro de mim e a trouxeram para perto do meu rosto para que eu a visse, disse: “como ela é feia”. Eu disse a uma neonata coberta de sebo e sangue que ela era feia, tamanha a minha sordidez materna.

Quando me levaram para o quarto, fui orientada a não falar porque falar me daria gases; algo a ver com a anestesia. A vulnerabilidade começou por sequer conseguir me levantar da cama para ir ao banheiro. A enfermeira deixou no quarto uma “comadre”, um penico de aço inoxidável, que gelado no contato com a pele, me lembrou mais uma vez de que eu não tinha escolha. A anestesia passaria e eu sentiria dor. Eu sentiria dor e não poderia me recuperar dela descansando.

Eu havia acabado de passar por um processo de mitose e não era mais uma só; agora eu era duas e o buraco por onde saiu a segunda era grande, profundo e doía; mesmo assim, eu tinha que cuidar da segunda eu, da que saiu de mim, porque sem mim, ela sucumbiria. Às vezes é nessa hora que nasce a mãe porque ela enfia a sua dor física do corte de sete camadas de pele no cu pra começar o intensivo da maternidade em tempo real, com o segundo eu se esgoelando de fome porque é assim que é. A vida já nasce demandando porque se não demanda, morre.

Mas antes que começasse a chorar, ela estava calma. Foi assim que chegou no quarto. Estava limpa e vestida; tinha luvinhas nas mãos para proteger o rostinho das unhas afiadas e finas que tinha e que já haviam deixado inofensivos riscos naquela pelinha. Eu pude olhá-la com tranquilidade e me apaixonei imediatamente. Os hormônios fizeram o seu papel. Eu a achei linda! Fiquei embasbacada com a beleza dela; fiquei orgulhosa de mim mesma por ter feito uma filha bonita. Ela ainda estava amassada da viagem, ainda tinha “cara de joelho”, mas era o joelho que meu corpo havia produzido sem que eu tivesse qualquer controle sobre qual seria o seu grau de perfeição; e ela era perfeita.

Nos primeiros dias, andava curvada e o plano de manter o bebê no berço sempre que possível, logo passou para “ela vai dormir comigo na cama de solteiro porque dói demais levantar cinco vezes por madrugada”. Logo eu, que sempre tive o sono tão pesado, neurei com a possibilidade de dormir e esmagar minha filha durante a noite. O sono ficou leve, atento, vigilante.

Com mais de um mês do parto, minha barriga ainda parecia carregar um bebê dentro dela. Era o corpo se reacomodando. Ventre inchado e murcho ao mesmo tempo. Não tão pleno quanto aos nove meses, não tão plano quanto antes da gestação. Olhava para o espelho e não me reconhecia. Não era a Karla de antes da gravidez, tampouco a Karla grávida; era uma terceira: a Karla mãe recém-formada; mãe recém-nascida, saída da maternidade junto com o neném, com o segundo eu.

Depois da aflição com as mudanças na barriga que não me levariam a nenhum lugar visto que eram uma realidade imutável impressa no meu corpo, passei a notar mais meus seios que se tornaram fonte de alimento e saciedade do meu neném. Sempre tive os seios fartos, que produzindo leite ficaram ainda mais volumosos, com veias azuis protuberantes, mamilos mais escuros e maiores. Eu já tinha nutrido meu segundo eu dentro de mim, enquanto ainda éramos duas em uma. Agora meu corpo produzia alimento para fora, para garantir a existência do que já não fazia mais parte de mim, mas ainda era eu por extensão.

Ana mamava como um pequeno bezerro e gozava de satisfação revirando os olhinhos até desfalecer em meu braço. Eu gozava de satisfação de alimentar minha filha de mim. De ver que o humano sustenta a si mesmo de si mesmo; que eu a alimentava e me retroalimentava. Eu não sabia então, mas agora sei que me sentia invencível, me sentia como deus. Criando a vida e sendo capaz de sustentá-la. Apaixonada pela própria criação.

Minha libido se voltou inteira para mim fora de mim. Não me preocupei mais comigo. Era ela o foco. Eu era a mãe com a barriga meio murcha e cheia de estrias, a terceira versão de mim mesma, e ainda tinha só dezenove anos.

 

(Continua...)

 

 

 

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Sobre o Marte

 


Foi ontem e ontem eu estava sentindo tantas coisas e vendo tantas outras dentro da minha cabeça... cheguei a pensar em escrever, mas rapidamente desisti da ideia porque, como sempre, faz tempo que não escrevo e mesmo sabendo o tanto que você significa pra mim achei que não tivesse nada a dizer. Achei que estava oca; mas deve ser porque estou já que você ocupava tantos espaços na minha vida... como pode? Era só um gato, só que não. Era o Marte. Preto, lindo, corpulento. Meu nego, meu príncipe. Ontem à tarde, achava que via você pela casa, como uma sombrinha de amor.

Foram 13 anos. O gato preto viveu por 13 anos; será que isso quer dizer alguma coisa no mundo das superstições? Ele e a Marta são os animais mais longevos que tive até aqui. Eles cresceram junto com a Ana e junto comigo também porque naquela época eu tinha 26 anos e hoje tenho 39.

Pensar que não verei mais seus olhinhos semicerrados sobre a minha cama, que não verei mais as suas patinhas fininhas que sustentavam seu corpanzil macio desmunhecadas como se você fosse um urso fofo deitado no tapete da sala tomando o sol da manhã. Pensar nisso me faz querer não pensar que você existiu um dia. Pode parecer cruel, mas é só porque a dor está bem aqui no meio da minha cara. Vai passar e eu vou lembrar de você com todo o amor que merece ser lembrado.

“nossa, que gatão!”, “nunca vi um gato grande assim!”, era assim que se referiam a você. Cara de bravo, mas um doce. Era só não encostar na barriga. Sabe que eu tive a prova de que a vida continua mesmo quando ela para, no momento em que eu falava de você pra Thaís, aqui em casa. Falei sobre esperar até o final de semana pra ver como você reagiria, mas enquanto eu nutria alguma esperança sobre a sua volta, a veterinária tentava me ligar pra avisar que você tinha morrido.

Sim, você morreu. Ela disse que veio a óbito, mas acho essa expressão horrível. Técnica, de necrotério. Também não gosto de “faleceu”; parece que não exprime a morte na totalidade, no sentido finito que a palavra traz. Eu acho que a morte não deve ser suavizada na sua expressão porque ela não pode ser diferente do que é, infelizmente. Como não há retorno, quando ouvi a notícia no telefone imediatamente voltei a chorar porque já tinha passado o dia todo chorando por sua causa e a minha análise foi inteiramente dedicada a você algumas horas antes, quando a torneira se manteve aberta por quase uma hora inteira.

Como estava me esvaindo em lágrimas e calçando o tênis pra te encontrar, tua tia me abraçou tão forte que eu senti que se ela pudesse, tiraria de mim a dor e o sofrimento com a notícia. Senti meu corpo apertado, mas não adiantava. Pegamos trânsito por causa da véspera do feriado. Chegamos e a veterinária demorou uns minutos para aparecer e quando apareceu, queria decerto me dar alguma explicação, mas eu só queria ver meu filho. Nada do que ela falasse faria qualquer diferença, então só queria vê-lo.

Quando te trouxeram embrulhadinho em uma cobertinha branca, que nem um neném, na hora me lembrei do ditado que se espalhou nas redes sociais que diz que “se fosse pra não pegar gato no colo, deus não os teria feito do tamanho de bebês” e eu peguei o meu bebê velho no colo pela última vez. Já dava pra sentir que era disforme, que estava frio, mais pesado, todo molinho como se não houvesse nem um osso no corpinho, nada que segurasse sua cabecinha nem que tivesse força pra fechar seus olhos amarelos. Era você, mas você já tinha ido embora.

Na hora do almoço fiquei com você no meu colo por vinte minutos, enquanto se mantinha imóvel, dopado de remédios para dor, com as patinhas frias escondidas na minha mão direita e a cabecinha recostada no meu braço esquerdo. Você não ronronou, mas a energia que dá vida ao corpo ainda fazia parecer que tinha ossos e músculos por debaixo da pelagem já toda avacalhada; a lateral do corpinho e as duas patinhas dianteiras raspadas pra facilitar a aplicação dos remédios, do soro.

Eu não queria que você morresse sozinho no hospital, mas não pude evitar que esse fosse o seu fim e, por isso, peço perdão porque deve ser muito triste morrer sozinho em um hospital, mesmo pra um bichinho. Eu falhei com você, meu filho, mas ainda tentei dar alguma mostra de respeito por sua passagem tão maravilhosa por essa merda de mundo que, certamente, foi um pouco melhor porque você existiu.

Trouxe você pra casa. Queria que seus irmãos pudessem se despedir de você. Que pudessem sentir seu cheirinho por baixo do odor de hospital. Que pudessem sentir que você voltou, mas que já não estava mais aqui. Eles têm a lógica deles que certamente não condiz nada com a lógica que eu criei humanizando todos eles, humanizando seu corpinho como se houvesse algum tipo de consciência e que eu pudesse saber o que você estava pensando mesmo depois de não existir mais.

Eu tirei fotos de você dentro da caixa em que veio porque quero criar novas tradições que são muito velhas. As pessoas faziam isso até o início do século XX, quando em algum ponto desses cem anos decidiram tirar a morte de casa e nos afastar dela. Você morreu no hospital, mas voltou pra casa porque é a sua casa o último lugar em que você vai estar – mesmo não sendo, porque o último lugar é a geladeira do crematório para depois ir ao forno do crematório e virar cinzas. As cinzas serão trazidas para casa, então aqui realmente será a última parada.

Veja, você vai morar em uma vitrine de medicamentos junto com seus outros irmãos, Raquete e Pretinha. Acho que não posso continuar colocando cacarecos lá dentro porque em algum momento haverá mais urnas lá. Até a minha, receio.

Tirei fotos, coloquei sobra a sua pancinha flácida uma florzinha que a Thaís trouxe pra mim; foi muito propícia e significativa. Ontem, até rezei pra São Francisco de Assis mesmo sendo ateia; achei que mal não faria. Uma das partes da oração dizia sobre “ajudar a nossa batalha, eliminando as enfermidades e o sofrimento deste animal”. Parece que a oração fez efeito porque você não está mais sofrendo.

Eu senti seu cheirinho no meu quarto o dia todo e estou tentando me distrair pra não pensar que agora você só existe aqui dentro, mas vai continuar existindo enquanto eu me lembrar e eu nunca vou me esquecer.

Quando a gatinha do namorado da Ana e dela morreu, eles ficaram muitíssimo tristes e eu disse a ela que os bichinhos não vivem tanto quanto nós porque, se vivessem, não teríamos a chance de ter tantos deles. O raciocínio é que depois que um bichinho morre a gente abre vaga para que outro entre em nossa vida; só que isso não é uma substituição do animalzinho anterior, é a escala de amor aumentando desde que o primeiro deles entrou na nossa vida. É uma oportunidade de experimentar o amor incondicional de um animalzinho e, pensando só no amor, esquecemos de que eles terão uma vida mais curta do que a nossa e de que nossos corações serão quebrados em mil pedaços quando a hora chega, mas que depois tudo será colado de novo, com amor e pelos no meio das rachaduras, assim que um novo gatinho adentra as nossas vidas.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

sobre o trabalho

a melhor forma de começar é dizendo que não gosto de trabalhar. não gosto de ser obrigada a cumprir uma função em troca de ter dinheiro para poder manter a minha vida. não acho que o trabalho enobrece ou dignifica ninguém; não acho que o trabalho liberta; não acho que o que me falta é encontrar algo que eu ame fazer para que, então, eu ame o meu trabalho.

a gente nasce dentro de um sistema econômico que tomamos de maneira naturalizada e que, junto de preceitos religiosos, nos fazem acreditar que é normal e esperado que gastemos metade das nossas vidas trabalhando para poder ter uma existência minimamente digna. veja, estou falando isso do alto do meu emprego como servidora pública, estável, que recebe um salário razoável frente a, sei lá, 80% da população brasileira. do conforto da minha casa, fazendo, às vezes, mais do que três refeições diárias, tendo acesso à análise e a um plano de saúde, morando a menos de dois quilômetros do lugar em que trabalho, eu digo que não gosto de trabalhar.

eu vou, faço o que tem de ser feito, cumpro minhas funções, atendo às minhas demandas, recebo meu salário por isso e não espero ter nenhum tipo de realização profissional porque eu não gosto de trabalhar. meu trabalho é apenas o meio pelo qual eu posso manter a minha vida para fazer as coisas que eu quero fazer, o que inclui pouca coisa, como dormir, me alienar nas redes sociais, assistir um filme ou uma série ou fazer absolutamente nada. eu gosto de fazer nada, eu gosto de não ter compromissos, obrigações, atividades programadas. eu gosto de fazer nada e não gosto de trabalhar.

e escrevo isso sem nenhum tipo de vergonha por assumir que não gosto de ser sobrecarregada, que não gosto de ter mil missões pra cumprir, que não gosto do esquema escroto de produtividade que o neoliberalismo joga na roda como se o que medisse o seu valor como pessoa fosse não só o quanto você ganha, mas o quanto você trabalha; se bem que... opa! não, o que importa realmente é só o quanto você ganha porque se importasse o quanto você trabalha, qualquer repositor de estoque do mercado e qualquer uber seriam supervalorizados por todo o trabalho que executam.

podendo soar hipócrita, de cima da minha cama, no dia do trabalhadoR e não do trabalho, eu digo que é absolutamente injusto que eu viva da forma que eu vivo enquanto a esmagadora maioria da população não teve, não tem e não terá a maior parte das oportunidades que eu tive, a despeito de todas as dificuldades pelas quais eu possa ter passado. e não acho que se trate de mérito; eu não tenho mais mérito do que uma mulher que viva em qualquer periferia porque eu me "esforcei" mais do que ela; a gente simplesmente não saiu do mesmo lugar pra poder fazer esse tipo de comparação esdrúxula.

eu não acho que eu mereço mais o que eu tenho do que qualquer outra pessoa que não tenha nada e me entristece muito saber que a realidade é essa e que a gente não tem como fugir dela. você só consegue “fugir” do sistema se você, olha só, tiver dinheiro pra criar as suas próprias regras, mas daí você já está dentro dele. E quando você está dentro, é muito fácil falar que “quem quer dá um jeito, quem não quer arranja desculpa”. Pra casa de satanás com esse papo!

no ano passado, me aproximei das ideias do comunismo e realmente acho que ele seja o mundo ideal. um mundo em que os meios de produção fossem geridos pela classe trabalhadora e no qual todas as pessoas tivessem acesso ao mínimo necessário para uma vida digna. Que todos tivessem casa, comida e trabalho, mas não um trabalho que os consumisse e os tornasse escravos, um trabalho que fosse apenas o suficiente para manter uma pequena parcela do "todo social" funcionando, que as pessoas fossem remuneradas por isso, e que pudessem viver suas vidas em uma plenitude que não se resumisse a guardar dinheiro e ter mais coisas. 

que as pessoas pudessem ser reconhecidas por seus talentos e habilidades e até mesmo por sua mediocridade, porque ninguém precisa se provar o tempo todo pra valer alguma coisa; pelo menos eu acho que não deveria ser assim. vejam, estou tirando todo esse idealismo diretamente do meu cu e sem nenhum tipo de embasamento teórico, porque apesar do interesse que manifestei pelas ideias comunistas, eu nada li a respeito e ainda assim concordo 100% com a ideia de revolução, com a ideia de expropriação dos meios de produção.

o mundo não precisa de bilionários arrombados; o mundo precisa de trabalhadores organizados. quanto mais o capitalismo nos faz acreditar que o bom é ser empreendedor - quando na verdade você só está abrindo mão de direitos trabalhistas e se submetendo a cargas de trabalho cada vez mais extenuantes e ganhos cada vez menores -, mais acreditamos que o bom é trabalhar enquanto os outros dormem e ter crises de pânico, de ansiedade, sensação de fracasso e por aí vai porque, afinal de contas, todo mundo conhece o caso do fulano que enriqueceu do zero porque se esforçou pra caralho, porque teve foco, força e fé e quando você vai ver o cara era só um filho da puta que criou um esquema de pirâmide e arrancou milhões de gente que anseia ficar rica sem ter trabalho; e dá pra culpá-las? 

acho que elas não gostam de trabalhar, como eu =), mas não acho que por isso elas devam se foder e ser roubadas por bandidos que se aproveitam da ingenuidade ou mesmo da burrice dessas pessoas. o problema não está nelas. o problema está nelas acharem realmente que um dia ficarão tão ricas que não precisarão mais trabalhar e nem se preocupar com o futuro. todo mundo que quer ganhar muito dinheiro, quer isso porque quer poder ter condições de aproveitar a vida porque sabe que ela não deveria se resumir a trabalhar para não morrer de fome e simplesmente não existir a opção de não trabalhar; a vida deveria ser uma experiência rica pra todos, não só pra quem pode pagar por ela.

dito isso, vamos ao básico do que eu aprendi assistindo a muitos vídeos de camaradas comunistas (já tô me achando a militante, mesmo sem nunca ter me organizado). quem produz toda a riqueza que nós vemos por aí é a classe trabalhadora. qual riqueza? - você pode me perguntar - riqueza não é tipo dinheiro? veja, no caso a riqueza à qual me refiro é absolutamente tudo que existe ao nosso redor. da casa onde você mora, à roupa que você veste, passando pela comida que você come e o telefone que você usa, tudo, absolutamente tudo isso eu chamo de riqueza (que me perdoem os teóricos porque provavelmente eu esteja usando o conceito de maneira talvez desvirtuada, mas eu tenho um ponto).

então, essa bagulhada toda é riqueza e riqueza produzida pela classe trabalhadora. você acha que foi a dona Mag****ne Luiça que construiu a primeira loja da marca? que projetou, minerou, produziu, encaixotou, transportou e vendeu o primeiro alfinete da loja dela? e isso se aplica a qualquer outra mercadoria ou bem durável/não durável. por mais que a gente escute que "se o Elão Nusk não tivesse tido a genial ideia da porra do carro elétrico, ele nunca poderia ter sido feito", pois bela bosta ele ter a ideia, ele poderia ter as ideias mais geniais da face da terra; ainda assim, ele é só uma alma sebosa no planeta e, sozinho, ele nunca poderia ter feito o carro elétrico. o carro dele é produzido a partir de uma longuíssima cadeia de produção, que começa lá na casa do caralho, com trabalhadores muito especializados e precarizados trabalhando em minas de ferro, de lítio e essas coisas todas. pensa só em quantas centenas, senão milhares de pessoas, fazem parte dessa rede até que o carro esteja acabado e cheiroso na concessionária, pronto pra se dirigir sozinho, bater numa árvore, explodir, matar seus ocupantes e ouvir do corno do dono da empresa que o problema eram as pessoas que ocupavam o carro e não o carro em si, apesar de esses acidentes acontecerem com frequência...

isso é só um exemplo de que o carro não foi produzido pelo bilionário cuzão; ele foi produzidos por todos esses trabalhadores que, mesmo consumindo valiosas horas na labuta, deixando de estar com seus familiares ou coçando o saco simplesmente porque poderiam, estão ali, sendo mal remunerados e enchendo o cu do dono do tuinter de dinheiro; dinheiro que ele não daria conta de gastar nem que quisesse porque são muitos bilhões e que ele sequer trabalhou para acumular - ele “ganhou” esse dinheiro explorando a mão de obra dessas pessoas.

“ah, mas se ele não tivesse investido, essas pessoas não teriam emprego...”, sim, se ele não tivesse investido, ele não teria o carro elétrico. Ele não faz um favor ao pagar esses trabalhadores, pois são esses trabalhadores que propiciam a concretização do projeto genial desse cara. “ah, mas se você ganha pouco, o capitalismo te dá a opção de procurar outro emprego”. Claro, é sempre uma opção largar um subemprego, que às vezes não garante nem o mercado do mês pra conseguir outra “excelente” vaga, que talvez fique mais uma hora de distância da casa da pessoa, que talvez exija que ela seja PJ, que não pague horas extras, mas que a pessoa ganhe 200 reais a mais. Vai ter corno aí dizendo que com esse “aumento” já dava até pra investir em ações, hein!

A gente precisa ter o mínimo de autocrítica pra saber que o fato de termos uma casa financiada, um jeep renegade, um iphone 13 e meia dúzia de idas à Disney não tornam ninguém rico. Se liga, porra! Mesmo que você tenha uma “empresa”, se ache o patrão, me conta aí, se você parar de trabalhar hoje, por quanto tempo você consegue manter o padrão de que vida que tem? Já diz o sábio professor Alysson Mascaro (muitíssimo recomendado), você é só um pobre premium. Mesmo que ganhe 10, 20, 50 mil por mês; se você recebe salário, então deveria estar na hora de você se mobilizar.

“ah, mas não tem como mudar a realidade, sempre foi assim, vou cuidar do meu e foda-se o coletivo!” é, colega, realmente é muito fácil olhar só pro próprio rabo quando o sistema está a todo momento querendo enfiar uma trolha enorme no nosso cu, mas se você está lendo isso, são grandes as chances de que você tenha mais do que a maior parte da população tem e isso é desumano.

Eu sei que o comunismo não tem o objetivo de fazer justiça social, tem o objetivo de tomar os meios de produção – que não são a porra do seu carro, nem a sua casa de praia, Enzo, fica sossegado! – e instituir a ditadura do proletariado, que somos quase todos nós. Mesmo não sendo o fim a justiça social, acaba que ela se dá quando todas as pessoas têm casa, comida, educação, saúde, emprego, lazer e tempo de qualidade sem precisar ser expoliado por um trabalho, sem precisar ser aficcionado pela ideia de ficar rico e acumular coisas.

Eu sei que pode parecer impensável uma realidade diferente da que vivemos, mas se toda essa massa de pessoas se unisse com esse objetivo, não seriam alguns milhares de bilionários que nos parariam. Eu sei que é difícil acreditar que o capitalismo não existia até algum tempo atrás, porque haverá gente dizendo que Adão e Ivo já eram capitalistas e investiam na bolsa do paraíso.

Ainda assim, eu vejo que o desemprego despencaria se as cargas de trabalho fossem reduzidas, mais ou menos assim, de acordo com o curso de economia em que me graduei na UNICU. vejam: se antes, uma vaga era ocupada por uma pessoa que trabalha 8h, ela poderia ser ocupada por duas pessoas trabalhando 4h e sem redução de salário! "ah, mas de onde vai sair o dinheiro, Karla?" do lucro da empresa, caralho! as empresas não deveriam existir pra dar lucro pros donos; elas deveriam existir para garantir que a sociedade pudesse suprir a sua demanda pelo serviço/produto que ela oferta, garantindo meios de vida dignos para os seus trabalhadores. Agora imaginem isso em larga escala...

Imagina poder trabalhar apenas 4h diárias e ter meios o bastante para prover a sua vida e, olha que absurdo, ainda poder vivê-la de verdade! Se você quisesse trabalhar mais, você poderia, mas não seria necessário. Você poderia cuidar do jardim, ficar com a família, beber com os amigos no bar, ler um livro, tricotar, fazer um passeio, dormir, fazer a porra que você quisesse fazer sem pensar que está devendo o cartão de crédito, o financiamento da casa, o tratamento de saúde da sua vó. Sem se preocupar com o seu trabalho porque ele fica lá no prédio em que você trabalha e você não precisa carregá-lo para todos os lados; sem precisar pensar em produtividade porque você viveria uma realidade em que é uma pessoa, com individualidade e desejos e não uma peça de engrenagem que é totalmente substituível e que só serve para encher o rabo de uns poucos com dinheiro. Fora toda questão ambiental, caso não vivêssemos de explorar os recursos naturais indefinidamente e a qualquer custo.

Pode ser utópico? Pode sim, mas se isso aqui tiver servido minimamente para que alguém coloque em dúvida uma crença cristalizada, e se questione sobre qualquer tipo de possibilidade para além do que está dado, já terá valido.

Trabalhadores do mundo, uni-vos!

 


sábado, 25 de fevereiro de 2023

sobre ser matéria de si mesma

na universidade, aflorou-se meu espírito escritor. primeiro com textos curtos e escatológicos, depois com desabafos existenciais aqui mesmo, neste blog, quando ele foi criado.

é importante dizer que o momento em que fui uma leitora mais voraz em minha vida foi no início da adolescência, entre os 11 e os 12 anos. naquela época, eu lia 50 páginas por noite dos romances espíritas que minha mãe comprava. aquela papagaiada toda foi como as histórias da Cinderela e da Branca de Neve, com muitos toques de reencarnações e vida de princesa intercalada com pobreza e doenças. essas histórias eram realmente ricas! uma hora você era uma menina desgraçada e tuberculosa à beira da morte, na outra você estava de camarote relembrando vidas passadas em que foi uma cigana ou uma nobre rica e invejada. havia também vinganças, assassinatos... a galera pagava pelos seus pecados e eu me divertia com tudo aquilo, introjetando no inconsciente que todas as merdas que nos acontecem têm razão de ser, mas que se formos bons, tudo dá certo no final. ahammm.

falo isso porque, tirando esse tempo em que a leitura era puro prazer, na universidade e depois dela, não voltei a ler muito. eu lia os textos das disciplinas; lia os livros que era mandada ler, mas meio que era isso, não ia além, não sentia tesão em ler, não sei se porque minha vida estava passando por mudanças profundas naquele momento ou porque eu era apenas uma vagabunda, uma fraude ou simplesmente a aluna de letras que menos leu em toda a história apenas porque não estava a fim.

no mestrado eu li muito, li bastante, mas nada que fosse de fruição. (nota mental escrita: escrever sobre como foi o mestrado. resumo para o leitor: foi um inferno do caralho)

nunca saberemos... na época eu não sabia, mas hoje sei por que não leio muito (no ano passado foram apenas dois livros inteiros, a metade de mais um e meia dúzia de páginas de um terceiro), porque sou viciada em redes sociais e podcasts. minha vida é basicamente estar abduzida pela porra de um retângulo de plástico e vidro que está acabando com a minha sanidade mental e com qualquer vontade de viver uma realidade que não me dá pulsos de dopamina a cada milésimo de segundo, o que torna a minha existência e qualquer tipo de leitura uma tarefa árdua e desinteressante. - ainda assim, tô trabalhando nisso; na leitura e em formas de tornar a existência mais interessante. lembre-se de que às vezes o escritor carrega nas tintas para melhores efeitos literários. é tudo mentira, ou não.

de igual maneira, o smartphone e o meu descontrole em relação a ele acabam com qualquer traço de criatividade que possa haver para eu escrever. me sinto burra, vazia, murcha, acabada. por passar tanto tempo no telefone e ouvindo alguma coisa a todo momento - tenho ficado cada vez menos em silêncio comigo mesma -, minha vida parece um looping de nada com porra nenhuma. todos os dias são muito parecidos e isso não é um problema em si, já que o resumão da vida é que ela é essa merda mesmo, o problema é que não tenho tido nem a sensibilidade de perceber a minha merda particular sobre a qual sempre gostei de escrever a respeito.

eu sempre fui meu melhor e único assunto, do modo mais narcisista e aberto que consigo ser porque quando escrevo sobre mim, lá no fundo sei que também escrevo sobre você, sobre nós, sobre como pode ser difícil e também divertido estar vivo; estar aqui, escrevendo e reclamando, escrevendo e abrindo, escrevendo e expondo porque eu sei que não sou a senhora diferentona. admite aí também que às vezes é foda, que você se sente um bosta sem qualquer controle sobre a sua vida... e descambamos pra bad vibe... desculpa, é o meu jeitinho. amanhã já é hoje e hoje é sábado! dia de ficar no telefone sem peso na consciência porque é pra isso que servem os finais de semana, pra gente se anestesiar de todo o resto. parece que vai dar praia!

sobre metatextos

sabe aquela coisa em que você é muito bom e que você gosta muito de fazer? aquele "talento" especial, aquele "dom"? Pois é, também não sei. não nasci com ele. a coisa com a qual mais me identifico e sinto prazer em fazer é escrever, mas nem de longe isso quer dizer que as palavras jorrem pelos meus dedos. eu não sou como os escritores iluminados que, com cinco anos já escreviam suas primeiras palavras, com 12 já tinham escrito várias historinhas e com 17 já tinha ganhado um concurso de contos. "ah, a escrita sempre esteve na minha vida...". na minha, não.

não é como se eu fosse um prodígio, mas não tinha dificuldades para me expressar. mentira, a palavra não é bem expressar, está mais para facilidade de falar diante de muitas pessoas. eu não tinha vergonha, mas isso não tem a ver com a escrita, só que tem, sim. acho que escrevia bem só porque escrevia como falava, e não me refiro ao tipo de linguagem empregada, mas à fluidez do texto.

acho que começar a escrever mesmo, só comecei no terceiro ano do ensino médio. naquela época, tínhamos uma aula que era voltada para redação, aquela do vestibular. toda semana, deveríamos escrever uma sobre os temas que a professora indicava. eu nunca sabia o que escrever nessas redações. minha tática era a de começar falando sobre a necessidade de escrever um texto a respeito do tema x ou y. floreava, não aprofundava, era perfeito na época e parece que funciona ainda hoje.

De algum jeito essa tosquice me norteava; era como virar a chave na ignição e, de repente, eu estava dirigindo sem saber muito bem para onde, mas costumava dar certo. na época em que eu fiz o enem, em 2001, nós recebíamos uma cartinha que mostrava o nosso desempenho em todas as disciplinas e na redação. as minhas notas, no geral, ficaram no patamar da mediocridade e tudo bem, mas a nota da redação era bem acima da média geral; foi ali que eu percebi que era boa em alguma coisa sem fazer muita força pra isso.

de toda forma, não escrevia regularmente; não era um hábito. no começo da adolescência tive um diário, no qual escrevia eventualmente. acho que na época das agendas eu fazia algumas delas de diário também, mas nunca foi uma constante. escrever era só algo fácil de fazer quando precisava ser feito, até que entrei na universidade - de letras! 

(abre-se aqui um grande parêntese para explicar que a minha escolha não foi um "chamado" nem nada parecido. levando em conta que não me sentia confiante para prestar um novo vestibular depois de ficar mais de um ano sem estudar qualquer coisa, fiz letras porque era o curso mais barato da universidade, o que eu poderia pagar, e sem a necessidade de fazer uma prova, visto que consegui entrar pelo meu histórico escolar. na época, eu tinha 20 anos e uma filha de um ano e pouco e uma rede de apoio que me permitia assistir às aulas nas quintas e sextas-feiras à noite e nos sábados, de manhã e à tarde - o curso tinha uma grade de horários diferente de todos os outros daquele lugar)

... como eu ia dizendo, quando eu comecei a cursar letras, houve a oferta de uma oficina de produção textual na qual me inscrevi. no primeiro dia, escrevemos um texto cujo tema não me recordo, mas no final da aula, a professora me chamou e disse que eu não precisava fazer aquela oficina porque já escrevia muito bem. mais uma vez, me senti encaixada e parecia que eu pertencia ao texto, ao meu texto, a mim mesma.

obrigada, Enem; obrigada, professora Mônica, por terem sido os primeiros incentivadores desta que vos escreve.

continua...

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

sobre morrer de raiva

foi no mês passado e eu quis esperar um tempo a mais para escrever a respeito porque achei que poderia estar comemorando antes da certeza, daí poderia ser punida por alguma ironia da vida, mas agora, tenho segurança de que não morrerei de raiva - mas talvez morra, vai saber...

a gente fala em sentir raiva e pensa no quê? olhos faiscantes, cara retraída, perdigotos expelidos aos berros; é uma emoção genuína, primal, daquelas que nos levam de volta aos cinco anos de idade cada vez que algo não sai como planejamos ou quando somos contrariados em nossos desejos. sentir raiva e frustração se jogando no chão, batendo o pé, esperneando, fazendo birra. 

quando a gente cresce, vai aprendendo a enfiar a raiva no cu. a gente aprende a não demonstrar a maioria das coisas que sente, daí viram isso, "coisas", sentimentos e emoções inomináveis diante dos quais não sabemos como agir, e é então que aparece o nosso pequeno eu, aquele que é ainda um animalzinho no processo de castração, que ainda está se moldando ao que a sociedade espera dele.

quando somos pequenos nos deixamos levar pelas emoções e eu me deixei levar quando, naquele dia, parei o carro no meio da rua, a caminho do trabalho, para ver o que parecia ser um sagüi sobre o asfalto, mas entre a via e o chão batido. ele estava com a cara voltada para o chão, com as maõzinhas espalmadas ao lado da cabeça, os pezinhos esticados junto com a cauda que media metade do seu tamanho e estava toda armada, como uma pinha fofa.

ele não se mexia; à primeira vista, parecia estar morto. eu, então, o cutuquei e percebi que ele inspirou profundamente; tinha vida ali! eu já estava nervosa e não sabia o que fazer. eu queria pegá-lo, mas tinha medo de sentir em minhas mãos que aquele pequeno corpinho poderia estar todo quebrado por dentro. tive receio de que se desconjuntasse, se esparramasse, que eu não pudesse contê-lo. Por sorte, havia um pano de praia no porta-malas do carro. Dobrei-o e fui com ele nas mãos tentar pegar o sagüi, que não mostrou nenhuma resistência. Coloquei-o em meu colo e fui para o estacionamento do meu trabalho que era apenas uns poucos metros à frente. eu falava para o macaco: "vai ficar tudo bem, amiguinho".

segue, então, uma parte que não será detalhada, mas que envolve a ida a três lugares diferentes até que chegássemos a


o quarto lugar, esse sim, apto a receber o animal.

durante o período em que estive com o pequeno, apesar de haver um pano entre nós, eu fiquei com ele por cerca de três horas. em mais ou menos metade desse tempo, ele ficou no meu colo enquanto eu dirigia. acordado o tempo todo, ele emitia uns silvos que me davam medo porque eu não sabia se eram de dor ou um pedido de ajuda para os seus. ele não tinha forças para andar, mas em alguns momentos parecia que estava tentando ficar em pé, dando impulso com suas perninhas. durante a outra metade do tempo, ele fez a viagem dentro de uma caixa de papelão - com alguns furos para que ele pudesse respirar -, junto com o pano de praia. às vezes, ele arranhava a caixa querendo sair; noutras, ficava em silêncio.

eu toquei seu pelo muito macio algumas vezes. tanto a pelagem fofa quanto a cara de coitado me lembraram a Chico, minha gata. pude vê-la nos olhinhos dele, tão assustadoramente humanos. ele parecia um pequeno adulto no meu colo. via sua boquinha entreaberta e conseguia enxergar seus mini mini dentes. o bichinho era uma obra perfeita e tão vulnerável diante da sua fortuna. a sorte dele poderia ter sido também a minha. meu destino e minha vida poderiam ter sido selados por aquele bichinho indefeso e adorável porque eu havia me solidarizado com ele.

em duas da três paradas que mencionei antes, comecei a perceber que meu bom gesto poderia ter consequências não calculadas. no primeiro lugar, quando viram o sagüi já disseram que eu deveria ter cuidado porque animais silvestres são vetores de doenças, e eu carregando a criatura no colo como se fosse um bebê reborn. eu estava tão fora de mim, no misto de defensora de animais e de senhora compadecida com a dor alheia, que sequer havia me lembrado de que se tratava de um animal silvestre - silvestre como se está praticamente no quintal da universidade? - eu pensei, em um lampejo de imbecilidade... 

entre um lugar e outro fui me dando conta de que tinha agido de maneira impulsiva mas que, no momento em que o resgatei, me tornei responsável por ele. me senti a porra da raposa do pequeno príncipe. eu poderia ter sido uma escrota e tê-lo jogado em qualquer canto porque, né, foda-se! ele não era problema meu, mas eu o havia tornado meu problema quando o peguei. como eu iria viver bem comigo mesma se não tivesse ajudado aquele sagüi, ou pior, se o tivesse tirado da cara no asfalto com o intuito de fazer algo por ele, mas tivesse desistido no meio do caminho porque não havia nenhum filho da puta disposto a fazer alguma coisa por aquela vida que parecia tão insignificante aos olhos de todo o resto da gente?!

as pessoas pelas quais eu passei me fizeram sentir medo e culpa por tentar ajudar o animal que, até aquele momento, eu achava que poderia ter sido atropelado (abre-se aqui um parêntese para dizer que não, não havia me ocorrido que se um bichinho daquele tamanho e porte tivesse sido atropelado eu sequer seria capaz de identificar a que espécie ele pertencia), até que uma dessas pessoas disse que ele poderia ter levado um choque e caído do poste, pois era comum que recebessem ligações pedindo ajuda por essa razão. foi quando notei que isso fazia total sentido, pois ele estava no chão bem abaixo da linha do fio de luz do poste da rua em que o peguei.

depois de toda a romaria para conseguir encontrar um lugar que pudesse acolhê-lo adequadamente, chegamos ao parque estadual que recebia animais silvestres que precisassem de atendimento veterinário. a minha preocupação ao deixá-lo era de saber se, caso ele ficasse bom, seria devolvido para a mesma rua em que eu o havia encontrado porque estava preocupada com a família dele, e pensei que se ele voltasse apenas à natureza, tipo aquela natureza do parque, não seria a mesma vizinhança à que ele estava acostumado. pensei nos vínculos familiares do macaco; me senti uma filha da puta por tê-lo tirado de lá e por, talvez, ser a responsável por ele nunca mais ver a família dele. dito isso, o senhor que o recebeu me assegurou de que os animais recuperados sempre eram devolvidos aos lugares em que tinham sido encontrados; isso me deixou com menos peso na consciência. 

deixei-o lá, me despedi, desejei que ficasse bem, mas senti enorme alívio por ter me livrado do fardo peludo. tinha cumprido minha missão. depois de cerca de 40 quilômetros percorridos no processo, me senti sugada pelos pensamentos todos que o macaco me suscitou. pensei muito nele, mas pensei também muito em mim. benevolência, culpa, remorso, raiva, angústia e mais um monte de outros sentimentos e sensações passaram pela minha cabeça e pelos meus intestinos. que tipo de pessoa eu era? uma boa pessoa burra? uma pessoa boa impulsiva? uma pessoa irresponsável? que diabo de pessoa se coloca em risco sem nem se dar conta de que está fazendo isso? honestamente, acho que qualquer pessoa um pouco mais desatenta para os perigos racionais estaria sujeita ao mesmo risco que eu.

e por que eu falo tanto de riscos, perigos e o caralho? porque no final da tarde daquele dia, eu recebi uma ligação do parque avisando que o sagüi havia morrido e pedindo que eu buscasse um centro de saúde para tomar a vacina antirrábica porque eu havia tido contato direto com o animal e havia a possibilidade dele ter morrido com raiva; não em decorrência dela porque parecia que a causa da morte tinha sido a queda mesmo, mas ele poderia estar contaminado com o vírus. uma amostra de sangue dele havia sido enviada para testagem, mas o resultado só sairia em 15 dias (!). a ligação foi lá pelas 18h15, momento em que comecei a entrar em pânico. eu disse que não havia sido nem mordida, nem lambida, nem arranhada, nem nada pelo macaco. eu disse que o macaco não tinha nenhum machucado, nem tinha qualquer secreção saindo de seu corpo. ele não babava e nem estava agressivo, mas a sujeita que falou comigo disse que eu deveria procurar o centro de saúde por precaução.

a partir daquele instante, comecei a buscar no google informações sobre a transmissão de raiva, sobre os horários de atendimento dos postos de saúde. liguei para minha sobrinha que trabalha na área da saúde e mandei mensagem desesperada para um amigo que é médico. eram quase 19h quando saí de casa rumo ao pronto-socorro na tentativa de tomar a vacina porque o destino do macaco já havia sido selado e o meu ainda parecia atrelado ao dele.

depois de perder tempo no pronto-socorro pela lotação e por não haver a vacina lá; depois de conversar com a minha sobrinha e com o meu amigo, e de ter sido tranquilizada por eles, a melhor ideia era voltar para casa e procurar o hospital certo na manhã seguinte. naquele noite, não dormi direito pensando que o vírus da raiva poderia já estar se espalhando pelo meu corpo. procurando pelos sintomas da doença era um grande ironia saber que eu tinha a maior parte deles: mal-estar geral, náusea, inquietude, sensação de angústia e irritabilidade, mas esses são sintomas que a população em geral tem nos dias de hoje pelo simples fato de estarmos todos vivos nessa porra de país.

me senti confusa, triste, angustiada de pensar que eu poderia morrer, acabar, encerrar minha existência, virar adubo - e tudo isso de uma forma horrível! - espumando, enraivecida, até que entrasse em coma e  finalmente fosse embora em alguns dias... pensei que ficaria tensa durante todo o período em que o vírus poderia estar incubado em mim, se preparando para me atacar, para me obrigar a mostrar o meu lado mais grotesco e eu senti raiva de mim por talvez ter me contaminado com raiva. que inferno! vida filha da puta querendo me foder até na hora de me matar, eu pensei. você sabe quantas pessoas se recuperaram da raiva depois de tê-la contraído? somente cinco pessoas no mundo inteiro! na porra do mundo inteiro e é bem óbvio que eu não faria parte dessa estatística porque pior do que morrer de raiva é sobreviver a ela, já que essas pessoas ficaram com sequelas. pelo menos essa sorte eu teria, de morrer de uma vez.

no outro dia, cedo, eu já estava na sala de espera do hospital para ser atendida, para ser vacinada, eu achava. Sabrina é o nome da enfermeira que prestou meu primeiro atendimento. ela foi muito atenciosa e humana, dizendo que eu poderia "acalmar meu coração" porque o simples contato com o pelo do animal, sem haver lesões em mucosas ou coisa parecida, não seria o suficiente para me contaminar, mesmo que o macaco tivesse raiva. saí de lá mais tranquila, mas não totalmente confiante. cada vez que meu telefone tocava, eu atendia pensando que seria alguém do centro e zoonoses dizendo que o macaco tinha raiva e ter raiva me enchia de medo.

tinha medo de morrer contra a minha vontade, medo de morrer só por ter sido boa, só por ter sido compassiva, me senti injustiçada antecipadamente, para logo em seguida pensar que a vida não é justa, que na verdade certas coisas só são como são e ponto. depois que acontecem a gente pode se perguntar por que, mas se culpar não muda acontecimentos, fatos que se sucedem apenas porque estamos vivos e, vivendo, estamos sujeitos a qualquer coisa do mundo. está tudo posto, todas as possibilidades estão diariamente à nossa frente, mas na maior parte das vezes, a gente nem se dá conta disso porque está seguindo a cartilha, fazendo o planejado, cumprindo o cronograma.

curioso é que justamente no dia em que eu saí pouquinha coisa da minha rotina, tomando café da manhã na padaria - coisa que faço quase nunca -, foi quando eu passei pela rua precisamente naquela hora e prestei atenção a algo que parecia destoar do caminho. naquele dia, eu desviei do meu caminho. mas quando é que a gente não desvia, não é? mesmo o dia mais monótono e parecido com todos os dias anteriores a ele é apenas isso, parecido. algo sempre muda; estamos sempre desviando, como adultos ou como crianças, por amor ou com raiva, o caminho é o desvio.


                                      

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

sobre o que é mais importante

Cheguei. Quando saí da casa do Danilo até senti a brisa mais forte, mas na medida em que fui andando, aquele suor seco voltou a me molhar o corpo, como um grude tropical, a brea. Cheguei e servi-me de um copo gelado de água; um copo de inox, daqueles muito comuns no meu tempo de infância, mas esse é mais baixo, mais gordinho, não tinha a função de servir bebida, mas sim de guardar a pasta e escova de dentes da Ana. Estava no box do seu banheiro, com o fundo encardido de lodo de banheiro; lodinho de baba, de vapor de água, de restinhos de coisas de banho. Depois que ela foi embora, eu quis limpar o banheiro e dei nova função ao copo. Lavei-o bem; inox não pega cheiro nem gosto de nada e agora é meu favorito. Ele serve 300ml; eu medi.

Cheguei e vim aqui escrever. Tirei toda a roupa, e agora o sutiã porque me aperta. Não queria me esquecer e nem conectei a internet no computador; vim aqui antes porque não queria me esquecer, eu já disse. Vou começar do começo do dia então.

Quando estávamos tomando café da manhã, vi na rede social que a Rússia havia invadido a Ucrânia e disse: está vendo?! a gente fica transando e não sabe o que tá acontecendo no mundo! E daí comecei a ler e ouvir e a me entupir com as notícias. Você foi embora e eu até trabalhei durante a manhã. Enquanto almoçava, ouvia o jornal. Passei o restante da tarde na drogadição digital e, ao mesmo tempo em que limpava as caixas de areia dos gatos, ouvia um cara dizer que desde a Segunda Guerra não havia uma invasão como essa a um país. Percebi que o desinfetante estava acabando e também tive a sensação de que ele se embananou um pouco em relação ao que falava. Senti vergonha por ele e pensei em todos os outros países que estão em guerra neste exato momento – e eu nem sou boa ou entendida de geopolítica –, mas que não fazem parte da Europa, talvez por isso sejam desimportantes para os noticiários, ou talvez porque eles não tenham armas de destruição em massa ou talvez porque não sei, como disse, não sou boa no assunto.

Apesar da apreensão criada pela mídia, parece que a Terceira Guerra tem poucas chances de acontecer, acho que o mercado reagiria mal (sério, Karla?) – e Danilo tinha me convidado pra ir à casa dele. Eu devia a visita e disse que iria às 18h. já passava do horário e, depois de lavar a louça, coloquei minha calça nova – costurada especialmente para mim e muitíssimo bem-feita e acabada – e saí de casa com o saco de areia suja dos gatos e a chave do carro. Coloquei a areia no contêiner e olhei para o carro. Já era final da tarde e pensei que seria uma boa ideia ir a pé até lá; movimentaria o corpinho amorfo. Olhei para a chave, olhei para o carro, pensei com meus botões, falei com 32 habitantes de mim e decidi fazer o diferente: resolvi ir andando, bravamente andando. De chinelo, com sutiã apertado, calça nova, bolsa transversal no peito, fone nos ouvidos e notícias da invasão russa comendo a minha mente.

Vou andando e desviando de alguns cocôs de cachorro pelo caminho; chego à rodovia e me sinto importante porque os carros param para que eu atravesse. Corto o caminho passando por cima de uma cerca de metal caída no chão; passo pelas capelas funerárias e vejo que não tem ninguém sendo velado naquele momento. Atravesso a rua novamente e ando pela frente do cemitério que tanto gosto. Vou passando por mais umas duas ou três ruas até que entro na rua que vai dar no prédio dele, lááá em cima. Vou andando e olhando para o chão. Evito ficar olhando para frente na intenção de enganar meu cérebro; acho que se ele não vir a altura do diabo da rua vai me fazer cansar menos. Descubro que meu cérebro é muitíssimo esperto e que não haveria nenhuma chance de ele não perceber o quão íngreme é aquela ruela do inferno. Paro no meio do caminho para pegar um ar. A máscara já está pendurada na orelha esquerda; respiro pela boca e tenho a impressão de que vou morrer. Sigo. Quando finalmente chego ao topo, apoio-me num muro amarelo queimado arfando. Sinto o suor escorrer pela bunda e por todos os poros do meu corpo. Depois de uns bons segundos, dou mais uns passos e chego ao portão. Digito a senha, a porta abre, entro. Depois, faço a mesma coisa de novo. Aperto o botão do elevador, entro nele e chego no andar. Coloco a mão na maçaneta e a porta estava aberta. Chamo pelo Danilo e ninguém responde, só os gatos. Procuro o controle do ar condicionado e busco com os olhos um galão de água na cozinha, mas não encontro. Procuro um filtro na torneira da lavanderia, nada também. Fico puta porque todas as vezes que chego lá, nunca tem água mineral, porra!

Mando mensagem perguntando onde está, ele diz que se esqueceu de mim e escreve: “Bethânia”. Reclamo que vim a pé, que não tem água e digo que não vou mais lá. Penso que já que estava toda derretida mesmo, ia gastar a luz dele colocando o ar-condicionado no mínimo e assistir, por que não, um pouco mais de jornal e ficar mais por dentro da invasão russa – porque alienação “informativa” nunca é demais. Tiro minha calça suada e a coloco sobre o encosto da cadeira. Pego uma toalha para colocar no sofá dele e poder me sentar com a minha bunda suada sobre o novo tecido – que não é suede, mas é muito bonito.

Me alieno mais um tanto nas redes sociais e converso um pouco com você, que me sugere dar uma olhada na geladeira. Excelente ideia! Faço um sanduíche com manteiga, mussarela de búfala e presunto defumado. Abro um energético e encontro na despensa um saco de stroopwafel de canela – nunca tinha comido e acho muito bom. Como os quatro que havia, mas no último já vejo que não gostaria mais de comer aquilo em muitos meses. Decido, então, assistir ao último episódio de uma série curta, engraçada e desgraçada. Quando faltavam menos de dez minutos para que ela acabasse, a porta se abre e o Danilo aparece cheio de sacolas junto com uma moça e ele não me vê de cara. Eu me assusto de ver que não era a Thaís junto com ele e me sinto levemente constrangida por estar de camiseta e calcinha na casa do meu ex-marido enquanto ele chega acompanhado e eu estou no sofá assistindo tv.

Ha ha ha aqui e acolá, coloco a calça enquanto digo que a havia tirado porque a rua dele era muito íngreme e tinha feito minha bunda suar, sendo que qualquer calor faz a minha bunda e todo o resto suar. Ele me pergunta de você e eu digo que nos veremos logo mais. Eu acabo a série um pouco indignada com o final que ela tem, dou um beijo na moça, despedindo-me e me desculpando pelo suor, pego uns pedaços fininhos da carne que estava no forno e eu nem sabia, dou um beijo no Danilo e vou-me embora.

Fico impressionada como descer a rua é muito mais rápido do que subi-la, apesar de também demandar um pouco de atenção e nenhuma pressa. Vou caminhando tranquila e passando pela frente do cemitério de novo. Olho lá para dentro e vejo que, mais adiante, o portão ainda está aberto. Fico animada e resolvo entrar, só para dar um passeio rápido. Vejo que o passeio não vai mesmo poder se alongar porque estou de chinelos e porque, durante a noite, as baratas estão por toda a parte ali. Vejo até um pequeno conluio com quatro juntas; talvez estejam armando para me atacar, mas eu não lhes dou intimidade. Continuo andando, meio marchando, com medo que uma delas suba pelos meus pés. Sinto-me um pouco importante como quando atravesso a rodovia, porque parece que abrem caminho para que eu passe; são muitas.

Enquanto cuido para não as pisar, converso com as lápides, falando sozinha. Falo para os moradores do cemitério o que está acontecendo fora dali porque acho que eles não ficam muito por dentro das notícias. Passo em frente à lápide de uma mocinha que nascera em 1997 e que morrera no ano passado; penso como era jovenzinha, mas não sou capaz de fazer as contas para descobrir quantos anos tinha... no meio da conversa, penso que a guerra é mais um meio de ir parar ali. Acho que é melhor ir embora por causa das baratas e voltar em um fim de tarde, quando elas estejam escondidas e eu possa ver bem as lápides e descobrir as “famosas”, penso. As “importantes”, penso. As “históricas”, penso. Daí me corrijo, porque para quem ficou, quem morreu era importante ou histórico ou famoso praquela pessoa. Saio do cemitério e passo de novo pelas capelas funerárias. Agora há um velório tímido acontecendo e um homem sozinho está sentado no banco em frente a ela. Ele olha para o vazio e parece consternado. De novo, penso na guerra, no cemitério, na morte que se evita a todo custo, mas na vida que também pouco vale, ou que não vale nada. Sinto por ele, sinto por todos que não puderam escolher fazer parte ou não do momento que estão vivendo, do momento que nós todos estamos vivendo, que o mundo está vivendo, daí, por um segundo, penso que uma guerra de proporções atômicas, que acabasse com a gente de uma vez por todas, talvez não fosse tão ruim assim.

Volto-me para mim e sigo. Passo novamente pela cerca caída e penso que a atriz de fleabag sempre se dá mal nas séries que ela escreve. Caminho mais um pouco e logo chego em casa. Sinto saudades da Ana. Escrevo. Vou tomar banho e te espero. Chega de notícias por hoje.

 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

sobre despedidas, luto e elaborações

minha cabeça está explodindo. é depois de amanhã e eu vou junto, vou te levar, vou te deixar lá, mas é depois de amanhã que você vai embora. eu falei que queria que você fosse um passarinho e aprendesse a voar... bom, tô abrindo a gaiola, tô abrindo mão do controle, não que eu tivesse muita escolha... não é um favor que estou te fazendo, é só a vida chamando, mesmo que não seja da maneira que eu esperava porque também a vida caga muito pro que a gente espera dela... agora estou tendo que lidar com tantas coisas aqui dentro... com o ninho que vai se esvaziar e que vou precisar preencher de mim mesma. fui muito besta de achar que seria fácil, que eu estava preparada pra isso, mas é porque a gente nunca está preparado pra morte. é, sim, é uma morte. enquanto você crescia e mudava de fases - e eu já disse isso antes -, enquanto você deixava de ser um bebê pra se tornar uma criança, quando passava de criança a menina, de menina a menino, de menino a adolescente experimentadora... em todas essas fases, era como se tirassem uma pessoa e colocassem outra no lugar dela, porque um dia você já não era mais o meu neném, mas ainda era lá dentro, só a aparência ia mudando e você ia criando camadas, novos contornos de si, novas formas de ser mais um pouco, de se tornar e foi se tornando, se modificando... eu sentia que te tiravam de mim, mas colocavam outra no lugar e eu não notava porque você continuava aqui, debaixo da minha asa de galinha cacarejante, mesmo quando você já estava percebendo que as suas asas batiam nas paredes de casa, que estava ficando pequena pra você porque o limite da ave é o céu; só esqueceram de falar isso pra mãe dos pintinhos, passarinhos, avezinhas - me coloquei como galinha porque me parece mais maternal do que uma passarinha qualquer, abstraiam a mistura dos seres de penas.

daí vem a morte, porque um pedaço meu vai indo pela vida. foi ela que foi mudando você, mas fui eu que cuidei de você enquanto ela te mudava diante dos meus olhos cotidianos que não se apercebiam de que esse dia iria chegar. o dia em que você vai voar sozinha e que eu vou me encher de vazio de não te ter mais aqui. dia em que vou me encher de culpa porque se você falhar diante da vida - e você vai, porque ninguém consegue ser um sucesso o tempo todo -, isso vai mostrar pro mundo que eu não fui uma boa mãe, que eu te criei errado, que eu não dei tudo o que poderia ter dado, que eu não fiz tudo o que poderia ter feito, que eu sou um fracasso na tarefa mais difícil de todas que é criar um ser humano e há bilhões deles por todos os lados, criados e se criando. a gente se ajeita como pode e eu preciso aceitar que não poderia ser perfeita, porque nunca fui perfeita em nada, nada. nunca fui o destaque de porra nenhuma, daí o normal é que também não fosse uma mãe perfeita. eu fui a mãe possível. fui a mãe que deu pra ser porque apesar da grande responsabilidade do papel, eu não sou só mãe; tenho outros papéis. sou uma pessoa e foi assim que consegui dessacralizar a minha mãe. vi que a minha mãe tomou decisões na vida primeiro considerando-se uma mulher e depois levando em conta o papel de mãe; depois levando em conta que, na bagagem, sempre levaria dois filhos.

ser a mãe possível é ser a mãe que faz merda, mas que está sempre tentando acertar. claro, a menos que você seja uma psicopata, você nunca vai foder o mental dos seus filhos de propósito. essas coisas são acidentes de percurso; são coisas que acontecem quando a gente trabalha com o que tem, com as ferramentas de que dispõe, dando o amor que a gente recebeu ou não. eu sou a mãe possível que há quase 16 anos em terapia tenta não reproduzir o padrão da minha própria mãe, embora me veja igual a ela em tantos momentos e procure me distanciar disso; isso é um pouco como enxugar gelo porque ela está em mim, por mais que eu negue, por mais que eu tente ir pra longe. a gente se separa no físico, mas no campo subjetivo é um pouco mais difícil. a questão é que agora se trata do meu papel de mãe.

nesse papel, junto com todos os outros, fico com a sensação de que não fui muito boa em nenhum deles. me desmereço por um lado e me acho muito foda por outro. será que um dia você vai perceber que eu fui muito foda dentro das minhas possibilidades de ser foda? ou será que você vai me culpar pra sempre por todas as faltas e traumas e questãs que existiram, existem e existirão? é muita responsabilidade... é como se no momento em que for pra vida, não só você, mas eu também serei colocada à prova. a vida manda as questões, dizendo: vamos ver se a Karla foi uma boa mãe ou uma mãe de merda? e se você falhar, isso atestará minha incapacidade como mãe. bom, incapaz ou capaz, consegui fazer você chegar até aqui... e, não, isso não é o suficiente, mas nunca nada é o suficiente, então dá pra eu ficar em paz, mesmo lutando contra a ambivalência da maternidade, a ambivalência do amor, a ambivalência minha e a sua em relação a mim.

talvez confiar em você, no seu potencial e em toda a sua capacidade de adaptação seja difícil porque eu acho que não consegui te ajudar a desenvolver tudo isso satisfatoriamente. tenho medo de não ter te preparado, por isso tenho receio de te soltar. tenho medo que você fracasse porque isso seria sinal do meu fracasso e sei que isso é muito egocêntrico, mas é como me sinto. acontece que agora é que vem a oportunidade de ver na prática você sendo você, com o que pôde aprender comigo ou não, com o que pôde aprender com tudo o que já viveu; é a oportunidade de ver o que você vai ser capaz de fazer com quem você é, do jeito que é, que está. existem tantos jeitos e maneiras... são tantos os caminhos e quantas as escolhas... que você faça as melhores escolhas, que tenha as melhores experiências, isso é o que eu desejo. que você sempre se lembre que decidir por algo é abrir mão de todo o resto. e que escolher ou não escolher tem consequências, tudo tem. ainda assim, que você se lembre de que decisões podem ser revistas, que acordos podem ser mudados; que apesar de não saber como a vida vai te tratar, não tenho dúvidas da sua bondade, da sua sensibilidade, do seu talento, da sua entrega e da sua inteligência. não permita que te desrespeitem, que te machuquem... olhe sempre pra você primeiro; os outros vêm depois. isso não é ser egoísta; às vezes, isso só quer dizer que você não é otária. vai dar tudo certo, mesmo que de vez em quando dê errado. a vida é safada mesmo e tá sempre brincando com a gente, do jeitinho estúpido e prosaico que só ela tem. com o tempo, você vai se familiarizando.

no mais e pra sempre, te amo.





quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

sobre tirar vícios e colocar outras coisas no lugar deles

faz 55 dias que parei de fumar; não parece muito porque fumei durante mais de 7.500 dias da minha vida. o negócio está desbalanceado por enquanto, mas confesso que estou bem. tenho fugido de escrever sobre isso não porque está sendo difícil, é porque eu não sabia exatamente como seria estar aqui, digitando, sem um cigarro comigo. então eu digo: estou mais preocupada com o fluxo das ideias do que com o cigarro. ele me trazia um senso de continuidade, parece que tudo fluía melhor com um cigarro entre os dedos. eu já falei sobre isso em diversas ocasiões, mas o fato de eu ser asmática, sedentária e fumante não era algo que me favorecesse até então e menos ainda me favoreceria conforme os anos fossem avançando. este ano completo 38 e, apesar de perceber que estou derretendo com o passar do tempo, gosto da ideia de envelhecer - embora o que vem embutido nela (a morte) não me agrade muito.

por ter medo da morte, por não querer ficar doente, por não querer sofrer e por não querer ficar dependente de alguém em razão de uma enfermidade, já vinha considerando parar - sem fazer absolutamente nada pra isso. Continuava fumando em média um maço de cigarros por dia, tendo crises eventuais de tosse, falta de ar durante a madrugada, sentindo forte as mudanças no clima tanto pelo combo rinite/sinusite, quanto pela junção asma/cigarros, mas estava lá, abraçada nele. ai, que sempre fomos tão amigos... escrevi sobre nossa intimidade aqui e aqui. por gentileza, considerem que o primeiro texto é de quase treze anos atrás, tempo em que eu era uma verdadeira imbecil. gosto de como ele se inicia, mas depois descamba pro senso comum de gente otária. ainda bem que os anos passaram.

tirando tudo pelo que passamos juntos e toda a consideração que tinha por ele, eu não o deixei fazendo um esforço grande e, talvez, possa dizer que trapaceei no jogo de largar o vício, uma vez que tive ajuda para isso e nem me dei conta. vejamos, no ano passado, reencontrei o amor. senti-me feliz e leve de uma forma que não imaginava ser possível. a vida foi correndo descontrolada, não porque estivesse negativamente indomável, mas porque eu só não quis segurar as rédeas pelo caminho. claro que essas coisas não acontecem sem medo, e ter iniciado a análise no começo do ano foi me dando segurança para o fato de que pouco temos controle do que é externo a nós, mas ainda estou praticando esse fato, tornando-o palpável dentro da minha realidade. bem, depois do arrebatamento feliz, senti que apesar do amor, estava sem energia, um pouco estuporada, como se tivesse um interruptor que me ligasse e que me desligasse quando na presença dele ou não.

diante da sensação instigante de estar feliz e amando e, ainda assim, não ter muita energia para as outras demandas da vida, numa consulta com meu psiquiatra, falei como me sentia e perguntei se não poderíamos fazer algo. ele aumentou a dose do meu remédio, que ainda era de início de tratamento, embora já o tomasse havia mais de um ano. aos poucos, a nova dosagem foi se colocando e dois meses depois, sem que eu atribuísse isso ao remédio, fui fumando cada vez menos (o medicamento que tomo também é usado por pessoas que querem parar de fumar, mas a minha dosagem nunca havia influenciado no vício até então). de um maço diário, passei a fumar três cigarros por dia e passava outros dois sem fumar. sem esforço, sem fissura, sem sofrimento, sem me dar conta. eu simplesmente não sentia vontade de fumar como antes.

assim estava, até que no dia 19 de novembro, meu outro vício - em redes sociais - teve uma utilidade prática na minha vida. exercitando meus dedos rolando o feed infinito na tela, vi uma postagem que dizia que a indústria tabagista usava animais - cães, gatos, camundongos, coelhos, porquinhos da índia - para fazer testes. o que fazem é basicamente tortura, como colocar uma máscara com fumaça de cigarro na cara do bichinho e fazê-lo inalar essa merda por dez horas diárias para verem o que pode causar. sabe o que pode causar? pode causar câncer, filhos da puta! milhões de imbecis como eu, fumam e sabem exatamente dos riscos que correm, então fiquei indignada de saber que torturam os bichos para descobrir os males que o cigarro pode causar! e já não sabemos?! fiquei puta com toda essa patifaria e disse que não compactuaria mais com essa merda. disse a mim mesma que não colocaria mais um cigarro na minha boca, não sem antes chorar a ponto de soluçar vendo a foto do cachorro com uma venda nos olhos e máscara no focinho inalando fumaça.

eu sei que isso pode soar muito hipócrita da minha parte, uma vez que como carne e não quero entrar nesse mérito. eu sei que pode soar extremamente individualista a minha decisão ter se baseado no fato de eu ter imaginado que poderia ser meu gatinho mais novo, o Suri, naquela situação - porque sempre imagino meus gatos em todas as situações, boas e ruins -, mas também me compadeço por todos os outros animais, apesar de ainda comê-los e, sim, somos contraditórios, precisamos aprender a lidar com isso também. a questã é que desde aquele dia, não fumo mais. já estive em várias ocasiões cercada por fumantes e fiquei bem, sem tremeliques, sem lições de moral, sem bancar a ex-fumante chata porque cada um sabe de si e, eu, sabendo de mim, estou muito melhor sem o cigarro.

falta-me agora instaurar um vício saudável, liberador de endorfinas que me torne uma pessoa ativa e tudo o que o meu recalque não permite que eu admita. consegui me livrar do cigarro, mas ainda não consegui me livrar da persona fumante; ainda acho que "perco" em aura de mistério por não fumar; minha adolescente interna ainda acha que fumar é cool, mas a Karla adulta pensa que cool é não ter enfisema pulmonar, que cool é subir escadas sem colocar os bofes para fora. enfim, muitas habitantes minhas têm opiniões diversas sobre parar de fumar e sobre deixar de ser quem eu era quando fumava e isso envolve anos e anos não só de vício, mas também de armaduras que me serviram, de atitudes que me preservaram, de momentos e situações em que o cigarro foi mesmo um amigo, mas ser adulto é fazer o que nos faz bem, mesmo que a gente não queira. mesmo que a minha adolescente tenha uma crise porque muito da nossa identidade se forjou em cima de uma carteira de cigarros e de tudo o que ela representava pra gente. 

parar de fumar é também deixar ir, é calar, é adormecer, é talvez matar muitas vozes dentro de mim, vozes que só querem prazer a satisfação, vozes que não veem consequências, vozes que não se importam com o que fazem comigo porque não sabem distinguir certo e errado; isso poderia caracterizar meu id, mas serve perfeitamente para denotar um  comportamento de adolescente desvairado. eu já fui essa adolescente. eu já fui a menina insegura que com um cigarro na mão adquiria superpoderes: o de ser notada, de ser segura, de ser adulta, de ser sensual e misteriosa. lindo! me serviu por muito tempo, me ajudou incontáveis vezes a me sentir melhor comigo mesma. mas o cigarro não pode me definir porque, com o passar dos anos, eu me fiz notar, me senti segura, cresci e fui interessante e sensual e todos os adjetivos positivos que me cabem não graças ao cigarro, mas apesar dele. eu fui tudo isso porque sou tudo isso. os anos me deram isso. todas as coisas boas e todos os acontecimentos majoritariamente cagados da minha vida me fizeram ser essa mulher incrivelmente foda que eu sou e o cigarro estava ali do ladinho, mas não foi por causa dele que vivi nenhuma dessas experiências. sou eu, e todas as várias da minha mente que me trouxeram até aqui. sou tantas que os outros não veem e sou muitas mais que nem conheço, mas algumas delas, deixo ir, e quando elas se vão é porque outras já surgiram e, assim, seguimos.

bebam água.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

sobre os primeiros 18 anos

finalmente chegamos neste dia. agora você tem a idade que eu tinha quando engravidei de você. muito longe de almejar que padrões se repitam, penso agora em como somos diferentes, em como você está sendo diferente do que fui na sua idade... e é assim que tem que ser, ainda bem. as vivências não foram iguais, mas também foram porque falar de ser mãe compreende igualmente o papel de ser filha. as mulheres que nos tornamos. eu ajudei a te forjar e você a mim. uma moldando a outra sem formas terminadas. de todas as coisas que eu disse que não faria e fiz, de todas as coisas que não fiz e disse que faria como mãe, uma tenho certeza que se manteve: a de criar você pro mundo. 

nunca te quis pra mim, dentro de uma caixinha, porque a sua caixinha é muito grande. não tem bordas, muros, tampas nem limites. a sua caixinha é lá fora. vai pro mundo, filha. sei que, por enquanto, ainda estás aqui, debaixo das minhas asas, mas sei que logo esse passarinho voa; está cada vez mais perto desse dia. quando ele chegar, eu espero que você saiba que, por mais que a vida lá fora não seja nada fácil, sempre terás um ninho pra te acolher durante as tempestades. te amo. feliz 18!


sexta-feira, 17 de setembro de 2021

sobre a reza e o sonho

eu não acredito muito, ou melhor, não acredito nada, mas ainda tenho um pouco de medo. alguns dos trechos me fazem sentir boba, parece até que estou contra meus princípios. ainda assim, continuo ouvindo, adaptando mentalmente para as ideias que fazem sentido para mim... e não é que venho percebendo alguns movimentos dentro do meu emaranhado? 

meus sonhos estão falando comigo, talvez mais alto do que antes, e tento entendê-los. eu sou a casa, eu sou mãe com o tiro na testa, eu sou a filha pequena e o irmão cuidadoso. sou também o filhote de gato com duas carinhas e a cobra que tenta me dar o bote. 

não pronta ainda, e nem sei se por isso, mas tenho tido um pouco mais de vontade de estar aqui, escrevendo. 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

sobre os sons que fazemos e as viagens que sonhamos

sabe a postura? tenho que corrigi-la. coluna ereta, cabeça encaixada, queixo levemente pra cima, peito pra fora e barriga pra dentro. daí, deito de ladinho porque é a posição mais gostosa e confortável e fico com os ombros encolhidos, toda torta, com a cabeça mal posicionada, mais baixa do que deveria; o pescoço em ângulo ao invés de bem retinho... ui ui ui, murmuro de dor, ouço estalos de vários ossinhos, de várias partes... tento encontrar o conforto no travesseiro mexendo a cabeça, meio que me aninhando, miando baixinho enquanto te dou boa noite.

cabeça com cabeça; não pode haver um buraco entre os travesseiros porque elas rolam pelo macio durante a noite, nos sonhos, enquanto estamos cada um no seu universo inacessível, mesmo de mãos dadas, mesmo juntos nos despedimos na hora de dormir, porque nesse momento cada um vai pra um lugar, que nunca sabemos onde fica, nem com quem vamos nos encontrar. mesmo lado a lado, nos deixamos. outro dia, pegamos um avião e fomos para a China. caminhos e caminhos para chegarmos até o aeroporto. depois, malas e guichês; escadas rolantes e salas de embarque. nos meus sonhos os aviões têm um quê de ônibus espaciais... voamos e chegamos ao destino. muitos turistas, ruas cheias e paisagens novas. eu busco por um perfume; estou sempre atrás de um cheiro a mais para a minha coleção de lembranças.

o sonho acaba porque acordo. volto da minha viagem; você, da sua. dessa vez, me lembrei, mas nem sempre sei para onde fui ou o que aconteceu. fica ali, perdido na viagem inconsciente. às vezes, no meio do dia, alguma coisa corriqueira que acontece traz à tona e me recordo. é como um déjà vu. a coluna estala, a escápula dói. nos olhamos, nos cumprimentamos, perguntamos como foi a noite; o sonho impenetrável até pra gente mesmo. penso nos grunhidos que faço quando me espreguiço feito um gato; penso nos gemidos gostosos que dou quando como uma comida muito boa. 

nos levantamos e tomamos banho. tomamos café. nos despedimos porque é só segunda-feira ainda. suspiro quando você vai embora. volto à sala de embarque que é a minha cama, pensando que poderia viajar novamente, mas a vida urge porque é só segunda-feira ainda. último dia de férias; gemo.