Foi ontem e ontem eu estava sentindo tantas coisas e vendo tantas outras dentro da minha cabeça... cheguei a pensar em escrever, mas rapidamente desisti da ideia porque, como sempre, faz tempo que não escrevo e mesmo sabendo o tanto que você significa pra mim achei que não tivesse nada a dizer. Achei que estava oca; mas deve ser porque estou já que você ocupava tantos espaços na minha vida... como pode? Era só um gato, só que não. Era o Marte. Preto, lindo, corpulento. Meu nego, meu príncipe. Ontem à tarde, achava que via você pela casa, como uma sombrinha de amor.
Foram 13 anos. O gato preto viveu por 13 anos; será que isso
quer dizer alguma coisa no mundo das superstições? Ele e a Marta são os animais
mais longevos que tive até aqui. Eles cresceram junto com a Ana e junto comigo
também porque naquela época eu tinha 26 anos e hoje tenho 39.
Pensar que não verei mais seus olhinhos semicerrados sobre a
minha cama, que não verei mais as suas patinhas fininhas que sustentavam seu
corpanzil macio desmunhecadas como se você fosse um urso fofo deitado no tapete
da sala tomando o sol da manhã. Pensar nisso me faz querer não pensar que você
existiu um dia. Pode parecer cruel, mas é só porque a dor está bem aqui no meio
da minha cara. Vai passar e eu vou lembrar de você com todo o amor que merece
ser lembrado.
“nossa, que gatão!”, “nunca vi um gato grande assim!”, era assim
que se referiam a você. Cara de bravo, mas um doce. Era só não encostar na
barriga. Sabe que eu tive a prova de que a vida continua mesmo quando ela para,
no momento em que eu falava de você pra Thaís, aqui em casa. Falei sobre
esperar até o final de semana pra ver como você reagiria, mas enquanto eu
nutria alguma esperança sobre a sua volta, a veterinária tentava me ligar pra
avisar que você tinha morrido.
Sim, você morreu. Ela disse que veio a óbito, mas acho essa
expressão horrível. Técnica, de necrotério. Também não gosto de “faleceu”;
parece que não exprime a morte na totalidade, no sentido finito que a palavra
traz. Eu acho que a morte não deve ser suavizada na sua expressão porque ela
não pode ser diferente do que é, infelizmente. Como não há retorno, quando ouvi
a notícia no telefone imediatamente voltei a chorar porque já tinha passado o
dia todo chorando por sua causa e a minha análise foi inteiramente dedicada a
você algumas horas antes, quando a torneira se manteve aberta por quase uma
hora inteira.
Como estava me esvaindo em lágrimas e calçando o tênis pra
te encontrar, tua tia me abraçou tão forte que eu senti que se ela pudesse,
tiraria de mim a dor e o sofrimento com a notícia. Senti meu corpo apertado,
mas não adiantava. Pegamos trânsito por causa da véspera do feriado. Chegamos e
a veterinária demorou uns minutos para aparecer e quando apareceu, queria
decerto me dar alguma explicação, mas eu só queria ver meu filho. Nada do que
ela falasse faria qualquer diferença, então só queria vê-lo.
Quando te trouxeram embrulhadinho em uma cobertinha branca,
que nem um neném, na hora me lembrei do ditado que se espalhou nas redes
sociais que diz que “se fosse pra não pegar gato no colo, deus não os teria
feito do tamanho de bebês” e eu peguei o meu bebê velho no colo pela última
vez. Já dava pra sentir que era disforme, que estava frio, mais pesado, todo
molinho como se não houvesse nem um osso no corpinho, nada que segurasse sua
cabecinha nem que tivesse força pra fechar seus olhos amarelos. Era você, mas
você já tinha ido embora.
Na hora do almoço fiquei com você no meu colo por vinte
minutos, enquanto se mantinha imóvel, dopado de remédios para dor, com as
patinhas frias escondidas na minha mão direita e a cabecinha recostada no meu
braço esquerdo. Você não ronronou, mas a energia que dá vida ao corpo ainda
fazia parecer que tinha ossos e músculos por debaixo da pelagem já toda
avacalhada; a lateral do corpinho e as duas patinhas dianteiras raspadas pra
facilitar a aplicação dos remédios, do soro.
Eu não queria que você morresse sozinho no hospital, mas não
pude evitar que esse fosse o seu fim e, por isso, peço perdão porque deve ser
muito triste morrer sozinho em um hospital, mesmo pra um bichinho. Eu falhei
com você, meu filho, mas ainda tentei dar alguma mostra de respeito por sua
passagem tão maravilhosa por essa merda de mundo que, certamente, foi um pouco
melhor porque você existiu.
Trouxe você pra casa. Queria que seus irmãos pudessem se
despedir de você. Que pudessem sentir seu cheirinho por baixo do odor de
hospital. Que pudessem sentir que você voltou, mas que já não estava mais aqui.
Eles têm a lógica deles que certamente não condiz nada com a lógica que eu
criei humanizando todos eles, humanizando seu corpinho como se houvesse algum
tipo de consciência e que eu pudesse saber o que você estava pensando mesmo
depois de não existir mais.
Eu tirei fotos de você dentro da caixa em que veio porque
quero criar novas tradições que são muito velhas. As pessoas faziam isso até o
início do século XX, quando em algum ponto desses cem anos decidiram tirar a
morte de casa e nos afastar dela. Você morreu no hospital, mas voltou pra casa
porque é a sua casa o último lugar em que você vai estar – mesmo não sendo,
porque o último lugar é a geladeira do crematório para depois ir ao forno do
crematório e virar cinzas. As cinzas serão trazidas para casa, então aqui
realmente será a última parada.
Veja, você vai morar em uma vitrine de medicamentos junto
com seus outros irmãos, Raquete e Pretinha. Acho que não posso continuar
colocando cacarecos lá dentro porque em algum momento haverá mais urnas lá. Até
a minha, receio.
Tirei fotos, coloquei sobra a sua pancinha flácida uma
florzinha que a Thaís trouxe pra mim; foi muito propícia e significativa. Ontem,
até rezei pra São Francisco de Assis mesmo sendo ateia; achei que mal não
faria. Uma das partes da oração dizia sobre “ajudar a nossa batalha, eliminando
as enfermidades e o sofrimento deste animal”. Parece que a oração fez efeito
porque você não está mais sofrendo.
Eu senti seu cheirinho no meu quarto o dia todo e estou
tentando me distrair pra não pensar que agora você só existe aqui dentro, mas
vai continuar existindo enquanto eu me lembrar e eu nunca vou me esquecer.
Quando a gatinha do namorado da Ana e dela morreu, eles
ficaram muitíssimo tristes e eu disse a ela que os bichinhos não vivem tanto
quanto nós porque, se vivessem, não teríamos a chance de ter tantos deles. O
raciocínio é que depois que um bichinho morre a gente abre vaga para que outro
entre em nossa vida; só que isso não é uma substituição do animalzinho
anterior, é a escala de amor aumentando desde que o primeiro deles entrou na
nossa vida. É uma oportunidade de experimentar o amor incondicional de um animalzinho
e, pensando só no amor, esquecemos de que eles terão uma vida mais curta do que
a nossa e de que nossos corações serão quebrados em mil pedaços quando a hora
chega, mas que depois tudo será colado de novo, com amor e pelos no meio das
rachaduras, assim que um novo gatinho adentra as nossas vidas.
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