quinta-feira, 23 de julho de 2020

Sobre os anos

Antes de eu nascer, antes de todos nós nascermos, o mundo já estava aqui. ele é o palco, sempre foi, das nossas vidas. é no mundo que nos desenrolamos, que crescemos e experienciamos. na medida em que o tempo passa, passamos nós também. o tempo passa e só sabemos disso porque estamos amalgamados nele, mas ele em si não existe, na verdade é a gente que passa pelo tempo. o que existe é a gente, morrendo um pouco por dia, vivendo um pouco por dia, sentindo os anos se acumulando na carne, na nossa subjetividade. no dia em que eu faço aniversário - porque assim se partiu o tempo, em horas, dias e anos -, estou aqui com o que dizem ser 36 anos. para o tempo, não sou nada; lembra, sou eu que passo por ele. sou eu que o uso como norte da existência. eu que o vejo passar, mas quem está passando sou eu, passando pelos crivos todos que nos são impostos antes mesmo de chegarmos. passando pelas relações parentais, pela escola, pelos amigos, pelos amores, pela família, pelos empregos, pelas casas, pelas ruas, pelas dores, pelas alegrias, pelos pôres e nasceres de sol, pelas chuvas, pelas viagens, pelas perdas, por tudo o que se possa dar sobre esse palco.

chego aqui inteira nisso tudo, não dividida em 36 anos, que poderiam ser 14 ou 80 se as convenções fossem outras. chego aqui um pouco com gana, um pouco cansada. seja como for, continuo deslizando pelo tempo.

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" [A Gaia Ciência, §341]