quarta-feira, 30 de outubro de 2019

sobre desamparo e desamor

eu era pequena, não sei quão pequena, mas estava sentada no colo dela, na sala de estar. eu ouvia sua voz e a sentia falar abafado, pois minha cabecinha estava encostada em seu peito. ela me abraçava e eu via as várias jóias que usava nos pulsos, os anéis de ouro nos dedos, as unhas pintadas de vermelho reluzente. eu estava acolhida no colo de minha mãe. um colo. é o único colo de que me lembro na infância, só aquela vez. hoje, eu sentei no chão da minha sala, sobre o tapete, com as pernas cruzadas e esperei que aquela menina entrasse pela porta. ela vinha um pouco maior, com os cabelos mais escuros e uma franja curta. ela vestia as roupas de moleque que eu vestia na meninice. entrou, veio em minha direção e logo enroscou os braços no meu pescoço. eu a abracei e a coloquei no meu colo. aquela menina franzina, meio tímida, queria meu aconchego. eu dei a ela. coloquei sua cabeça em meu peito como minha mãe fizera comigo - me lembrei de alguns cafunés que recebia; o som das unhas passando pelos cabelos, o relaxamento e os olhos cerrando na segurança da presença materna.

Fiquei com aquela menina ali, meio a embalando em meus braços, dizendo a ela que apesar de ela não ter recebido todo o afeto que lhe cabia, ainda assim ela o merecia; merecia amor, carinho e cuidado. não era culpa dela. nunca foi. ela só estava ali e por ali estar, apenas por existir ela merecia ser amada. então a abracei forte, me abracei e chorei até soluçar porque nunca tinha me ocorrido que em 35 anos eu havia recebido colo de tão poucas pessoas. colo de verdade, sem julgamentos, sem perguntas, sem moral. colo onde eu pudesse me esvair em lágrimas até me sentir seca e melhor. me senti desamparada de perceber que foram tão escassos. senti: caramba! que vida sozinha! quantas vezes sofri sozinha e não tive um colo pra me acalentar... eles demoraram pra surgir e os tenho garantidos, tenho certeza, apesar de poucos. eles me acalentaram e eu sei que também estive ali por eles.

ainda assim, me senti pequena, diante de um grande vazio, como se todas as pessoas que tivessem passado pela minha vida tivessem sumido e eu estivesse diante de um vácuo branco, sozinha, criança, perdida, deixada, infeliz. foi horrível. quisera não ter sentido, mas agora está registrado, mesmo que eu me esqueça, está aqui, em palavras, e está em mim, na minha mente.

em uma tarde febril de primavera, eu encontrei a minha menina a quem disse coisas amorosas em meio à vergonha, porque proferir palavras de amor a mim mesma, com sinceridade, ainda soa como algo... errado? não sei... preciso me convencer de que merecemos e dói, dói tanto que não seja natural, que não seja fluido; eu travo um tanto, um abraço de amor não é fácil, de compaixão genuína. me vejo, a vejo e esperamos ser enxergadas com o mesmo olhar; esperamos ser colocadas no colo e acarinhadas. um pescoço para enroscar os braços é o que queremos, mas primeiro precisamos entender que temos direito a isso.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

sobre o controle

controlar. segurar firme nas mãos e não deixar escapar. por medo do abandono, por medo de falhar, por medo. queremos sempre controlar o que não temos controle, o que está fora de nosso alcance, além de nós. o que está em nós, o que somos, o que apenas nos cabe e compete, deixamos de lado. eu deixo de lado; só por mim posso falar. meu modo de agir, de ser e de pensar. é sobre isso que tenho controle, mas os modos parecem fugidios e escapam à minha percepção. agem à revelia. me sabotam, como se eu não fosse capaz de domá-los, sendo eles eu mesma. foco no externo, fugindo de mim, tentando com isso tampar meus buracos, preenchê-los. e o faço com sucesso, mas ao contrário, enchendo-os de desassossego, de aflição, de ânsias idealizadas que me reviram o estômago e me cansam a mente. não basta perceber o todo, é preciso atuar sobre ele. é preciso se moderar, se modelar, se forjar para caber em si mesmo e ali ficar. dentro da minha forma, atuando em mim é o que posso fazer.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

sobre as casas que sou

voltei a sonhar com casas. cada sonho, uma casa diferente. às vezes elas são pequenas, de madeira, realmente necessitadas de uma reforma, mas gosto tanto delas... mudo os móveis de lugar, analiso os cômodos, vejo o que pode ser feito, transformado. tenho animais de estimação. às vezes cães, às vezes gatos. meus gatos nos sonhos são filhotes. minha filha nos sonhos não é uma adolescente; ela é pequena, minha. às vezes um bebê, que mama em meu seio. às vezes estou grávida e excitada com a expectativa de um novo ser. às vezes, meu marido e meus amigos estão comigo. às vezes estou sozinha em uma enorme casa, com grandes escadarias em caracol. eu e os fantasmas, meus fantasmas. eles não me assustam. cuidam da casa e cuidam de mim porque eu sou a casa. com grandes vitrais, largos corredores, muitas salas, móveis antigos, quartos espaçosos, cozinha acolhedora, muitos andares, telas, pinturas rebuscadas, tapetes peludos. concluo que estou grávida de mim mesma há 35 anos e ainda não me pari. que beleza é perder-se em si mesmo sabendo o caminho de volta. que tristeza é perder-se em si mesmo e só se perder, sem nunca encontrar nada além de um caminho tão longo e tortuoso que não se sabe mais como voltar, nem como se foi parar ali. que inferno é ser sua própria casa, lugar de aconchego e aprisionamento; gozo e dor. pra sempre um preso no outro, intercalando entre quem está dentro e quem está fora, sem nunca poder fugir dessa dinâmica. entre a visão de tudo o que se quer, o que se pode e o que se consegue. quero me parir, quero poder sair de mim sem ter medo de voltar.