quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O caminho da barriga

Não consigo dormir e isso é raro. Me sinto mal quando não consigo, porque isso é sinal de que já dormi demais horas antes; demais até pra mim que durmo como ursos hibernam no inverno frio. É ruim porque sinto que não estou indo pra onde deveria ir, pro meu caminho, pra profusão de símbolos que transbordam soltos na minha cabeça.

Quando eu era mais nova, com alguma regularidade, sonhava com ruas muito íngremes, tanto que me davam náuseas; às vezes eu tentava subi-las com um carro, mas o carro andava pra trás e eu entrava em desespero. Deviam ser os tempos fodidos da época. Agora, o que me invade com frequência são os sonhos  com estradas, muitas delas. Rodovias, caminhos-movimentados-sem-fim. Ando por marginais, vias-expressas, ladeiras e faço muitos retornos. Acho que isso quer dizer que ainda estou buscando o meu caminho, aquele feito sob medida pra mim, pro que eu busco e ainda não sei onde vai dar.

Em muitos deles eu paro em grandes supermercados e faço compras. Adoro mercados e posso passar horas pelos corredores. Os grandes, que têm tudo, são os meus favoritos. Dentro deles me sinto amparada, porque sempre gostei de me imaginar em cenários apocalípticos e os mercados me dão a sensação de que vou encontrar tudo o que preciso ali. Não se preocupe, aqui você está segura, eu penso. Acho que nisso está também o meu interior mulherzinha, dona-de-casa. Muitas pessoas odeiam ir ao mercado, acham verdadeiro suplício. Eu poderia ser a compradora oficial das famílias atarefadas, acho terapêutico um bom supermercado.

Acho também que gosto tanto hoje porque quando era menor, lá naquela cidade onde cresci, o mercado não era lá muito sortido e mesmo quando era, nem sempre podíamos comprar tudo o que era gostoso. Deve ser lombriga remanescente de tempos difíceis que ainda me habita. Acho que por isso sou gorda hoje; meu inconsciente ainda pensa que pode faltar, então quando surge a possibilidade de comer um bom prato, de gordura principalmente, ele deve ser bem servido, porque nunca se sabe quando veremos um igual novamente. A necessidade primordial sempre fala mais alto, mesmo quando já está sendo suprida.

Nisso, o lado com que pouco falo, vai falando comigo. Me deixa no corpo a mensagem do medo da falta e nos sonhos a busca pelo caminho que ainda não encontrei.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Te direi quem és

Dizem ainda hoje, mas isso já vem há alguns milhares de anos, que gatos são seres muito especiais; neutralizadores de más energias, deuses, protetores, superiores e afins. Apareceram na minha vida quando eu ainda era muito pequena e, mantêm-se nela até hoje, mas agora vistos sob uma ótica que minha cabeça sempre avoada nunca fora capaz de perceber, apesar da convivência diária com os pelos e miados... Eis que certa pessoa me diz um dia que os gatos que tenho aqui em casa não são nada além de um alter-ego meu; na verdade, dois; Marte e Marta, de acordo com ele são a representação dos meus lados masculino e feminino, bem aqui, passeando pela casa e esfregando o que sou na minha cara todos os dias, por quase dois anos, sem que percebesse que eles são como eu.

Depois do choque, vi como as coisas se encaixavam.

Marte, meu lado masculino, deus da guerra, colérico, negro como o que não tem fim, mal-humorado como os velhos mal-amados, impaciente, gordo e sedentário, faminto e calado, vingativo e isolado; destemperado, retraído e nunca muito acessível a ser amado, tocado e acolhido, a menos que parta dele próprio a vontade de assim o ser. Ele dorme o dia todo, como todos os gatos, mas seu sono imiscui-se ao meu, tornando a nossa fuga muito mais agradável através de seus pelos pretos que se soltam sobre o chão, sobre os tapetes e as cobertas.

Marta sou eu feminina e, mesmo nisso, há o Marte junto. Curioso é que pesquisando sobre Marta, descobri que esse é o nome de um animalzinho muito simpático, parente das doninhas e que faz parte do gênero Martes (!) e, vejam, vocês, assim como a parente selvagem que é curiosa e facilmente atraída por qualquer coisa que brilhe, assim também sou eu; do espalhafato, do brilho, da purpurina. Além desse bichinho, Marta também é um nome bíblico e de acordo com algumas fontes, quer dizer dona de casa, senhora da casa e esse significado não poderia ser mais propício para nós duas.

A gata é delgada, rajada e elegante. Tem olhos brilhantes e miado entusiasta. Anda pela casa atrás de todo mundo, especialmente da Ana, no que ouso dizer que a gata a vê como uma filha também, porque está sempre atenta ao que a menina faz. Além disso, fala como uma comadre sem papas na língua. Às, vezes, estamos nós humanos conversando, quando surge alguma pergunta derradeira, a qual a felina metida sempre  responde com um sonoro NÃO. Ela manda e desmanda, sempre afofando as cobertas, subindo nos meus ombros como um papagaio de pirata, ronronando nos pés da cama, exigindo comida nova e água fresca, confortando com seus olhos de ouro nossas cabeças que carregam o mundo dentro de si.

Ela é simpática, sociável, leve e preocupada com o bem-estar de tudo o que a cerca. Se me deprimo, durmo; se durmo, sei que logo eles virão para me acompanhar na solidão. Se bagunçamos a casa, logo estão eles juntos a comer caixas, derrubar água e a correr sem parar com suas unhas tilintando pelo assoalho e tornando nossas noites ainda mais miseráveis. Se há portas fechadas, mandam os dois peludos que elas sejam abertas, aos seus interesses e necessidades. Se há frio, aconchegam-se em nossos colos ao seu bel prazer e se estamos receptivos ou se percebem a falta em nossos olhos, vêm como seres cheios de luz e compaixão e nos presenteiam com carinhos amoráveis de cabeça contra toda a nossa matéria. Liquefazem-se em pelos macios, como mãos aprazíveis que nos tocam não só a pele, mas também o coração, enchendo-nos de amor desinteressado, que é o amor mais puro que há, já sabem disso os humanos.