sexta-feira, 30 de abril de 2021

sobre o estranhamento da felicidade cálida

a despeito de tudo o que está acontecendo lá fora, aqui dentro parece que os habitantes estão se acomodando, sem impaciência, sem urgência. parece que se olham entre si e caminham para onde acham que é o seu lugar, sem medo de que o lugar não lhes caiba; assim estão se assentando. não se cobram, não me cobram. eu os observo e eles se veem observados, mas não se importam; seguem o caminho que acham que devem seguir. pode soar estranho, mas estou me sentindo feliz. 

depois de um período soturno, angustiante e letárgico, é como se a vida tivesse voltado a um compasso acertado, daqueles que não são eternos, em que se juntam pequenos momentos febris e leves, daqueles que não queremos que passem, mas já se foram. a beleza do compasso certo é que ele mantém o caminho aberto pra que esses lampejos se repitam, e assim tem sido, desde que me deixei levar, desde que soltei a corda, desde que deixei o controle daquilo que não me cabe. é uma boa maneira de se agir e, pode soar estranho, mas estou me sentindo feliz. 

e isso quer dizer muito, porque sinto como se a felicidade fosse clandestina, escondida da tristeza, das cicatrizes; é como se fosse uma traição à dor que sempre foi mais presente e mais familiar. o excesso de tristeza e de apatia, em algum momento, causam náuseas, cansaço mesmo de senti-las. a mente pensa demais e pouco age; o torpor também cansa. fico cansada de estar cansada. cansada de me sentir infeliz; então corto os laços com a dor, com parte da história. quero tecer novas redes, criar novos enlaces com tudo que queira se envolver comigo. eu quero e, pode soar estranho, mas estou me sentindo feliz.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

sobre bater e apanhar

essa semana eu disse ao meu analista que não gosto quando ele se atrasa pras nosssas sessões porque isso me deixa ansiosa. às vezes, eu acho que não tenho nada a dizer, mas semana a semana, tenho vomitado mais. são golfadas que saem de mim e que gosto de compartilhar com ele. disse a ele que lhe conto tudo que conto à Thaz, que temos a mesma interlocução, com a diferença de que ele é um homem me ouvindo. é claro que ele não me diz o que diria um amigo, mas falo pra ele coisas que não diria a um amigo homem, e é um tanto libertador saber que posso lhe contar qualquer coisa sem medo do que ele pensa de mim - e ele deve pensar - mas é aí que está a libertação, foda-se o que ele pensa a meu respeito porque nem eu estou ali pra agradá-lo e nem ele está ali pra me julgar; parece uma troca bastante justa. eu pago para que ele me bata subjetivamente. em toda sessão levo alguns tapas, chacoalhões. a análise te estapeia, desestabiliza, te faz ligar pontos e fazer conjunturas que você não imaginava serem possíveis. "é preciso sair da ilha para ver a ilha". isso é sempre um deleite e uma dor. há momentos em que começa como uma dor e que depois se transfiguram em alívio, em confusão, em questionamento...

dito isso, volto aos tapas, ao ato de bater e de apanhar, à sensibilidade de quem bate e de quem apanha. há, claro, dias e dias; são todos distintos e imprevisíveis, mas no geral, gosto de apanhar. não me entenda mal você que, por ventura, lê isso. gosto de apanhar, mas não deliberadamente. se você simplesmente virar a mão na minha cara, é provável que eu vire na sua de volta; mas se eu peço que me bata, então me dê o seu melhor tapa. ele pode começar tímido e ir se revelando em uma crescente de som e vermelhidão. eu gosto quando sou eu quem pede e, se sou eu que peço, isso me faz jubjugada ou dominadora? não sei dizer, talvez seja uma miscelânia e é o que somos, não é? um pouco de muitas coisas.

deixar-se vulnerável para apanhar e sentir de fato o que a dor suscita. raiva e tesão. vontade de revidar, mas de continuar no papel. me vejo no espelho refletida e me sinto linda nesse personagem, me vejo brilhando, regozijada, mas só é assim porque é o que eu quero, quando quero, na intensidade que quero, no momento em que quero, dentro do espaço da experimentação. eu me experimento. fora dali, sou mole, besta, sensível e, por vezes - muitas - também sou tudo isso no mesmo espaço. na pausa da exaltação, me faz uma massagem com as mãos leves, não me aperta, não me puxa, não me bate porque eu não gosto. eu fico roxa fácil e você pode me deixar roxa, mas só se eu pedir. olha no meu olho; eu gosto de ver. me dá "oi" e me olha, me come só assim, com os olhos e depois me come do jeito que quiser. fala o que quiser, mas não me pressiona. fala o que quiser, mas não fala o tempo todo. fica quieto, mas não pra sempre. 

faz como quiser, mas também me segue; faz como quiser, mas então fica parado porque é o que eu quero. me beija e depois deixa que eu te beije. beija a minha mão e deixa que eu lamba os teus pés porque é o que eu quero, de cima abaixo. isso raramente acontece comigo, mas agora não sei como terminar o que comecei. então é isso; acabou.

p.s.: em todos os âmbitos da vida, apanhamos. a vida bate com força e sem permissão mas, quando se tratar de outra pessoa, tudo pode ser, inclusive nada, se você não quiser. consentir ou não, essa é a chave. o limite é o que se dá. não se ultrapasse.

p.s².: não sou a pessoa que bate; não gosto de bater. talvez não goste porque, apesar de bater ser exercer uma ação sobre o outro, só o faço se for obedecendo a um comando e eu não gosto de obedecer ordens; não gosto que mandem em mim. é contraditório que o que poderia ser visto como um ato de dominação sobre o outro, pra mim, seja visto como submissão e eu não tenho problemas em ser submissa, desde que isso seja a tônica do momento e não uma submissão travestida de dominação - porque sou eu quem bate, mas só bato porque você manda, então me submeto -, eita, que eu achava que tinha acabado, mas está indo longe... aí está! ao mesmo tempo em que gosto de dominar, gosto de ser subjugada, tudo junto, tudo ao mesmo tempo e na minha cabeça isso funciona muito bem; na prática também, não posso me queixar.