sexta-feira, 25 de junho de 2010

Nove anos

Não tardou a vir o peso na alma, porque hoje faz nove anos; faz nove anos que eu não sei dele, faz nove anos que ele resolveu desequilibrar as nossas vidas para tentar encontrar paz na dele. No caminho do cemitério Ana me disse: “Mãe, acho que teu pai deve estar orgulhoso de ti”, e eu disse: “Será? Será que ele tem alguma razão para isso? Será que ele sequer consegue pensar em ter orgulho de alguém?”, eu pensei.


Lembrei que quatro anos atrás, eu estava realmente de saco cheio da minha vida, e dos meus problemas, e num dia frio, muito frio e com chuva torrencial, eu resolvi ir até o cemitério brigar com ele. A pé, andando desarvorada, eu ia chorando, e quando cheguei lá, coloquei toda a minha revolta para fora, porque ele não poderia sumir assim, não para sempre, não sem me dizer pelo menos que alguma vez na vida dele ele se importou.

Eu ouvi um pouco mais dos dois lados da história, e o problema é que nenhum deles me favorece, nenhum deles me faz sentir mais sossegada diante da vida, e espero que essa covardia toda que eu vi, tanto dele quando dela, não me faça seguir seus passos de fuga. Não quero fugir da vida como eles, mesmo que me dê enorme vontade de fazê-lo às vezes, é preciso que eu pense em uma pequena criatura que descia pulando o largo parapeito do cemitério sem pensar ainda no que é a morte.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O cavalo morto

Ele estava entre as duas pistas de asfalto, numa larga faixa de terra batida, alaranjada. Havia poças de lama e muito lixo espalhado. Ali estava o cavalo morto - um pobre pangaré, daqueles que trabalham à exaustão puxando uma carroça - caído de lado, teso como se fosse um boneco, um boneco podre. À sua volta, ao longo dos dias, ia se formando um lodo de chorume que se soltava da carne que ia estragando e estragando. O animal inchado como um balão, tinha coberto o corpo de larvas de moscas, que depositavam ali seu pequeno legado de imundície. O pelo marrom já era ralo, e tinha a língua para fora, empretecida. O cheiro de carniça me fazia imaginar como estavam as tripas do bicho naquele instante, se é que ainda havia tripas, se é que o corpo morto não tinha se autodigerido para no fim de todo o processo virar nada. Eu vi sua cara vidrada, os olhos sem brilho, opacos, os dentes amarelados e a gengiva apodrecida. Parecia ter morrido de susto, e qual seria o susto de se ver morrer e jazer na rua? Como indigente a céu aberto, carne podre para ser cuspida, o cheiro da morte vermelha.