terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

sobre despedidas, luto e elaborações

minha cabeça está explodindo. é depois de amanhã e eu vou junto, vou te levar, vou te deixar lá, mas é depois de amanhã que você vai embora. eu falei que queria que você fosse um passarinho e aprendesse a voar... bom, tô abrindo a gaiola, tô abrindo mão do controle, não que eu tivesse muita escolha... não é um favor que estou te fazendo, é só a vida chamando, mesmo que não seja da maneira que eu esperava porque também a vida caga muito pro que a gente espera dela... agora estou tendo que lidar com tantas coisas aqui dentro... com o ninho que vai se esvaziar e que vou precisar preencher de mim mesma. fui muito besta de achar que seria fácil, que eu estava preparada pra isso, mas é porque a gente nunca está preparado pra morte. é, sim, é uma morte. enquanto você crescia e mudava de fases - e eu já disse isso antes -, enquanto você deixava de ser um bebê pra se tornar uma criança, quando passava de criança a menina, de menina a menino, de menino a adolescente experimentadora... em todas essas fases, era como se tirassem uma pessoa e colocassem outra no lugar dela, porque um dia você já não era mais o meu neném, mas ainda era lá dentro, só a aparência ia mudando e você ia criando camadas, novos contornos de si, novas formas de ser mais um pouco, de se tornar e foi se tornando, se modificando... eu sentia que te tiravam de mim, mas colocavam outra no lugar e eu não notava porque você continuava aqui, debaixo da minha asa de galinha cacarejante, mesmo quando você já estava percebendo que as suas asas batiam nas paredes de casa, que estava ficando pequena pra você porque o limite da ave é o céu; só esqueceram de falar isso pra mãe dos pintinhos, passarinhos, avezinhas - me coloquei como galinha porque me parece mais maternal do que uma passarinha qualquer, abstraiam a mistura dos seres de penas.

daí vem a morte, porque um pedaço meu vai indo pela vida. foi ela que foi mudando você, mas fui eu que cuidei de você enquanto ela te mudava diante dos meus olhos cotidianos que não se apercebiam de que esse dia iria chegar. o dia em que você vai voar sozinha e que eu vou me encher de vazio de não te ter mais aqui. dia em que vou me encher de culpa porque se você falhar diante da vida - e você vai, porque ninguém consegue ser um sucesso o tempo todo -, isso vai mostrar pro mundo que eu não fui uma boa mãe, que eu te criei errado, que eu não dei tudo o que poderia ter dado, que eu não fiz tudo o que poderia ter feito, que eu sou um fracasso na tarefa mais difícil de todas que é criar um ser humano e há bilhões deles por todos os lados, criados e se criando. a gente se ajeita como pode e eu preciso aceitar que não poderia ser perfeita, porque nunca fui perfeita em nada, nada. nunca fui o destaque de porra nenhuma, daí o normal é que também não fosse uma mãe perfeita. eu fui a mãe possível. fui a mãe que deu pra ser porque apesar da grande responsabilidade do papel, eu não sou só mãe; tenho outros papéis. sou uma pessoa e foi assim que consegui dessacralizar a minha mãe. vi que a minha mãe tomou decisões na vida primeiro considerando-se uma mulher e depois levando em conta o papel de mãe; depois levando em conta que, na bagagem, sempre levaria dois filhos.

ser a mãe possível é ser a mãe que faz merda, mas que está sempre tentando acertar. claro, a menos que você seja uma psicopata, você nunca vai foder o mental dos seus filhos de propósito. essas coisas são acidentes de percurso; são coisas que acontecem quando a gente trabalha com o que tem, com as ferramentas de que dispõe, dando o amor que a gente recebeu ou não. eu sou a mãe possível que há quase 16 anos em terapia tenta não reproduzir o padrão da minha própria mãe, embora me veja igual a ela em tantos momentos e procure me distanciar disso; isso é um pouco como enxugar gelo porque ela está em mim, por mais que eu negue, por mais que eu tente ir pra longe. a gente se separa no físico, mas no campo subjetivo é um pouco mais difícil. a questão é que agora se trata do meu papel de mãe.

nesse papel, junto com todos os outros, fico com a sensação de que não fui muito boa em nenhum deles. me desmereço por um lado e me acho muito foda por outro. será que um dia você vai perceber que eu fui muito foda dentro das minhas possibilidades de ser foda? ou será que você vai me culpar pra sempre por todas as faltas e traumas e questãs que existiram, existem e existirão? é muita responsabilidade... é como se no momento em que for pra vida, não só você, mas eu também serei colocada à prova. a vida manda as questões, dizendo: vamos ver se a Karla foi uma boa mãe ou uma mãe de merda? e se você falhar, isso atestará minha incapacidade como mãe. bom, incapaz ou capaz, consegui fazer você chegar até aqui... e, não, isso não é o suficiente, mas nunca nada é o suficiente, então dá pra eu ficar em paz, mesmo lutando contra a ambivalência da maternidade, a ambivalência do amor, a ambivalência minha e a sua em relação a mim.

talvez confiar em você, no seu potencial e em toda a sua capacidade de adaptação seja difícil porque eu acho que não consegui te ajudar a desenvolver tudo isso satisfatoriamente. tenho medo de não ter te preparado, por isso tenho receio de te soltar. tenho medo que você fracasse porque isso seria sinal do meu fracasso e sei que isso é muito egocêntrico, mas é como me sinto. acontece que agora é que vem a oportunidade de ver na prática você sendo você, com o que pôde aprender comigo ou não, com o que pôde aprender com tudo o que já viveu; é a oportunidade de ver o que você vai ser capaz de fazer com quem você é, do jeito que é, que está. existem tantos jeitos e maneiras... são tantos os caminhos e quantas as escolhas... que você faça as melhores escolhas, que tenha as melhores experiências, isso é o que eu desejo. que você sempre se lembre que decidir por algo é abrir mão de todo o resto. e que escolher ou não escolher tem consequências, tudo tem. ainda assim, que você se lembre de que decisões podem ser revistas, que acordos podem ser mudados; que apesar de não saber como a vida vai te tratar, não tenho dúvidas da sua bondade, da sua sensibilidade, do seu talento, da sua entrega e da sua inteligência. não permita que te desrespeitem, que te machuquem... olhe sempre pra você primeiro; os outros vêm depois. isso não é ser egoísta; às vezes, isso só quer dizer que você não é otária. vai dar tudo certo, mesmo que de vez em quando dê errado. a vida é safada mesmo e tá sempre brincando com a gente, do jeitinho estúpido e prosaico que só ela tem. com o tempo, você vai se familiarizando.

no mais e pra sempre, te amo.





2 comentários:

  1. Dizer adeus a ela(s) é saber que elas precisam nos dizer adeus. Um tapa que me foi dado na cara, durante a última sessão de análise

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