quarta-feira, 13 de maio de 2020

desculpe pelos transtornos

não gosto de saber que a praia vai voltar a ser só a praia de sempre, aquela em que todos vão. eu gostava de lá porque a praia era nossa. não gosto de saber que vou precisar ressignificar todas as músicas que ouvimos juntos e terei que fazer de conta que as músicas que você me apresentou não têm nada de especial. não gosto de saber que o caminho que eu fazia até aí precisa ser de novo um caminho qualquer, e que a rede em que deitamos e na qual conversamos tantas vezes, a partir de agora, só terá a mim pra embalar. odeio, odeio, com raiva e com força o fato de que, bem, eu fui embora e nem ao menos nos despedimos. e se eu engasgar? e se eu morrer nesses dias de clausura, e se for você a morrer, de doença ou atropelado? e, se, por sorte ou azar, não nos vermos nunca mais?

não tenho mais quem me estale os dedos ou as costas, mas você tem, porque isso é o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa, eu não tenho; você me estalava. a singularidade está no que o outro nos oferece de diferente, naquilo que não vai haver igual pra quem recebe. eu não gostei do texto, mas agora você não tem mais a mim pra dizer isso. ele não é bem traduzido, é estranho e você titubeou várias vezes, alguém deveria ter dito.

eu preciso dissociar o cheiro de óleo de gerânio, das conversas que tínhamos na entrada da sua casa no inverno. o cheiro me leva pra lá todas as vezes. preciso esquecer todas as conversas nas calçadas, nas escadas, nos postos de gasolina... preciso criar novos sentidos pras coisas mais simples e mais significativas que fazíamos porque era nesses lugares, à noite... eu nem consigo mais olhar pra lua sem parecer que meu coração vai sair pela boca, então não olho. ninguém mais vai colocar flores no meu cabelo, porque isso é o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa, e já está fazendo.

eu pensava que era especial pelas suas ações, mas isso é só o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa. achava que eu era especial, mas você só estava sendo o que é, e pode ser com qualquer pessoa. eu só vi o que quis ver, mas não consegui enxergar, ou não quis? costumo achar que o que é óbvio pra mim também o é para os outros, mas geralmente estou errada. você viu que eu me enganava e não disse nada, talvez porque pra você fosse evidente que era só como você é; toda a imagem que eu tinha criado de você me incluía nela como alguém especial, porque era como eu queria me sentir.

"me desculpe pelos transtornos" é a frase mais seca e desprovida de afeto que alguém poderia me dizer. mas isso é quem você é, é o que você faz, e pode fazer com qualquer pessoa.

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