terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

sobre a vizinhança à noite

eu estava escrevendo, então só quando parei foi que notei o bebê, do prédio em frente ao meu, berrando. o choro é desesperado e imagino qual a sua demanda. sono, fome, dor, fralda suja, birra... enquanto não desenvolvemos a linguagem de maneira articulada, a atenção sempre vem por intermédio de altos decibéis, pela potência da garganta. será que gritamos e urramos em algumas situações pela falta de melhor forma de nos expressarmos? será que regredimos? ou será que só somos?

vejo a silhueta de um vizinho no mesmo prédio, emoldurada pela porta da varanda, à meia luz. as luzes do meu quarto, de onde escrevo, também estão acesas e penso se ele também me vê e elocubra qualquer coisa a meu respeito. agora ele está sentado, não sei o que faz, mas a minha curiosidade não vai além do que posso ver.

o bebê que tinha parado de chorar, voltou. ele grita como uma gata no cio; é potente. sua dor reverbera, mas tento abstrair; não há nada que eu possa fazer para apaziguá-lo. será que um colo diferente ajudaria? será que um colo diferente pioraria? não sei.

olhar pela janela me lembra de todas as vezes em que transei de luz acesa e janela aberta durante a noite, na madrugada. não foram muitas, mas não sei enumerar quantas. na ocasião mais divertida em que isso aconteceu, minha cama ficava sob a janela, como o é hoje em dia também, mas em outra morada. depois da foda, meu namorado e eu começamos a ouvir algo como aplausos e um pequeno coro que gritava do alto do prédio no outro lado da rua: mais um, mais um! sentimos algum embaraço, mas era tardio porque já havia acabado, não havia o que esconder, nem onde se esconder porque já estávamos em um lugar seguro - em casa. rimos, fechamos as cortinas e dormimos. fosse hoje, estaríamos na rede e eu teria virado uma estrela de filmes amadores contra a minha vontade. bons tempos em que a lembrança ficava emoldurada apenas por uma janela e não em uma tela sob o comando de um botão que pode recriar a ação à exaustão.

o bebê ainda chora, mas vou dormir.

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