Tinha médico às 10 da manhã; a casa estava uma zona há mais de uma semana, mas ela não percebia que isso era uma das poucas coisas que estava sob o seu controle, a organização e a manutenção da sua casa. Preferiu a internet, como muitos.
Tomou banho correndo, vestiu-se correndo, passou protetor solar correndo e correndo também, falou consigo mesma. Andava tendo conversas muito claras, em voz alta e não só dentro da cabeça, chamava sua própria atenção, se exigia, esperava ainda colocar em ação todas as coisas que se dizia. Continuou correndo quando foi abastecer o carro; não sabia mais se ele tinha gasolina ou não, porque a boia da bomba de combustível só funcionava quando queria, e nos últimos dias, ela não andava muito a fim de trabalhar.
Quando abasteceu o carro, já se avisou que o atraso era de sua única e exclusiva responsabilidade, então que deixasse de ser uma Zé-pressa e fizesse as coisas no tempo em que era capaz de fazê-las.
Foi pela Beira-mar, ouvia Statler Brothers, e como a vida é cheia de ironia, foi num muro, em que mais tarde as pessoas colocariam flores, que ela se espatifou. Apressada como o coelho de Alice, ela fez uma curva, pensou em fazê-la; não reduziu a marcha e foi direto em direção ao muro. Muito rápido. Instantâneo. Irreconhecível. Perda total para o carro, perda total para ela.
Agora é que o peito aperta. Enquanto via o muro se aproximar, enquanto não havia mais nada a se fazer, pensou em tudo. Viu 27 anos passarem diante de si. Percebeu finalmente o significado da palavra efêmero. Viu que não era nada. Viu o que era impermanência e entendeu de uma vez por todas que tudo pode mudar a qualquer momento. Uma corda bamba eterna. Roda gigante safada, que não só sobe e desce, mas que por vezes é equipada com um banco ejetor, e mesmo que você ache que está lá em cima, é lá de cima que você vai ser lançado. Dói mais.
Agora é que o peito aperta. Enquanto via o muro se aproximar, enquanto não havia mais nada a se fazer, pensou em tudo. Viu 27 anos passarem diante de si. Percebeu finalmente o significado da palavra efêmero. Viu que não era nada. Viu o que era impermanência e entendeu de uma vez por todas que tudo pode mudar a qualquer momento. Uma corda bamba eterna. Roda gigante safada, que não só sobe e desce, mas que por vezes é equipada com um banco ejetor, e mesmo que você ache que está lá em cima, é lá de cima que você vai ser lançado. Dói mais.
De viva, indo para um compromisso, à morta, esfacelada, com cacos de vidro no rosto, cabeça quebrada, sangue escorrendo por todos os buracos, ossos trincados, pele pendurada. Nunca mais um abraço, um beijo, um carinho. Era só a casca.
Tudo isso numa manhã de sol primaveril. Não é um paradoxo? O sol nunca para de brilhar, não importa o que aconteça em terra firme.
Carro no muro, game over pra ela. Os carros que vinham atrás, primeiro frearam bruscamente para que não batessem também, depois, descendo com pressa e temor pela gravidade do acidente, os motoristas vinham ver a morta. O tesão gerado por acidentes traz muitas reflexões para quem os assistem. Muitas perguntas, muita consternação. O que houve? Como aconteceu? Ela estava bêbada? Dirigia em alta velocidade? Perdeu o controle? Ela está morta? É, acho que está morta... Coitada, pobre da família...
Vinte minutos depois, chegam a ambulância, a polícia, os bombeiros e mais curiosos. Com alguma dificuldade, conseguem abrir a porta do carro. Ela, de cabeça caída pro lado, olha pro nada com as pupilas dilatadas de defunto. Morta? Sim, nem poderia ser diferente. Mais uma ironia para quem sempre achou que morreria em um acidente automobilístico. Assim foi.
Removeram-na. Saco preto, carro da polícia técnica. Ela já era estatística. Pegaram a bolsa, olharam o nome na identidade. Pegaram o telefone celular e começaram a olhar os números para que pudessem avisar alguém sobre a mais nova perda da família. Estava escrito na agenda “Casa” e ligaram. Lá, o telefone tocou à exaustão, e os gatos miaram sem saber da notícia. Ninguém. Tentaram o último número discado e ele atendeu. Acidente? Ele ainda estava dormindo... É que a morte é assim mesmo, chega sem avisar. Se você está vivo, pode empacotar a qualquer momento; para ela não tem tempo ruim ou bom, é tudo igual.
Sim, acidente. Você é da família? Precisamos falar com alguém da família. Sou namorado. Namorado não é família e ele sabia que nem namorado era, e se arrependeu, todo mundo se arrepende. Ah, burrice! A gente acha que a morte vem sempre amanhã, como a felicidade, como o fim de semana, mas ela sempre chega! E quando chega, pluft! Arrependimentos não resolvem nada. Nada.
Ele pensou imediatamente na menina, eram onze e meia, ela estava na escola, e naquele dia sua mãe não iria pegá-la, e nem em nenhum outro dia. Como dizer? Cadê minha mãe? Sozinha ela, sozinha com a menina. Todo mundo tem família e coisa e tal, mas era ela e a menina, sempre a menina e ela. Família de duas, como faz agora? Família de uma? Isso é família?
Tudo perdido, muito louco. Numa noite, mercado, carnes para o natal, planos indefinidos de natal aqui e ali, panetones que ela tanto gostava, chocolates envenenados pra ele, chinelo novo pra menina. Dorme, acorda e come coxinha. Lanche gorduroso do Beps na véspera da batida. Mas morreu em jejum, deixando o que mais estimava na vida, que era um pedaço seu de legado pra terra.
A menina deixada ao léu, cheia de comida em casa, mas sem a mãe preguiçosa pra cozinhar, pra brigar, pra deixar usar o computador. Ao menos ela já estava matriculada na escola para o ano que vem, mas a mãe não a veria mais. Oh vida que passa. O amanhã que nunca chega ou que chega rápido e sem aviso prévio. Leva, bagunça, empilha e deixa de lado.
Desestabilizadora a grande ceifadora.
P.S.: Não, eu não morri, nem estou pensando em morrer. Eu sempre reduzo nas curvas, mas gosto tanto de falar sobre ela, que me deu vontade de escrever. Você já se imaginou morrendo de repente e deixando tudo pra trás? Hoje, eu imaginei, mas é tão complicado pensar em quem fica... pensei na minha Ana, mas eu morta de repente, nada poderia fazer por ela, mas sei quem poderia cuidar dela. Se eu morrer de repente, cuidem dela!
P.S.²: Não, eu definitivamente não estou pensando em morrer, fiquem tranquilos, é só que a vida tem dessas coisas. Se alguém por aí também quiser que eu ajude em caso de falta por morte, estamos aí, é só deixar avisado. =)
P.S.³: Na verdade, estou bem feliz, porque o natal é uma época de luzes coloridas e comidas gostosas!
Em primeiro lugar, você morreu?
ResponderExcluirCaso esteja viva, fique feliz por muito tenho andando vendo gente escrevendo, e existe graça no que você escreve.
Não que minha opinião seja importante, mas é a única que tenho.
pois então, acho que não morri, Thiago, a menos que no além tenha internet... hehehe e obrigada por gostar do que escrevo! =]
ExcluirQ texto triste!! :(
ResponderExcluirMuito reflexivo...
Renata
www.descobrindoamaternagem.blogspot.com
Sensacional.
ResponderExcluirParabénS!
achei minha alma literária gêmea!
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