sábado, 31 de outubro de 2020

sobre o dia das bruxas

Eu sempre gostei de filmes de terror, muito influenciada pelo meu irmão, Felipe, e fui iniciada nesse meio muito cedo. A primeira lembrança de um filme de terror, que hoje soa ridícula, era do bebê monstro. Eu não me lembro do enredo da história, mas o protagonista dela era um bebê - monstro. A criança não só era um monstrinho, como matava pessoas, e o Felipe, quando queria me assustar dizia: o bebê monstro vai te pegar!. Com seis anos já tinha assistido Chucky - O brinquedo assassino, A Hora do pesadelo - meu irmão tinha os quadrinhos com a história do Freddy Krueger -, alguns filmes da série Sexta-Feira 13 (do famigerado Jason Vorhees) e de Halloween (do psicopata Michael Myers), e Hellraiser, um clássico do gênero - sem entender nada obviamente, mas o sangue, a dor, a morte e a representação do inferno estavam ali e eu sabia o que aquilo queria dizer. Depois, vieram A hora do espanto, Poltergeist, Cemitério Maldito, Evil Dead... mais uma galera de filmes.

Então, com oito anos eu já era bem traumatizada - e fascinada - por toda a coisa macabra. Acho que foi com essa idade que assisti O Exorcista pela primeira vez, e esse se tornou meu filme favorito e o que mais me dá medo até hoje, e olha que eu já o assisti umas dez vezes. Entre os traumas proporcionados pelas películas, eu morria de medo que algo me puxasse para debaixo da cama, e quando ia me levantar, dava um pulo a uma distância segura, que garantisse que um braço não conseguiria me puxar. E também não dormia de frente pra parede, porque algo poderia vir por trás de mim durante a madrugada. Dormir só de costas pra parede, porque ela era uma proteção, além das cobertas. Fora as histórias da boneca da Xuxa e do Fofão e de ouvir os discos das Xuxa ao contrário. Ser criança nos anos oitenta era uma pira! 

Depois, vieram os filmes da Faces da Morte, que alugávamos na locadora. Assisti vários deles. Pra quem não sabe, eram "documentários" que mostravam cenas de mortes reais, de todas as formas. Havia cenas de necrópsias, acidentes, suicídios, assassinatos, atentados... tinha de tudo, e eu assistia a essas coisas com uns dez anos de idade! não sei como não virei uma freak, se bem que sou. Veja, eu era a menina que gostava de fazer a brincadeira do copo, do compasso. Eu era a menina que gostava de passear no cemitério - ainda gosto muito, na verdade. As pessoas têm medo da morte, e eu também tinha medo dos monstros, do diabo, dos fantasmas, só que esse medo também me excitava e me fascinava. Mas veja, medo de gente morta eu não tinha, ali no caixão, eu não tinha. Nunca tive.

Agora as bruxas, as mulheres, ah, esses seres misteriosos e diabólicos, não? O primeiro filme de bruxas a que assisti foi Convenção das bruxas, com a Anjelica Huston. Que filme! Ser uma bruxa era ser outra pessoa, má, não que eu fosse, mas ser uma bruxa era ser diferente e eu nunca quis ser ou fui igual aos outros. Não tinha a pretensão de me enquadrar, mas queria chamar atenção, chocar. O estereótipo da bruxa é o da mulher que não se encaixa, que é livre, destemida, que não obedece à norma em nenhum aspecto. Eu queria ser uma bruxa. 

Pouco antes de entrar na adolescência, assisti Abracadabra, um daqueles filmes fofos da Disney, mas lindamente marcante e fez com que eu gostasse ainda mais delas. Depois, com uns doze, acho, assisti Jovens Bruxas, outro filme inesquecível pra mim, mas o que acho que me fez querer ser outra pessoa mesmo foi A volta dos mortos-vivos III. Esse eu assisti, claro, depois de ver os dois primeiros da série, dos quais também gosto muito, mas a Julie, protagonista do filme era a personificação do que eu queria ser - uma morta-viva. Antes dos treze, eu já tinha pintado o cabelo de vermelho e usava piercings de pressão na boca e no nariz, como a personagem. Quando mudei de escola e cheguei lá assim, eu passava pelos corredores e as pessoas me chamavam de "defunta", de "esquisita" e eu adorava! Era isso que eu queria ser, a diferentona.

Ser como os outros, não era pra mim, porque os outros eram todos iguais. Com dez anos, eu participei de um concurso de fantasias, promovido por uma escola de inglês que celebrava o dia das bruxas com uma festa à fantasia, e que ficou muito famosa e virou tradição na cidade em que eu morava. Fui vestida de quê? De morta-viva. Ganhei? Não, mas ser um zumbi era fantástico! Eu ia a essa festa todos os anos, sempre com o mesmo mote de vestimenta, mas não necessariamente com a mesma roupa.

Pra mim, ser uma bruxa, uma morta-viva era a possibilidade de mostrar um lado meu que as pessoas não acham bonito. Eu gostava de deixar as pessoas desconfortáveis com as certezas delas e com os padrões do que era legal ou belo. Flertar com a morte, com o incerto, com o macabro, com o medo alheio era muito satisfatório pra mim. Eu era a "maluca", mas eu nunca quis ser normal, então tava tudo certo.

A minha excentricidade arrefeceu depois que eu cresci, porque a vida foi se mostrando pavorosa de verdade, muito mais do que qualquer filme, qualquer zumbi, qualquer fantasia. Continuo aqui, me sentindo diferente dos outros, já que sou de fato. Continuo fazendo passeios pelos cemitérios - inclusive gosto muito de saber que sou vizinha de um, mesmo sabendo que esse não será o meu fim. Sim, vou morrer, como todo mundo, mas espero ser cremada e ter minhas cinzas jogadas em algum lugar ainda não definido. Sim, continuo gostando da ideia de me fantasiar de morta-viva, porque é uma excelente alegoria da nossa realidade. Não estamos todos meio mortos?

Afogados nas nossas vidas maçantes, temendo o futuro vivo que é incerto, e fazendo de conta que não existe o futuro da morte, pra onde todos caminhamos. Viver é caminhar pra morte todos os dias, mas não pensamos nisso. O dia das bruxas é a véspera do dia de todos os santos, que é um dia de homenagem a todos os santos e mártires mortos que, por sua vez, é véspera do dia dos mortos. Vejam que felicidade, temos dois dias que nos celebram: o dia em que nascemos e o dia dos mortos. Um, quando chegamos a esse mundo, e outro que celebra todos os que já partiram - e que nos celebrará eventualmente. Assim é que a vida se mantém pra sempre eterna. Enquanto formos lembrados, nos manteremos vivos.

Os filmes de terror nos colocam de frente com a morte, que é representada sempre como o mal, como um monstro, um demônio, um fantasma, e talvez por isso, muitos não gostem desse gênero. As pessoas não querem sentir medo, mas na verdade o que acho que elas não querem é encarar que a vida termina, então, a morte é sempre vista como algo terrível, daí não pensamos nela, falamos de flores... fingimos que somos eternos e quando ela chega perto da gente tem esse impacto tão devastador. A morte é o outro lado ao qual não temos acesso, é o lado que não conhecemos porque só sabemos o que é viver. Talvez por isso a demonizemos dessa maneira, criando mitos e horrores simplesmente porque não conseguimos explicá-la.

Enfim, eu não sei como serei lembrada, só espero que não seja como uma pessoa "normal". Ser a bruxa, a esquisita, a maluca me soa muito melhor. =)



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