quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

sobre estar aberta a ser fodida pela vida - mas com amor

não tem muito sentido, nada tem sentido, a menos que coloquemos sobre qualquer coisa a intenção do sentir. não é nada muito lírico, nem bonito e nem poético. passaram os dias com a noite especial abarrotada de comida boa e os farofeiros tiveram três (!) variedades de farofa para se empapuçarem. a gente come, se embriaga, ri e ouve músicas ruins com um sentimento de nostalgia sem igual. nos embalamos e nos nauseamos; dormimos e comemos sobras, muitas delas. nos frustramos com a sobremesa que não era doce o bastante, não era saborosa o bastante, não tinha gosto de nada. o nada sempre nos desaponta. queremos sentir a doçura; melhor é o açúcar queimando a garganta do que a apatia do bege sem sabor. melhor se foder com gosto do que estar afundada na cama.

depois da interação com um número maior de pessoas do que de hábito, me sinto letárgica, cansada. gosto mesmo é de ficar afundada na cama. mesmo que o dia esteja azul, mesmo que a rua chame... me olho no espelho e fico assustada com minhas olheiras, parecem cada dia maiores, não importa quantas horas eu durma. concluo, então, que melhor mesmo é se foder com gosto.

quero que a vida me foda assim, como quem não quer nada, como foi da última vez. andando pela calçada, no frio, depois da meia-noite; mas desta vez, por favor, que além de me foder, me ame.

para ler ouvindo: gente aberta - Erasmo Carlos

domingo, 20 de dezembro de 2020

time moves slow - badbadnotgood




I found you at the window again

Looking out, watching the leaves falling in

And it was something like a dream

Wow so perfect, couldn't talk to me


Time moves slow

When you're all alone

And the time moves slow

When you're out on your own

And the time moves slow

When you're missing a friend

And the time moves slow

When you came to the end


Running away is easy

It's the leaving that's hard

Running away is easy

Running away is easy

It's the living that's hard

And loving you was easy

It was you leaving that scarred


But what was I to do?

Just couldn't help myself falling in love with you

And what could I say?

Oh, if I had another chance

To make you stay

Cause when you ran away

I knew just what you were thinking that day

You just didn't love me like I do

Like I love you

The sad thing is we're better off this way


Time moves slow

When you can't have a thing

Time moves slow

When you're lost in the dream

Time moves slow

When you wait by the phone

And the time moves slow

When you're all alone


To run away is easy

It's the leaving that's hard

Running away is easy

Running away is easy

It's the living that's hard

And loving you was easy

It was you leaving that scarred


Cause when you're so alone

Time moves slow

When you're so alone

Time moves slow

When you're so alone

Time moves slow

Time moves slow


https://www.youtube.com/watch?v=UWIIPX_5rbM
 

domingo, 13 de dezembro de 2020

sobre o que passou


para mim, este ano começou comigo acordando num sofá, cheia de areia. passara o dia anterior bebendo, fumando maconha e transando com alguns intervalos de tempo ao longo daquele dia. estava quente como hoje. eu estava feliz. fomos à praia para ver os fogos, já cambaleantes. antes de chegar lá, já era meia-noite. ouvíamos os estampidos de comemoração. tiramos a espumante da minha mochila e voltamos a beber despejando-a em uma caneca de acrílico. em frente a um canteiro de lavandas, coloquei algumas no decote do meu vestido. tinha uma flor amarela no cabelo. seguimos. passando pela pequena trilha, vi no breu as dunas. cruzamos com outras pessoas. ali fiquei. deitei sobre a areia e não consegui me mover pelos próximos quarenta minutos (?). - Babe, vamos - ele dizia. minha cabeça só girava e eu me sentia confortável sobre a areia fria.

quando, finalmente, consegui me levantar, fizemos o caminho de volta. eu estava feliz. na descida da rua, resolvi tirar meu vestido e fazer parte do percurso pelada, só porque me deu vontade. ele teve medo de que passasse alguém e me visse. coloquei o vestido de volta. depois disso, só me lembro de acordar com ele no sofá. não sei como chegamos em casa. não sei. mas eu estava feliz, antes de dormir e depois que acordei.

daquele dia tão distante para cá, a vida correu impassível, como sempre. os acontecimentos foram se dando diariamente, de toda a sorte. a vida veio em forma de morte, de espera, de dor. veio também como expectativa, como ansiedade, como frustração. a vida veio me empurrando até este momento, aqui e agora, em que suo no terceiro andar escrevendo. a vida veio se reverberando em separações, em novas vidas (serei tia de gêmeos!). a vida veio se adaptando por detrás de máscaras em público. só podemos nos ver no privado. no privado, em frente ao espelho, refletindo todo o peso de chegar até aqui.

conquistei e me exauri. fechei ciclos com muita dor, porque ainda queria estar no dia 31 de dezembro do ano passado. porque ainda carrego a nostalgia e a saudade do que foi idealizado. tantos véus me coloquei sobre a cabeça... todos eles tive que tirar para poder ver. enxergar que a vida acontece sem controle, enquanto o cigarro queima entre os meus dedos, enquanto durmo afogada nos meus sonhos. a brisa agradável da noite volta a me dar calafrios. os dias azuis e quentes me levam à praia, àquela, que era minha, mas é de todos e também de ninguém.

vê a vida, então, como um truque massivo que não nos deixa perceber que entre um grande acontecimento e outro, tudo parece irritantemente igual, ao passo que na verdade, o tempo nos consome a vida e é tudo diferente. somos constantemente atropelados pelos seus fatos. mesmo que ainda estejamos atrelados a um deles, logo vem outro e outro e outro. como ondas, os segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos vão passando por cima de nós, levando-nos para as profundezas, mesmo quando o mar parece de calmaria. isso não existe. calmaria não existe. a vida está no caos, do qual eu tento escapar mesmo quando sou criadora do meu próprio.

quando a gente já perdeu demais, gosta de se agarrar às coisas, às pessoas ou, ao contrário, solta de vez pra não sentir que perdeu. quando a gente muda demais, gosta de se estabelecer ou, ao contrário, não para de mudar pra não se sentir estagnado. quando a gente ama demais, ama até se consumir no sentimento. a gente, no caso, sou eu. não é porque sou a apaixonada intensa - o que sou -, mas é porque sentir é o que move a gente. a gente sente tudo. eu sinto demais por vezes, e por vezes nada. sentir é melhor e dentre todos os sentimentos, amar é melhor, é sempre melhor.

mas é melhor quando o outro sente também. amar sozinho é um peso sem fim. é um inferno, que diante de todo o tempo de uma vida é pouco, mas enquanto se sente é sofrimento embaixo d'água. das piores coisas que há está a imersão na dor, mas ela serve pra alguma coisa, não serve? diga pra mim que sim, que logo consigo emergir da minha lama cheia de ar nos pulmões, na pulsão de vida de respirar, de continuar. 

então continuo, amparada pelos outros tantos amores que uma pessoa pode ter. enquanto alguns laços se desfazem, outros se apertam cada vez mais. um amor que se torna o melhor amigo, uma amiga que transcende a amizade, e o que é a amizade senão o tipo de amor mais genuíno que pode existir? ah, que secamos tanto as lágrimas uma da outra. que atendemos ao primeiro pedido de socorro. que refletimos juntas pensando em todas as possibilidades e impossibilidades da vida. amores assim sempre vale a pena serem vividos e eu os vivo. sigo sendo amada como posso, aberta sempre, mesmo que seja para o arrependimento porque a vida é campo de aprendizado. 

escorro como a chuva que bate na janela, me desfaço e me refaço. o que passou vira saudade do que foi e nostalgia do que poderia ter sido. corre o tempo demasiadamente rápido neste ano tão comprido e confuso. parece que faz anos, parece que foi ontem. pelo menos, não choro mais.


para ler ouvindo:

jewel box - Jeff Buckley





domingo, 6 de dezembro de 2020

sobre o que vem depois

é depois de amanhã. levei três anos pra dizer que é depois de amanhã, e agora que o dia chega não sinto nada além de esgotamento. meus braços já não têm mais veias pros anestésicos que me injeto todos os dias. o sono, a fome, as redes sociais que me sugam para dentro do telefone. a paranoia, os pensamentos acelerados, são o que têm me aplacado e me estancado. gosto muito das singelezas, elas me afetam, mas o espírito de felicidade desmedida e "good vibes only" ainda me dão engulhos.

sinto inveja do que está limpo e fácil porque a sujeira e o acúmulo me tomam. os pimentões abertos na fruteira lá ficaram por muitos dias. murcharam, sua água começou a pingar preta pelo chão, enquanto eles iam se desfazendo com o passar das horas, apodrecendo sob as minhas vistas. por que eu deixo? por que permito que as coisas se consumam, enquanto eu, na minha inércia, apenas permito e vejo a imundície se espalhar? me sinto presa, estática, empedrada e incapaz.

enraizei-me no chão mesmo me movendo, porque a mente diz que não consigo agir. ela me tolhe e fico em estupor. escondo-me sob as cobertas, mergulho nos sonhos que me aprazem; eles são sempre melhores do que estar acordada. os pedidos que fiz ao fogo se dissiparam nas cinzas do papel e volto pro lugar onde já estive tantas vezes, andando em círculos que desgastam meus pés, meus sapatos, o próprio terreno onde piso de novo e de novo e de novo.

eu deveria estar feliz, cheguei ao dia que pensei estar distante demais da minha capacidade, muito além do que imaginei poder e, prestes a vivê-lo, não sei de mais nada. segue a estrada, ela continua, mas não sei como caminhar por ela.

sábado, 14 de novembro de 2020

sobre o corpo


GROTESCO: diz-se de ou categoria estética cuja temática ou cujas imagens privilegiam o disforme, o ridículo, o extravagante etc.
que ou o que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil, bizarro, estapafúrdio ou caricato.

é curioso como um corpo pode causar tantas reações. no meu caso, vejam, o peito cai sobre a barriga, a barriga cai sobre o púbis, o umbigo é "triste", há estrias, muitas. excesso de gordura, celulite, flacidez, varizes, manchas e cicatrizes. é um corpo, é meu corpo, com o qual já briguei por muito tempo, do qual já tive raiva. eu tinha raiva de mim mesma por me olhar no espelho e não reconhecer em mim um padrão que eu via por toda a parte, mas que não era eu. no fim das contas, percebi que eu não sou o meu corpo, sou TAMBÉM o meu corpo, mas não só ele.

"meu" corpo, parece que a gente fala de um objeto, né? "o corpo dela". não parece que falamos de uma pessoa, parece que nos referimos a uma coisa, mas é bom lembrar que esse corpo só tem valor quando está vivo, quando tem uma energia vital que o faz funcionar e é, então, que podemos nos ver para além de um corpo. somos todos corpinhos no mundo, andando por aí; o corpo nos leva a passear, mas ele só faz isso porque estamos vivos, então, somos mais do que o corpo. tanto é, que é só morrermos para quererem se livrar do "corpo" que, por si só, não quer dizer muita coisa. quando alguém morre, a gente se lembra de como a pessoa "era", cabendo nesse "ser" um corpo e tudo o mais que a gente não consegue enxergar nele.

o corpo personifica a gente, junta tudo o que somos dentro de um amontoado de carne. ninguém pode ver você por dentro, mas podem ver o nosso corpo e daí há pessoas que confundem tudo; acham que ver o corpo é saber quem somos, e não é. claro, o corpo dá pistas da gente, assim como as nossas roupas falam um pouco do nosso "estilo", mas olha, o estilo se refletir na roupa é só uma das suas nuances, como o corpo é só um pouco do que a gente é por dentro. os ditados mais clichês são os mais verdadeiros: "a verdadeira beleza vem de dentro" é real porque a beleza física é só um ponto e tudo o que é material tende a definhar com o tempo. quando a gente permite que o corpo nos defina e não somos capazes de enxergar a nossa subjetividade, a tendência é que nos odiemos e definhemos por dentro também, mas por dentro a gente não engorda, nem emagrece. por dentro, a forma não importa coisa nenhuma.

vou simplificar: pensa num fusquinha e numa ferrari. por fora eles são bem diferentes, é verdade, mas se não tiver ninguém que os dirija, eles vão ficar parados pra sempre, não servem pra nada. sendo bonitos ou feios, sendo um super carro ou um carrinho popular. o que importa é quem conduz o carro, quem vai dentro dele, sabe? 

queria publicar essa foto há algum tempo, mas queria elaborar o porquê de estar fazendo isso. primeiro e determinado pela forma e pelo MEU conceito de beleza, acho que estou espetacular nela. linda, maravilhosa, fantástica e, de verdade. podem pensar: "ah, mas ela está se expondo". sim e não. estou expondo o meu corpo, não quem eu sou. "ah, ela quer chamar atenção!". sim, eu quero. quero mostrar que um corpo é só um corpo e eu não tenho nenhuma vergonha do meu, mesmo que ele esteja longe de um padrão estético, é assim que ele é, ué... poderia ser mais "bonito"? poderia, mas está desse jeito no momento. "nossa, mas é ridícula, gorda, feia, boba e cabeça-de-melão", o que você pensa a meu respeito é um problema só seu e você vai continuar pensando, eu estando pelada ou vestida. "caramba, que corajosa!", corajosa por quê? me exponho muito mais nas palavras que posto aqui de vez em quando do que nua, então... minhas palavras mostram muito mais quem sou eu do que a minha forma física. 

a gente se expõe todos os dias, quando fala, quando se manifesta e quando cala também. às vezes, as grandes exposições vêm no silêncio, quando a gente deveria de fato dizer alguma coisa. tô aqui usando meu corpo e minha escrita pra dizer que meu corpo não sou eu, que você não faz ideia de quem eu sou só porque me viu pelada. e não me sinto vulnerável por estar sem roupa, por mostrar meus "defeitos", primeiro porque eu me vejo perfeita; segundo porque quem quer julgar vai fazer isso não importa como você esteja. se você se sente plena e maravilhosa ou "o cocô do cavalo do bandido", não faz diferença; quem quiser dar palpite na sua vida, no seu corpo, vai vir com seu caminhãozinho de merda e vai estacionar na sua frente e começar a descarregar toda a frustração dela em cima de você, do seu corpinho feliz e satisfeito. eu, hein!

eu postei essa foto porque queria compartilhar com quem quiser ver que essa sou eu, fisicamente apenas, e eu não tenho qualquer razão para me sentir embaraçada de me mostrar porque eu me curto. eu me gosto. todos os dias? obviamente que não. há dias e dias e tá tudo certo! a única regra da vida é a instabilidade/ a impermanência, então eu não teria como me amar o tempo todo, mas no geral, oh, eu me amo! eu não publiquei essa foto buscando validação, porque como vocês podem ver, eu faço isso por mim mesma e é só a minha aprovação que importa pra mim. 

estou preparadíssima para ser julgada, achincalhada - porque parece que as pessoas se ofendem com o que não acham "bonito", mas é aquele ditado milenar: "ema, ema, ema, cada um com seus problemas". eu não tenho um problema com o MEU corpo, então, se você, que não sou eu, tem um problema com o meu corpo, você realmente tem problemas; busque ajuda. eu não quero "biscoito" e acho essa expressão horrível, porque não sou um cachorro treinado que ganha biscoitos quando faz um truque legal pro seu dono. 

essa foto não tem nenhum intuito sexual, mas se você é o tipo de homem asqueroso que acha que se uma mulher posta uma foto é pra VOCÊ, vá tomar diretamente no olho do seu cu. se eu receber algum tipo de comentário nojento ou desrespeitoso, você será exposto. se você, que é homem, leu tudo o que escrevi e ainda assim insistir em se comportar como um neandertal, saiba que você tem sérios problemas cognitivos; busque ajuda.

no geral, temos muito mais empatia pelos outros do que por nós mesmos. a gente se maltrata, se maldiz, mas consegue olhar pro outro com compaixão - isso quando conhecemos e gostamos da pessoa; quando não conhecemos ou não gostamos da pessoa, a gente acha que tem o direito e a propriedade pra falar dela. é importante que tenhamos uma atitude mais amorosa diante de nós mesmos. nosso corpo não é imperfeito ou defeituoso porque a gente não se parece com alguém que faz parte do padrão estabelecido, mas de mentira. a gente é como é, e é passível de mudar sempre que quiser, se quiser, quando quiser. 

considerando que somos todos singulares por dentro - com todas as nossas vivências, modos, costumes, maneiras de pensar e de agir -, se a nossa subjetividade é única, por que é que deveríamos nos parecer com alguém que não é a gente? por que é que não podemos parecer com nós mesmos sem nos sentirmos errados/feios? por que é que nos importamos tanto com o que pensam/acham/dizem de nós? por que é que nos maltratamos para caber, sendo que já estamos dentro do nosso corpo e cabemos nele perfeitamente? bom, tenho certeza de que não há uma resposta só pra isso, nem que haja uma resposta certa.

as respostas são muitas e estão por toda a parte, em todos os lados para os quais olhamos, porque a resposta está no culto às coisas, à aparência; na insistência do sistema em nos reificar e nos tornar insatisfeitos, infelizes e bons consumidores... dá canseira só de começar a falar, mas o caminho é provocar pra refletir. e é isso aí. a gente pode pensar a respeito. a gente pode olhar pra um corpo e fazer o exercício consciente de pensar que é só um corpo, que todos temos uma forma - fisicamente falando - de estar no mundo e, se uma pessoa escolhe ser ou é de determinado jeito, isso não tem nada a ver com você. não é pra você, não é sobre você. 

no caso, aqui, é sobre como eu aprendi a me amar - e isso não quer dizer que vou gostar do meu corpo todas as vezes em que o vejo refletido no espelho, a coisa não funciona de maneira permanente, NADA funciona de maneira estanque e definitiva -, é sobre colocar as coisas em perspectiva, não ter vergonha de ser/estar como se é/está, mas também não é sobre ter coragem. é sobre ser ridículo, sabe? anormal, grotesco... é sobre estar aqui agora, neste exato momento, e me achar uma pessoa incrível, por dentro, por fora, virada do avesso e é muito bom se sentir assim, liberta do crivo alheio... não pra sempre, mas hoje estou livre.

P.s.: sim, eu tenho pelos, como todas as pessoas adultas têm. caso você não goste dos seus, você pode dar a eles o fim que quiser. Eu gosto dos meus pelos. Acho que eles me deixam bonita e ponto. 


sábado, 31 de outubro de 2020

sobre o dia das bruxas

Eu sempre gostei de filmes de terror, muito influenciada pelo meu irmão, Felipe, e fui iniciada nesse meio muito cedo. A primeira lembrança de um filme de terror, que hoje soa ridícula, era do bebê monstro. Eu não me lembro do enredo da história, mas o protagonista dela era um bebê - monstro. A criança não só era um monstrinho, como matava pessoas, e o Felipe, quando queria me assustar dizia: o bebê monstro vai te pegar!. Com seis anos já tinha assistido Chucky - O brinquedo assassino, A Hora do pesadelo - meu irmão tinha os quadrinhos com a história do Freddy Krueger -, alguns filmes da série Sexta-Feira 13 (do famigerado Jason Vorhees) e de Halloween (do psicopata Michael Myers), e Hellraiser, um clássico do gênero - sem entender nada obviamente, mas o sangue, a dor, a morte e a representação do inferno estavam ali e eu sabia o que aquilo queria dizer. Depois, vieram A hora do espanto, Poltergeist, Cemitério Maldito, Evil Dead... mais uma galera de filmes.

Então, com oito anos eu já era bem traumatizada - e fascinada - por toda a coisa macabra. Acho que foi com essa idade que assisti O Exorcista pela primeira vez, e esse se tornou meu filme favorito e o que mais me dá medo até hoje, e olha que eu já o assisti umas dez vezes. Entre os traumas proporcionados pelas películas, eu morria de medo que algo me puxasse para debaixo da cama, e quando ia me levantar, dava um pulo a uma distância segura, que garantisse que um braço não conseguiria me puxar. E também não dormia de frente pra parede, porque algo poderia vir por trás de mim durante a madrugada. Dormir só de costas pra parede, porque ela era uma proteção, além das cobertas. Fora as histórias da boneca da Xuxa e do Fofão e de ouvir os discos das Xuxa ao contrário. Ser criança nos anos oitenta era uma pira! 

Depois, vieram os filmes da Faces da Morte, que alugávamos na locadora. Assisti vários deles. Pra quem não sabe, eram "documentários" que mostravam cenas de mortes reais, de todas as formas. Havia cenas de necrópsias, acidentes, suicídios, assassinatos, atentados... tinha de tudo, e eu assistia a essas coisas com uns dez anos de idade! não sei como não virei uma freak, se bem que sou. Veja, eu era a menina que gostava de fazer a brincadeira do copo, do compasso. Eu era a menina que gostava de passear no cemitério - ainda gosto muito, na verdade. As pessoas têm medo da morte, e eu também tinha medo dos monstros, do diabo, dos fantasmas, só que esse medo também me excitava e me fascinava. Mas veja, medo de gente morta eu não tinha, ali no caixão, eu não tinha. Nunca tive.

Agora as bruxas, as mulheres, ah, esses seres misteriosos e diabólicos, não? O primeiro filme de bruxas a que assisti foi Convenção das bruxas, com a Anjelica Huston. Que filme! Ser uma bruxa era ser outra pessoa, má, não que eu fosse, mas ser uma bruxa era ser diferente e eu nunca quis ser ou fui igual aos outros. Não tinha a pretensão de me enquadrar, mas queria chamar atenção, chocar. O estereótipo da bruxa é o da mulher que não se encaixa, que é livre, destemida, que não obedece à norma em nenhum aspecto. Eu queria ser uma bruxa. 

Pouco antes de entrar na adolescência, assisti Abracadabra, um daqueles filmes fofos da Disney, mas lindamente marcante e fez com que eu gostasse ainda mais delas. Depois, com uns doze, acho, assisti Jovens Bruxas, outro filme inesquecível pra mim, mas o que acho que me fez querer ser outra pessoa mesmo foi A volta dos mortos-vivos III. Esse eu assisti, claro, depois de ver os dois primeiros da série, dos quais também gosto muito, mas a Julie, protagonista do filme era a personificação do que eu queria ser - uma morta-viva. Antes dos treze, eu já tinha pintado o cabelo de vermelho e usava piercings de pressão na boca e no nariz, como a personagem. Quando mudei de escola e cheguei lá assim, eu passava pelos corredores e as pessoas me chamavam de "defunta", de "esquisita" e eu adorava! Era isso que eu queria ser, a diferentona.

Ser como os outros, não era pra mim, porque os outros eram todos iguais. Com dez anos, eu participei de um concurso de fantasias, promovido por uma escola de inglês que celebrava o dia das bruxas com uma festa à fantasia, e que ficou muito famosa e virou tradição na cidade em que eu morava. Fui vestida de quê? De morta-viva. Ganhei? Não, mas ser um zumbi era fantástico! Eu ia a essa festa todos os anos, sempre com o mesmo mote de vestimenta, mas não necessariamente com a mesma roupa.

Pra mim, ser uma bruxa, uma morta-viva era a possibilidade de mostrar um lado meu que as pessoas não acham bonito. Eu gostava de deixar as pessoas desconfortáveis com as certezas delas e com os padrões do que era legal ou belo. Flertar com a morte, com o incerto, com o macabro, com o medo alheio era muito satisfatório pra mim. Eu era a "maluca", mas eu nunca quis ser normal, então tava tudo certo.

A minha excentricidade arrefeceu depois que eu cresci, porque a vida foi se mostrando pavorosa de verdade, muito mais do que qualquer filme, qualquer zumbi, qualquer fantasia. Continuo aqui, me sentindo diferente dos outros, já que sou de fato. Continuo fazendo passeios pelos cemitérios - inclusive gosto muito de saber que sou vizinha de um, mesmo sabendo que esse não será o meu fim. Sim, vou morrer, como todo mundo, mas espero ser cremada e ter minhas cinzas jogadas em algum lugar ainda não definido. Sim, continuo gostando da ideia de me fantasiar de morta-viva, porque é uma excelente alegoria da nossa realidade. Não estamos todos meio mortos?

Afogados nas nossas vidas maçantes, temendo o futuro vivo que é incerto, e fazendo de conta que não existe o futuro da morte, pra onde todos caminhamos. Viver é caminhar pra morte todos os dias, mas não pensamos nisso. O dia das bruxas é a véspera do dia de todos os santos, que é um dia de homenagem a todos os santos e mártires mortos que, por sua vez, é véspera do dia dos mortos. Vejam que felicidade, temos dois dias que nos celebram: o dia em que nascemos e o dia dos mortos. Um, quando chegamos a esse mundo, e outro que celebra todos os que já partiram - e que nos celebrará eventualmente. Assim é que a vida se mantém pra sempre eterna. Enquanto formos lembrados, nos manteremos vivos.

Os filmes de terror nos colocam de frente com a morte, que é representada sempre como o mal, como um monstro, um demônio, um fantasma, e talvez por isso, muitos não gostem desse gênero. As pessoas não querem sentir medo, mas na verdade o que acho que elas não querem é encarar que a vida termina, então, a morte é sempre vista como algo terrível, daí não pensamos nela, falamos de flores... fingimos que somos eternos e quando ela chega perto da gente tem esse impacto tão devastador. A morte é o outro lado ao qual não temos acesso, é o lado que não conhecemos porque só sabemos o que é viver. Talvez por isso a demonizemos dessa maneira, criando mitos e horrores simplesmente porque não conseguimos explicá-la.

Enfim, eu não sei como serei lembrada, só espero que não seja como uma pessoa "normal". Ser a bruxa, a esquisita, a maluca me soa muito melhor. =)



quarta-feira, 28 de outubro de 2020

lover, you should've come over - Jeff Buckley


https://www.youtube.com/watch?v=vLHcHWDvgfQ 

Looking out the door
I see the rain fall upon the funeral mourners
Parading in a wake of sad relations
As their shoes fill up with water
Maybe I'm too young
To keep good love from going wrong
But tonight you're on my mind so
You'll never know
Broken down and hungry for your love
With no way to feed it
Where are you tonight?
Child, you know how much I need it.
Too young to hold on
And too old to just break free and run
Sometimes a man gets carried away,
When he feels like he should be having his fun
Much too blind to see the damage he's done
Sometimes a man must awake to find that, really,
He has no one
So I'll wait for you and I'll burn
Will I ever see your sweet return,
Or, will I ever learn?
Lover, you should've come over
'Cause it's not too late.
Lonely is the room the bed is made
The open window lets the rain in
Burning in the corner is the only one
Who dreams he had you with him
My body turns and yearns for a sleep
That won't ever come
It's never over,
My kingdom for a kiss upon her shoulder
It's never over, all my riches for her smiles
When I slept so soft against her
It's never over,
All my blood for the sweetness of her laughter
It's never over,
She is the tear that hangs inside my soul forever
But maybe I'm just too young,
To keep good love from going wrong
Oh lover, you should've come over, yeah yeah yes
I feel too young to hold on
I'm much too old to break free and run
Too deaf, dumb, and blind
To see the damage I've done
Sweet lover, you should've come over
Oh, love I've waited for you
Lover, you should've come over
'Cause it's not too late

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

morning theft - Jeff Buckley

 https://www.youtube.com/watch?v=V1ygFXUe6k4

Time takes care of the wound
So I can believe
You had so much to give
You thought I couldn't see

Gifts for boot heels to crush
Promises deceived
I had to send it away

To bring us back again
Your eyes and body brighten
Silent waters, deep
Your precious daughter in the
Other room, asleep

A kiss goodnight from every
Stranger that I meet
I had to send it away
To bring us back again

Morning theft
Unpretender left
Ungraceful

True self is what
Brought you here, to me
A place where we can
Accept this love

Friendship battered down by
Useless history
Unexamined failure

But what am I still to you
Some thief who stole from you?
Or, some fool drama queen
Whose chances were few?

That brings us to who we need
A place where we can save
A heart that beats as
Both siphon and reservoir

You're a woman, I'm a calf
You're a window, I'm a knife
We come together
Making chance in the starlight

Meet me tomorrow night
Or any day you want
I have no right to wonder
Just how, or when

You know the meaning fits
There's no relief in this
I miss my beautiful friend

I have to send it away
To bring her back again

domingo, 18 de outubro de 2020

Sobre as bocas femininas

Por dentro, todas as mulheres são cor-de-rosa, com lábios e boca salivantes e ácidas. A de cima recebe. A de baixo, dá, mas ambas comem o que nelas é colocado.

A de cima digere a comida, se nutre, e o resto transforma em merda; a de baixo, barbada, digere pulsante o que se transforma em vida.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

secret of life - James Taylor


https://www.youtube.com/watch?v=sW7Z1VttPKk

The secret of life
Is enjoying the passage of time.
Any fool can do it,
There ain't nothing to it.
Nobody knows how we got
To the top of the hill.
But since we're on our way down,
We might as well enjoy the ride.

The secret of love
Is in opening up your heart.
It's okay to feel afraid,
But don't let that stand in your way.
'Cause anyone knows
That love is the only road.
And since we're only here for a while,
Might as well show some style.
Give us a smile.

Isn't it a lovely ride?
Sliding down, gliding down,
Try not to try too hard,
It's just a lovely ride.

Now the thing about time
Is that time isn't really real.
It's just your point of view,
How does it feel for you?
Einstein said he
Could never understand it all.
Planets spinning through space
The smile upon your face,
Welcome to the human race.

Some kind of lovely ride.
I'll be sliding down,
I'll be gliding down.
Try not to try too hard,
It's just a lovely ride.

Isn't it a lovely ride?
Sliding down, gliding down,
Try not to try too hard,
It's just a lovely ride.

The secret of life
Is enjoying the passage of time.

sobre sonhos com camas e as camas sobre as quais sonhamos


Em um sonho da manhã, que já fora atropelado pelos despertadores barulhentos, estou eu em uma casa nova. era um palacete, um enorme palacete antigo. os corredores largos tinham um pé-direito altíssimo cujo teto era todo feito de vitrais ou pinturas muito coloridas, agora não sei dizer ao certo. era lindo; só olhar para o teto já era um gozo em si. o assoalho era todo de madeira, de tábuas muito compridas e já meio carcomidas pelo tempo. andava sobre ele e sentia o ranger da casa falando comigo. nos longos corredores havia portas igualmente grandes que davam para muitos quartos, mas também para a casa de outras pessoas, onde eu queria entrar para ver o quão diferentes suas casas eram da minha, sendo que tudo ocupava o mesmo palacete. nos quartos que me cabiam, eu entrava e a Ana já os havia arrumado; em todos eles havia muitas camas; duas camas de casal e mais uma de solteiro; três camas de solteiro, camas, camas, camas, eram camas demais! ocupavam o espaço de maneira desmedida; éramos só nós duas, não precisávamos de tantas camas, mas todas pareciam muito confortáveis. penso agora, egocentricamente, que a minha cama é a mais confortável em que já dormi; penso em todos os anos deitada sobre ela para que fosse devidamente amaciada; penso em todos que nela já se deitaram, nas marcas que deixaram sobre ela. penso, então, que uma cama é tão íntima quanto nossos relacionamentos. penso nas camas em que já me deitei, nas pessoas com quem já dormi, com quem já compartilhei a mínima distância de cabeças, em que meus sonhos se faziam no travesseiro e os do outro, ao meu lado, se faziam igualmente em sua cabeça. deitados na materialidade, mergulhamos no inconsciente dos sonhos e, de manhã, partilhamos a experiência solitária do nosso descanso.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

sobre o processo


viver é processo. viver é um longo processo para a morte. a vida é a repetição mais ou menos igual de acontecimentos até que um dia eles param de acontecer; você morreu. esse é o jeito ruim e mecânico de ver a vida e, querer viver para além disso é se anestesiar com o cotidiano, com o trabalho, com as contas, com toda a demanda de consumo, de vícios, de dor e de perdas. de ego, de conquistas, de sol e de tropeços pelo meio do caminho.

essa noite foi péssima. a Chico entrou no cio de novo. miou com tudo madrugada adentro. meus sonhos foram povoados de miados. não havia palavras ditas, havia urros animais nos meus ouvidos, escritos, por toda a parte. minha análise de livros era miada. fiquei entre o susto e o horror com os sons. até o sonho em que eu tinha um caso com Robert De Niro foi atrapalhado, um inferno! era algo como um filme de mafiosos e estávamos dando uns malhos no sofá; eu só vestia uma calça e sutiã, e ele era jovem. nos pegávamos com vontade, até que alguém batia à porta, eu ia abrir e miaaauuu!!! gata empata foda!

me recolhi. preciso produzir. acho que preciso reconhecer que a ansiedade me toma, me imobiliza, me amarra e me deixa no canto da sala. penso em tudo o que preciso fazer e me sinto uma derrotada por não sair do lugar, mas veja, eu saí. digo a mim mesma e a todas que me habitam: olha, o processo é longo, dolorido e cheio de percalços, mas estamos avançando, acredite. os tempos são relativos e você não está competindo com ninguém de fora. a briga é dentro mesmo. um pouco mais a cada dia, com os atrasos da vida, mas estamos indo. deveriam ser dois anos, estamos em três, okay. você começou de um jeito e vai terminar de outro, isso é certo. começou casada e "sã". no que a vida foi se sucedendo, você teve uns probleminhas de saúde física: luxou o tornozelo bem feio; teve herpes-zóster e dores horríveis; teve uma hérnia cervical e dores lancinantes. teve uns probleminhas familiares: filha adolescente rebelde, mãe adolescente rebelde e mentalmente doente e uma separação. teve uns probleminhas mentais: umas duas crises de depressão quase incapacitantes. claro que não foi só ruim, foi também bom, muito bom. teve amor, reencontro, desencontros, amizade boa e quentinha e confiança. teve eu andando pelada pela rua e pela praia. teve choro e teve riso, esse é o processo. quando um desses caminhos todos chegar ao fim, e ele está quase lá, eu sinto que serei livre de mim mesma. não é o intelecto, não é por comparação, mas tenho que admitir pra mim mesma que sou foda, uma mulher do caralho, dentro da minha realidade, do meu universo. estamos todos pelejando internamente, combatendo medos e demônios. só quem está dentro sabe o que frustra e o que motiva. eu só sei de mim e você só sabe de você. a gente troca experiências, mas elas são só nossas. tô quase lá, nos vemos em breve.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

sobre os hormônios

durante muito tempo, não associei a variação hormonal que acontece todos os meses aos meus estados de ânimo. havia dias em que eu estava muito ansiosa, outros em que estava muito cansada; em alguns estava sensibilíssima ou com vontade de matar qualquer pessoa que me olhasse torto. havia os dias em que queria comer os rebocos das paredes com manteiga e botar pra dentro uma tortinha coberta de açúcar de sobremesa. em alguns desses dias, eu choro diversas vezes e tenho certeza de que o mundo está agindo contra mim. a tensão pré-menstrual grita no meu útero quando solto 35 caralhos diários e só de ver algum ser "good vibes only", tenho ganas de pular no pescoço da criatura e arrancar um naco de carne dela. fico realmente possuída! fora a vontade insaciável de trepar, daí haja masturbação. claro que deve haver as muheres iluminadas, donas de si, que correm com os lobos, contam as luas, tomam chás e a porra toda, mas eu, definitivamente, não sou uma delas. agora que associo essa montanha-russa de sentimentos e vontades ao meu ciclo, continuo sentindo tudo isso, nada mudou, mas me observo e, observando, me vejo um pouco, veja bem, um pouco mais no controle de mim mesma e capaz de apaziguar todo esse desejo de matar e morrer, toda a ânsia de arrancar a pele de alguém com requintes de crueldade e chorar no travesseiro por uma hora inteira e depois sentir fome, vontade de transar, de dormir e culpa por existir. ser mulher é maravilhoso, só que não.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Sobre a minha Thaz

Amiga,

no final de semana, estava olhando a minha caixa de recordações, aquela em que eu guardo todas as suas cartas e cartões e um monte de outras lembranças. Reli todas elas e pensei no quanto eu te amo, no quanto você é importante pra mim, no quanto de história temos juntas e no quanto ainda teremos. Chorei, pra variar... A nossa amizade, durante a nossa adolescência não foi tão cotidiana, porque estudávamos em escolas diferentes. O chamego diário só veio no terceiro ano, que foi tão difícil pra mim, mas você estava lá. De alguma forma, você sempre esteve lá, mesmo que houvesse distância geográfica, porque sempre que nos encontrávamos era como se nunca tivéssemos ficado longe uma da outra.

Quando você se mudou pra cá, apesar das circunstâncias adversas, foi como a realização de um sonho de criança. Ter você por perto todos os dias era um alento e uma segurança sem igual. Saber que eu poderia conversar contigo a qualquer hora, era só eu subir as escadas e você estava bem ali, e esses dois últimos anos foram tão intensos pra nós duas, né? A vida nos deu umas lapadas nas canelas, mas estávamos aqui uma para a outra, juntas, estamos ainda e sempre estaremos, é uma das poucas certezas que tenho.

No último ano mesmo, quando você ficou doente e agora eu posso falar, tive muito medo de te perder. No dia da sua cirurgia, cheguei no hospital com o coração na mão achando que não conseguiria te ver antes de você ser internada. Mas eu consegui, e a gente ainda pôde dar umas risadas. Depois veio a recuperação e a radioterapia e você, como sempre, mostrou a coragem e a força que tem. Tenho muito orgulho de você. Da mulher incrível, da amiga preocupada e presente que vinha aqui em casa quando eu estava na merda e juntava os meus caquinhos todos os dias com tanto amor e afeto.

O que a gente tem é pra vida toda e eu não me canso de repetir que quem tem uma amizade como a nossa tem uma grande conquista na vida. A nossa estrada é todos os dias calçada por relações e a nossa faz um enorme pedaço dela valer a pena de ser percorrido. Ano que vem, faremos bodas de prata. Acho que não farei 25 anos de relacionamento com ninguém, mas contigo, sei que chegaremos até as bodas de titânio, se elas existirem.

Te amo muito, demais. Muito obrigada pela sua amizade, ela é um dos laços mais importantes que fiz até aqui. Feliz ano novo, meu amor, minha Thaz.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Sobre ganhar e perder

A vida acontece naquele palco do qual já falei antes. Nesse palco, encenamos tantos papéis e tantas vezes...  até que as cortinas se fechem no momento derradeiro em que nosso espetáculo se acaba.

As luzes se apagam. Voltamos para o mundo. Viramos estrelas. 

Enquanto pisamos nesse palco, no assoalho de madeira que estala sob os nossos pés, contracenamos com muitos atores. Me apaixonei um dia por um ator e, por causa dele, conheci sua família linda de não atores. Pessoas de verdade, mas que atuam todos os dias pra vida ser um pouco mais fácil do que ela é de fato. Pessoas especiais com quem eu tive a oportunidade de conviver brevemente, mas que me causaram das melhores impressões que podem haver, que são a impressão do amor, do acolhimento, do afeto.

O patriarca deles foi embora e eu quis vir vê-los, quis estar por perto para ajudar no que eles precisassem, mas quem foi ajudada fui eu. Mesmo no momento mais difícil pelo qual poderiam passar, o amor estava ali, está aqui, e eu pude senti-lo. Sabe quando você quer dar, mas acaba recebendo? É assim.

Para a família, as cortinas de um palco se fecharam mas, logo em seguida, se abriram novamente, porque é assim que a roda da vida gira, sempre voltando ao ponto de partida. A vida sempre se renova, essa é a sua beleza, não é? 

A vida se renova, as histórias se cruzam, e percebemos que o que nos aproxima é mais forte, mais bonito e mais importante do que aquilo que nos distancia. A paixão se arrefeceu, como acontece com todas elas, mas isso não quer dizer que os laços precisem se desfazer; ao contrário, eles se estreitam, e estreitar os laços com quem nos faz bem é sempre ganhar e isso equilibra as perdas. Sigamos. 
 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Sobre os anos

Antes de eu nascer, antes de todos nós nascermos, o mundo já estava aqui. ele é o palco, sempre foi, das nossas vidas. é no mundo que nos desenrolamos, que crescemos e experienciamos. na medida em que o tempo passa, passamos nós também. o tempo passa e só sabemos disso porque estamos amalgamados nele, mas ele em si não existe, na verdade é a gente que passa pelo tempo. o que existe é a gente, morrendo um pouco por dia, vivendo um pouco por dia, sentindo os anos se acumulando na carne, na nossa subjetividade. no dia em que eu faço aniversário - porque assim se partiu o tempo, em horas, dias e anos -, estou aqui com o que dizem ser 36 anos. para o tempo, não sou nada; lembra, sou eu que passo por ele. sou eu que o uso como norte da existência. eu que o vejo passar, mas quem está passando sou eu, passando pelos crivos todos que nos são impostos antes mesmo de chegarmos. passando pelas relações parentais, pela escola, pelos amigos, pelos amores, pela família, pelos empregos, pelas casas, pelas ruas, pelas dores, pelas alegrias, pelos pôres e nasceres de sol, pelas chuvas, pelas viagens, pelas perdas, por tudo o que se possa dar sobre esse palco.

chego aqui inteira nisso tudo, não dividida em 36 anos, que poderiam ser 14 ou 80 se as convenções fossem outras. chego aqui um pouco com gana, um pouco cansada. seja como for, continuo deslizando pelo tempo.

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" [A Gaia Ciência, §341]

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Quase vinte

Dezenove anos atrás, no dia de hoje, eu recebia a notícia de que meu pai tinha morrido. Ele não tinha morrido em um acidente, não tinha morrido em decorrência de uma doença. Ele se matou. Eu era uma adolescente. Não tínhamos convívio; eu o via nas férias, quando vinha de outra cidade, e passava mais tempo com a minha madrasta do que com ele, porque ele trabalhava o dia todo. Eu o esperava chegar do trabalho para o almoço, enquanto brincava com o papagaio enjaulado do tio Orlando na garagem dele. Eu passava o tempo enroscada na linda estátua nua, em tamanho natural, que havia no jardim desse mesmo tio. Contava as grandes lajotas no terreno da Bocaiúva. Eu olhava as árvores, as formigas e a grama. Quando ele finalmente aparecia, subia o caminho e vinha assobiando, aquele assobio que meu irmão mais velho faz igual, e que eu também faço de vez em quando. O seu jeito de andar, o rubor da face no calor de dezembro. Ele entrava em casa e a primeira coisa que fazia era lavar as mãos na pia bonita de latão dourado e reluzente do lavabo. Ele comia cebolinhas em conserva, as adorava, eu me lembro. Depois do almoço, ele descansava brevemente no quarto, escovava os dentes e voltava para o trabalho, e eu o veria novamente só quando o sol começasse a se por, nesses fins de tarde avermelhados do verão.

As lembranças que tenho dele não são tantas quanto eu gostaria, mas eu gosto de associá-lo às luzes coloridas de natal na árvore central, na entrada do terreno, porque uma noite saímos para passear a pé e passamos por ela. Cada vez que me lembro, volto pra lá.

Esse homem que não conheci de verdade sofreu a vida toda, não o tempo todo, mas a dor e a sombra estiveram ali, à sua espreita. No dia em que ele morreu, tive um sonho, e mesmo sem entender o que ele queria dizer - mais tarde, no mesmo dia, eu entendi -, acredito ter sentido o mesmo que ele quando foi embora: alívio. Acho que meu sonho e sua morte se juntaram em um momento único de conexão, que nunca mais se repetirá. As dores e o vazio que carregamos dentro de nós às vezes podem ser implacáveis. Depois do suicídio dele, me encantei pela morte. Fiquei obcecada por ela. Assistia a vídeos e vídeos de pessoas que se matavam de todas as maneiras e pensava: qual é o grau de sofrimento que leva uma pessoa a abdicar da vida? Não acho, de forma alguma que quem se mata é um covarde. Acho que são bravos, corajosos, mas também tristes e vazios. O que nos leva ao fim é a falta de perspectiva, a impossibilidade de ver caminhos, saídas, razões para ficar.

A angústia e a falta do que não se sabe já me fizeram titubear em momentos de desespero. A apatia, a letargia, a impotência diante da sombra que nos suga diariamente. Quando se cai no poço, quando a vibração fica baixa, quando a energia se esvai e você sente que nada mesmo vale a pena porque tudo um dia acaba. Muitos dizem que é por isso que ela precisa ser vivida, porque tem fim, a vida.

Meu pai nunca disse que me amava. Ele foi embora me devendo isso. Não devam amor a quem vocês amam, porque nunca se sabe. Frequentemente sonho com esse homem; sonho com a sua casa, a casa onde vivi meus primeiros anos. Lá, sempre quero entrar em seu quarto, quero mexer nas suas coisas, quero bisbilhotar sua vida, quero conhecê-lo. Na maior parte das vezes, não tenho acesso, fico frustrada. O mesmo acontece com a cozinha do térreo, onde ele se matou. Quero entrar lá, mas os espaços se modificam nos sonhos; não é mais uma cozinha ou há uma porta trancada. Nunca posso entrar! Quero entrar! Quero entender! A sensação é sempre de assombro, de paredes que me olham, que cochicham pelas minhas costas. São pequenas portas seladas e eu nunca sei o que elas escondem por detrás de si.

Apesar disso, já tivemos lindos encontros nos meus sonhos. Em um deles, em frente à casa do tio Toninho, em uma festa aberta, cheia de pessoas, ele aparece no meio da multidão e me abraça. Eu sei que ele está morto e só eu o enxergo. Que abraço gostoso, pai, que eu nunca te dei sabendo o que sei hoje de ti. Só depois da tua morte foi que te conheci um pouco mais. A Lili me falou que você me amava, e eu acreditei. A Adri me deu algumas fotos, minhas e do Felipe, de quando éramos pequenos, que estavam em uma de suas cadernetas. A Simone me deu um de seus pijamas e ganhei de presente do Calo um de seus suéteres, bonito, branco, elegante, que uso com gosto em dias frios de inverno. Relembramos sua vida quando nos encontramos e rimos de suas histórias engraçadas, assim você continua vivendo.

Carrego os seus genes tristes e os genes tristes de minha mãe. Não digo que seja uma maldição porque não foi de propósito, mas a sombra que vivia em você também vive um pouco em mim e ela me bate forte em alguns dias. Dói. O exemplo da sua morte voluntária me obriga a viver, mas quando a sombra cresce, há dias em que eu queria nunca ter existido.


segunda-feira, 8 de junho de 2020

sobre

nas buscas do caminho, que são sempre o próprio lugar a se chegar e o percurso, ando. lamento, choro, me doo de dor, ai quanta dor! e procuro, e sigo. danço, rebolo olhos nos olhos no flerte patético, engraçado. rio. rio de mim, meu rio represado começa a transbordar no riso leve. mostro meus dentes, não grunho, rio. olhos fechados, sinto as luzes coloridas sobre eles. solto, me solto, me debocho, me aceito. me vejo no espelho e me seduzo, com meus olhos, com minhas mãos e meus movimentos. me molho, me seco, me dispo. me deito e sinto. ouço as músicas, vejo por debaixo das minhas vistas a luz caleidoscópica ao lado esquerdo, na altura da minha órbita, da minha bochecha; está escuro, mas consigo enxergá-la como a um fantasma. sinto o toque, forte, constante, incessante. tremo, grito, berro, gemo e me regozijo - vou além, mais, mais, mais além! vejo as estrelinhas pretas no pano amarelo e elas começam a ficar em três dimensões. suo, me contorço, não controlo, não tenho controle. solto a dor, solto a aflição e a angústia. seca a minha boca o gozo, me encho de potência; entro em pranto. as lágrimas escorrem quentes e lentas pelo meus rosto. o sofrimento se esvai, escorrendo pela parede, de pontacabeça. urro muito, alto. me aperto, me seguro, me contraio. fodam-se os outros! estou ali, em mim. presa no corpo, livre no corpo, arrebatada, arfante. meus olhos então se enchem do nada, o nada, nada mais do que eu. a face formiga, a cabeça é esvaziada, o corpo vibra sem fim, treme.

é tempo de ir adiante, olhar à frente, seguir e dar uma volta pelo meu lado selvagem; está bem aqui. brado alto, falando comigo, dizendo para o que vive dentro de mim: eu sou, eu sou deus.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

sobre comprar cigarros

saí para comprar cigarros de carro e já na garagem eu senti pena de mim mesma, pena de você, pena de todo mundo que eu conheço. eu senti um desespero tão grande que o ar quase não me entrava mais. estamos todos perdidos dentro de nós mesmos nos afogando enquanto uma corda balança lá em cima, mas não vemos a corda, ficamos nos debatendo, eu fico me debatendo e vejo flashes de tudo mais colorido, mais vívido como se fossem lampejos de sanidade, de uma realidade distante. saí do posto pro lado errado; esqueci do carro e ia voltar a pé pra casa.

tô ensandecida. não tá tudo bem, não tá nada bem! o que é que a gente está fazendo nessa merda?! good vibes é o caralho! enfia todo esse sorriso imbecil no cu. a vida não é bela porra nenhuma! tá todo mundo na merda, mas eu só sei da minha merda porque é embaixo do meu nariz que ela está. foda-se! daí escuto uma música aleatória que faz eu querer me desfazer em mil pedaços. não me entendam mal, mas se não ficar louca aqui, fico onde? odeio a quarentena, odeio não poder sair por aí dando a rodo, mas eu só queria uma porra de um abraço, o mínimo de afeto. devia ter comprado alguma bebida porque só assim poderia aquietar meu coração, mas a idiota não trouxe, então eu fumo, choro, soluço, esfrego meu rosto, seco as lágrimas na manga do moletom, ouço músicas até eventualmente dormir, sabendo que amanhã vai ser tudo igual. vou seguir desnorteada, olhando pras paredes, cavando sentidos.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

sobre esquecer

cheguei em casa ébria, mandíbula travada, gritando, não sei por quê. As pernas ainda trêmulas e, nos dedos dos pés, ainda sentia a língua quente que por ali havia passado. Conversamos demoradamente, olhos mergulhados nos olhos, bebemos um tinto do qual não me lembro o nome; mas estava bom. senti as bochechas corarem, dei um suspiro e olhei para cima. veio até mim, colocou as mãos no meu pescoço e começou esfregá-las delicadamente contra a minha pele. eu disse que queria tomar um banho, pois senti minha pressão baixar aos poucos. ele, então, sugeriu me acompanhar; aceitei. enchemos a banheira e eu entrei. a água cobria meu peito. abracei meus joelhos e encostei minha cabeça sobre eles. senti suas mãos massageando minhas costas, me acarinhando com cuidado. a água quente evaporava e eu respirava relaxada. depois, encostei minha cabeça sobre a borda e ele ensaboou todo o meu corpo. tirou minha perna esquerda da água e pôs-se a chupar todos os dedos do meu pé. fiquei em êxtase. queria me afogar ali mesmo.

desculpe pelos transtornos

não gosto de saber que a praia vai voltar a ser só a praia de sempre, aquela em que todos vão. eu gostava de lá porque a praia era nossa. não gosto de saber que vou precisar ressignificar todas as músicas que ouvimos juntos e terei que fazer de conta que as músicas que você me apresentou não têm nada de especial. não gosto de saber que o caminho que eu fazia até aí precisa ser de novo um caminho qualquer, e que a rede em que deitamos e na qual conversamos tantas vezes, a partir de agora, só terá a mim pra embalar. odeio, odeio, com raiva e com força o fato de que, bem, eu fui embora e nem ao menos nos despedimos. e se eu engasgar? e se eu morrer nesses dias de clausura, e se for você a morrer, de doença ou atropelado? e, se, por sorte ou azar, não nos vermos nunca mais?

não tenho mais quem me estale os dedos ou as costas, mas você tem, porque isso é o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa, eu não tenho; você me estalava. a singularidade está no que o outro nos oferece de diferente, naquilo que não vai haver igual pra quem recebe. eu não gostei do texto, mas agora você não tem mais a mim pra dizer isso. ele não é bem traduzido, é estranho e você titubeou várias vezes, alguém deveria ter dito.

eu preciso dissociar o cheiro de óleo de gerânio, das conversas que tínhamos na entrada da sua casa no inverno. o cheiro me leva pra lá todas as vezes. preciso esquecer todas as conversas nas calçadas, nas escadas, nos postos de gasolina... preciso criar novos sentidos pras coisas mais simples e mais significativas que fazíamos porque era nesses lugares, à noite... eu nem consigo mais olhar pra lua sem parecer que meu coração vai sair pela boca, então não olho. ninguém mais vai colocar flores no meu cabelo, porque isso é o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa, e já está fazendo.

eu pensava que era especial pelas suas ações, mas isso é só o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa. achava que eu era especial, mas você só estava sendo o que é, e pode ser com qualquer pessoa. eu só vi o que quis ver, mas não consegui enxergar, ou não quis? costumo achar que o que é óbvio pra mim também o é para os outros, mas geralmente estou errada. você viu que eu me enganava e não disse nada, talvez porque pra você fosse evidente que era só como você é; toda a imagem que eu tinha criado de você me incluía nela como alguém especial, porque era como eu queria me sentir.

"me desculpe pelos transtornos" é a frase mais seca e desprovida de afeto que alguém poderia me dizer. mas isso é quem você é, é o que você faz, e pode fazer com qualquer pessoa.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Sobre estar suspensa

quando começou, e os dias iam se passando indistinguíveis, fui sendo tomada pela angústia que, em outros momentos, aparecia só nos domingos à noite. os dias eram todos iguais, perdidos no calendário que já não importava mais. só conseguia me dar conta de quantos tinham ficado para trás, quando procurava pelos números. a ansiedade subia pela minha espinha e eu me perguntava se era realmente verdade o que estava acontecendo, o que está acontecendo... cada vez que ouço no rádio ou que vejo em alguma tela a notícia da pandemia, é como se tivesse sido jogada em um filme apocalíptico, em que o fim que nos assola não é tão emocionante e cheio de ação como na ficção, mas é tão aterrorizante quanto os piores filmes de terror.

tenho chorado muito nos últimos dias vendo a vulgarização da morte, da asfixia, do esforço coletivo de um lado, para salvar vidas, e da insanidade, de outro, que cegamente acredita na volta da "normalidade" de pouco tempo atrás. sinto raiva, tristeza e entorpecimento; sinto que a vida está em suspensão e que estamos todos, subitamente, diante de nós mesmos, em frente a um espelho que reflete a nossa humanidade com tudo o que há de melhor e de pior nela. de repente, estamos sendo forçados a lidar com a perda abrupta, com a falta de escapatória, com a dor e com a resignação de que nada mais será como antes; ou será?

inesperadamente, temos que lidar com o invisível, temos que nos proteger do que não vemos, como se um fantasma nos assombrasse ou como se deus - o onisciente, onipotente e onipresente -, estivesse a nossa volta para nos castigar por sermos maus e é o que somos. valorizamos a tradição da economia, a convenção de que um pedaço de papel, ao qual atribuímos valor, tem mais importância do que vidas. vidas! vidas que parecem ainda mais preciosas quando estão sobre macas, entubadas, lutando para continuar existindo em desespero, ao lado de corpos inertes que há pouco sofriam igualmente, e que agora precisam ser ensacados para evitar a contaminação dos demais, mas que continuam ali, ao lado dos que ainda agonizam, buscando o sopro da melhora.

que dor tudo isso; que dor não poder apaziguar a situação; que dor pelas perdas, pelas pessoas que viram números, pelas pessoas que não têm a possibilidade de escolher se protegerem porque são obrigadas a saírem de suas casas para prover o sustento dos seus e, assim, tentar sobreviver; pela imbecilidade dos cegos, pela cretinice de muitos dos que nos governam e representam, pela má-fé dos que não acreditam na praga. que dor pensar que não sabemos o que nos aguarda, mas que o pior ainda está por vir.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

sobre mim, você e os universos

A noite estava quente, mas perto da praia, a brisa quase gélida se revezava com algumas rajadas de vento morno. O céu não estava totalmente limpo, havia algumas nuvens que não chegavam a impedir a visão das estrelas; lindas, grandes e miúdas, cintilavam com força no entorno da lua que minguava amarela, enquanto ainda mais baixa no céu. Na medida em que subia, ia ficando menor e mais distante; prateada, refletia-se no mar cujas ondas pareciam feitas de mercúrio brilhante. O pano sobre o qual estava, assim como minha pele, iam aos poucos ficando molhados pelo sereno da noite. Deitada com as mãos atrás da cabeça, pensei: como podemos achar que temos alguma importância diante de todo o universo? Ele que é tão vasto, infinito, o que pode dizer sobre nós?

Então me lembrei da analogia que já tinha feito antes. Se colocarmos nossas cabeças lado a lado, bem coladinhas, mesmo que quiséssemos, não conseguiríamos penetrar os pensamentos do outro; e esse outro que pode pensar todas e quaisquer coisas, ele é um universo. Eu sou um universo; somos todos. Aqui, infinitos dentro de nós mesmos. Em cada corpo, um universo, e como eu jamais poderei acessar o seu, acredito que o meu é o mais importante, por isso também acredito que todos os outros universos estão à minha volta, como se me orbitassem. O pequeno acesso que temos ao universo alheio se dá pela comunicação, pela linguagem e, ainda assim, mesmo que tentemos expressar o que ocorre nos compartimentos mais íntimos do nosso ser, isso não é o suficiente para manifestar o que sentimos às vezes. A linguagem é limitada, mas não o nosso pensamento. Isso é bom e ruim, não sei por que ao certo.

Porque somos universos com senso de autoimportância, acredito que o ego seja a força motriz da nossa existência. Corta para a situação: pessoa por quem fui muito apaixonada na adolescência me manda uma mensagem aleatória como pretexto para logo depois me pedir desculpas por ter me rejeitado, pela forma como se deu, como me tratou na época. Não sei, mas acredito que deva ter pensado nisso por muito tempo, pois pedir desculpas dezoito anos depois, apesar do atraso, acho que quer dizer que houve um incômodo interno. Um sofrimento tardio por ter feito sofrer. Aceito as desculpas; éramos adolescentes. Passou. O que me espanta é que ele carregou isso por tanto tempo, e o meu sentimento ficou lá atrás, passou também. Virou ferida, se curou e hoje, por mais que haja a reparação, ela não faz mais diferença para mim porque não existe mais sofrimento, não existe mais sentimento e a pessoa por quem eu nutri tanto, se perdeu pelo caminho. Triste é notar um arrependimento pelo que não foi, pelo que poderia ter sido, pelo que não houve porque as possibilidades, assim como nós, são infinitas. Pena é ver que, às vezes, se leva tanto tempo para perceber isso. Como o mundo não para de girar, vamos mudando com as suas voltas, levando bordoadas que vão nos mostrando o caminho.

Como me sinto hoje com a minha vida? Tentei ao máximo, muitas vezes, me conectar com outros universos. Vi de muitos o que consegui identificar - não sem dor - como uma ponte quebrada, por onde eu jamais conseguiria passar; em alguns desses universos, identifiquei e senti amor e todas as outras coisas que vêm com ele; em outro, achei que vi uma ponte com uma porta, ao final, entreaberta, pela qual caminhei até que, ao chegar mais perto dela, vi que a porta fora batida. Não posso entrar, ela só abre por dentro. Fico sem entender. Havia uma ponte entre nós, achei que... achei que... achei que nada. Achei, na grandeza do meu universo, que o outro se abriria para mim, mas me esqueci que isso não acontece. Mesmo que me desnude em palavras, mesmo que me abra em carne viva, ainda sou só eu. Não nos acessamos. Mas, na pior das hipóteses, ainda usei de todos os artifícios possíveis para que a ponte se estabelecesse, para que a porta se abrisse, para que eu pudesse ver lá dentro o que as palavras não eram capazes de exteriorizar. A linguagem lacônica, por sua vez, parece denotar medo; medo de falar demais, medo de ser preciso, medo de demonstrar, de abrir a porta, de escolher, de abrir mão, de ter uma posição e é aí que voltamos ao parágrafo anterior. Entende? O tempo certo é o tempo em que sentimos, nenhum outro.

Conheço um carneiro que ficou por anos tentando reabrir a porta de uma conexão. Estava ele sempre ali, forçando a maçaneta, sem perceber que o tempo daquilo já tinha passado. Anos... Meu tempo passa mais depressa - mas não sem lamento -, e já está quase no fim, se tudo der certo. Queria ter podido compartilhar isso lado a lado, vendo as estrelas ficando coloridas como luzes de natal, mas vejo que é chegada a hora de fechar a minha porta também. O que não é correspondido, mingua com o tempo. Passa a dor e depois não sobra nada, assim como a lua minguante. Depois, surge, então, a lua nova, discreta, preparando o palco para a chegada da lua crescente, que emerge com as escolhas, até que fique cheia, prenhe de luz, clareando as noites em que poderíamos estar juntos, dois universos, cabeça com cabeça, sobre um pano na praia olhando para o céu.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

sobre um dia qualquer

meu computador voltou a carregar... notebook, chame como quiser. isso foi anteontem; peguei-o no conserto e ele ficou na sacola sobre o balcão um dia inteiro, me esperando. ontem à noite, decidi ligá-lo e fazê-lo trabalhar. escrevi um tanto, mas foi só para mim, para clarear as nuvens da minha cabeça. hoje os cigarros tinham acabado e eles são sempre um bom motivo para sair de casa. coloquei o vestido verde, sem sutiã - que aguente o peso dos meus peitos sem reclamar. estou fedendo, então mantenho os braços junto ao corpo, e não escovei os dentes, então diálogos apenas a uma distância segura. coloco meus óculos escuros, saio de chinelos e cruzo com três carrinhos de bebês, cujos pais os levam para um passeio de final de tarde. as caras redondas e felizes me fazem sorrir, mas o sonho de família perfeita da classe média me dá náuseas. compro os cigarros e, na volta, cruzo com um grupo de rapazes falando sobre relatórios de trabalho e tecnologia. nessa hora, queria poder dar um tiro na minha cabeça. sigo. digito as senhas, pego o elevador, abro a porta, tiro a roupa, acendo um cigarro, ligo de novo o computador e escrevo.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Sobre deslocar-se

Alguns lugares são nossos. A alguns lugares pertencemos em algum momento da vida e em outros, ainda, não nos encaixamos. Não me encaixo aqui, estou deslocada. O vácuo do não pertencimento. Às vezes não me sinto à vontade nem na minha casa. Sinto vontade de fugir do lugar, da minha própria pele, me amalgamar a uma parede, ser nada. Alguns lugares e algumas pessoas são moradas para nós, outros são prisões. Você é o quê?

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Sobre conviver, cansar e não entender

Não vou entendê-la nunca. Acho que nem a própria sabe por que age como age. Criou tudo dentro dela e grande parte disso é de demônios. O inferno são os outros, já diria Sartre, e ela é o meu. Acho que faço parte do dela também. Mas é minha mãe. Essa palavra que simboliza tantas coisas boas e felizes, a mim me dá medo, pois tenho medo da minha mãe; figura indecifrável, maledicente, amarga. Das mães dos outros, tenho inveja e, da minha, de muito tempo atrás, tenho alguma saudade.
Nem sei dizer o quão frustrante é precisar ser mãe da sua mãe, nem o quanto dói olhar os esforços de melhoria escorrendo pelo ralo dos dias. Não tenho mais esperanças de ser cuidada por ela, apenas gostaria que ela fosse capaz de fazer por si mesma, mas a essa altura, o pássaro não aprende novas formas de voar.
Prefere a gaiola, a corrente amarrada aos pés, pois ver os outros voarem não a faz querer bater asas também, ao contrário, ela quer que todos se amarrem a ela, se tranquem na gaiola e que um pano nos cubra para que ela tenha a sensação de que o mundo não é e nem nunca será maior do que o espaço pequeno, limitado e confortável que ela conhece.
Isso é o que ela pensa? Não sei, não saberei nunca, mas é o que penso dela.

Sobre o peito aberto

Meu peito está aberto. Talvez sempre tenha estado, por isso o que lhe pesa me faz doer as vértebras. Está aberto e solar. Cabe em mim o nascer do astro em bola de fogo, entre as ondas sombreadas e as nuvens cor de rosa. Cabem todos os grãos de areia das praias todas. Meu peito aberto é um universo infinito com possibilidades, limitações, movimento e inércia; é o caos, meu caos, meu peito, minha dor e minha alegria.
Vê as pintas, as veias, os mapas por baixo da pele? aqueles que levam pra dentro, nos quais me perco nos caminhos de mim mesma. Consegue ver o coração batendo por trás da carne? Vê como acelera? Vê como ele aperta na angústia e como se expande nas risadas e no abraço sincero? Vem, deita em meu peito, sente, se conforta no meu braço - digo em um eco que ressoa na minha imensidão.
Me afogo em lágrimas e depois me reergo em gozos pulsantes e sufocados na madrugada. Descubro o que não conhecia e redescubro o que tinha esquecido. Tudo dentro, tudo no meu peito aberto.