quarta-feira, 20 de maio de 2020

sobre comprar cigarros

saí para comprar cigarros de carro e já na garagem eu senti pena de mim mesma, pena de você, pena de todo mundo que eu conheço. eu senti um desespero tão grande que o ar quase não me entrava mais. estamos todos perdidos dentro de nós mesmos nos afogando enquanto uma corda balança lá em cima, mas não vemos a corda, ficamos nos debatendo, eu fico me debatendo e vejo flashes de tudo mais colorido, mais vívido como se fossem lampejos de sanidade, de uma realidade distante. saí do posto pro lado errado; esqueci do carro e ia voltar a pé pra casa.

tô ensandecida. não tá tudo bem, não tá nada bem! o que é que a gente está fazendo nessa merda?! good vibes é o caralho! enfia todo esse sorriso imbecil no cu. a vida não é bela porra nenhuma! tá todo mundo na merda, mas eu só sei da minha merda porque é embaixo do meu nariz que ela está. foda-se! daí escuto uma música aleatória que faz eu querer me desfazer em mil pedaços. não me entendam mal, mas se não ficar louca aqui, fico onde? odeio a quarentena, odeio não poder sair por aí dando a rodo, mas eu só queria uma porra de um abraço, o mínimo de afeto. devia ter comprado alguma bebida porque só assim poderia aquietar meu coração, mas a idiota não trouxe, então eu fumo, choro, soluço, esfrego meu rosto, seco as lágrimas na manga do moletom, ouço músicas até eventualmente dormir, sabendo que amanhã vai ser tudo igual. vou seguir desnorteada, olhando pras paredes, cavando sentidos.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

desculpe pelos transtornos

não gosto de saber que a praia vai voltar a ser só a praia de sempre, aquela em que todos vão. eu gostava de lá porque a praia era nossa. não gosto de saber que vou precisar ressignificar todas as músicas que ouvimos juntos e terei que fazer de conta que as músicas que você me apresentou não têm nada de especial. não gosto de saber que o caminho que eu fazia até aí precisa ser de novo um caminho qualquer, e que a rede em que deitamos e na qual conversamos tantas vezes, a partir de agora, só terá a mim pra embalar. odeio, odeio, com raiva e com força o fato de que, bem, eu fui embora e nem ao menos nos despedimos. e se eu engasgar? e se eu morrer nesses dias de clausura, e se for você a morrer, de doença ou atropelado? e, se, por sorte ou azar, não nos vermos nunca mais?

não tenho mais quem me estale os dedos ou as costas, mas você tem, porque isso é o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa, eu não tenho; você me estalava. a singularidade está no que o outro nos oferece de diferente, naquilo que não vai haver igual pra quem recebe. eu não gostei do texto, mas agora você não tem mais a mim pra dizer isso. ele não é bem traduzido, é estranho e você titubeou várias vezes, alguém deveria ter dito.

eu preciso dissociar o cheiro de óleo de gerânio, das conversas que tínhamos na entrada da sua casa no inverno. o cheiro me leva pra lá todas as vezes. preciso esquecer todas as conversas nas calçadas, nas escadas, nos postos de gasolina... preciso criar novos sentidos pras coisas mais simples e mais significativas que fazíamos porque era nesses lugares, à noite... eu nem consigo mais olhar pra lua sem parecer que meu coração vai sair pela boca, então não olho. ninguém mais vai colocar flores no meu cabelo, porque isso é o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa, e já está fazendo.

eu pensava que era especial pelas suas ações, mas isso é só o que você faz e pode fazer com qualquer pessoa. achava que eu era especial, mas você só estava sendo o que é, e pode ser com qualquer pessoa. eu só vi o que quis ver, mas não consegui enxergar, ou não quis? costumo achar que o que é óbvio pra mim também o é para os outros, mas geralmente estou errada. você viu que eu me enganava e não disse nada, talvez porque pra você fosse evidente que era só como você é; toda a imagem que eu tinha criado de você me incluía nela como alguém especial, porque era como eu queria me sentir.

"me desculpe pelos transtornos" é a frase mais seca e desprovida de afeto que alguém poderia me dizer. mas isso é quem você é, é o que você faz, e pode fazer com qualquer pessoa.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Sobre estar suspensa

quando começou, e os dias iam se passando indistinguíveis, fui sendo tomada pela angústia que, em outros momentos, aparecia só nos domingos à noite. os dias eram todos iguais, perdidos no calendário que já não importava mais. só conseguia me dar conta de quantos tinham ficado para trás, quando procurava pelos números. a ansiedade subia pela minha espinha e eu me perguntava se era realmente verdade o que estava acontecendo, o que está acontecendo... cada vez que ouço no rádio ou que vejo em alguma tela a notícia da pandemia, é como se tivesse sido jogada em um filme apocalíptico, em que o fim que nos assola não é tão emocionante e cheio de ação como na ficção, mas é tão aterrorizante quanto os piores filmes de terror.

tenho chorado muito nos últimos dias vendo a vulgarização da morte, da asfixia, do esforço coletivo de um lado, para salvar vidas, e da insanidade, de outro, que cegamente acredita na volta da "normalidade" de pouco tempo atrás. sinto raiva, tristeza e entorpecimento; sinto que a vida está em suspensão e que estamos todos, subitamente, diante de nós mesmos, em frente a um espelho que reflete a nossa humanidade com tudo o que há de melhor e de pior nela. de repente, estamos sendo forçados a lidar com a perda abrupta, com a falta de escapatória, com a dor e com a resignação de que nada mais será como antes; ou será?

inesperadamente, temos que lidar com o invisível, temos que nos proteger do que não vemos, como se um fantasma nos assombrasse ou como se deus - o onisciente, onipotente e onipresente -, estivesse a nossa volta para nos castigar por sermos maus e é o que somos. valorizamos a tradição da economia, a convenção de que um pedaço de papel, ao qual atribuímos valor, tem mais importância do que vidas. vidas! vidas que parecem ainda mais preciosas quando estão sobre macas, entubadas, lutando para continuar existindo em desespero, ao lado de corpos inertes que há pouco sofriam igualmente, e que agora precisam ser ensacados para evitar a contaminação dos demais, mas que continuam ali, ao lado dos que ainda agonizam, buscando o sopro da melhora.

que dor tudo isso; que dor não poder apaziguar a situação; que dor pelas perdas, pelas pessoas que viram números, pelas pessoas que não têm a possibilidade de escolher se protegerem porque são obrigadas a saírem de suas casas para prover o sustento dos seus e, assim, tentar sobreviver; pela imbecilidade dos cegos, pela cretinice de muitos dos que nos governam e representam, pela má-fé dos que não acreditam na praga. que dor pensar que não sabemos o que nos aguarda, mas que o pior ainda está por vir.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

sobre mim, você e os universos

A noite estava quente, mas perto da praia, a brisa quase gélida se revezava com algumas rajadas de vento morno. O céu não estava totalmente limpo, havia algumas nuvens que não chegavam a impedir a visão das estrelas; lindas, grandes e miúdas, cintilavam com força no entorno da lua que minguava amarela, enquanto ainda mais baixa no céu. Na medida em que subia, ia ficando menor e mais distante; prateada, refletia-se no mar cujas ondas pareciam feitas de mercúrio brilhante. O pano sobre o qual estava, assim como minha pele, iam aos poucos ficando molhados pelo sereno da noite. Deitada com as mãos atrás da cabeça, pensei: como podemos achar que temos alguma importância diante de todo o universo? Ele que é tão vasto, infinito, o que pode dizer sobre nós?

Então me lembrei da analogia que já tinha feito antes. Se colocarmos nossas cabeças lado a lado, bem coladinhas, mesmo que quiséssemos, não conseguiríamos penetrar os pensamentos do outro; e esse outro que pode pensar todas e quaisquer coisas, ele é um universo. Eu sou um universo; somos todos. Aqui, infinitos dentro de nós mesmos. Em cada corpo, um universo, e como eu jamais poderei acessar o seu, acredito que o meu é o mais importante, por isso também acredito que todos os outros universos estão à minha volta, como se me orbitassem. O pequeno acesso que temos ao universo alheio se dá pela comunicação, pela linguagem e, ainda assim, mesmo que tentemos expressar o que ocorre nos compartimentos mais íntimos do nosso ser, isso não é o suficiente para manifestar o que sentimos às vezes. A linguagem é limitada, mas não o nosso pensamento. Isso é bom e ruim, não sei por que ao certo.

Porque somos universos com senso de autoimportância, acredito que o ego seja a força motriz da nossa existência. Corta para a situação: pessoa por quem fui muito apaixonada na adolescência me manda uma mensagem aleatória como pretexto para logo depois me pedir desculpas por ter me rejeitado, pela forma como se deu, como me tratou na época. Não sei, mas acredito que deva ter pensado nisso por muito tempo, pois pedir desculpas dezoito anos depois, apesar do atraso, acho que quer dizer que houve um incômodo interno. Um sofrimento tardio por ter feito sofrer. Aceito as desculpas; éramos adolescentes. Passou. O que me espanta é que ele carregou isso por tanto tempo, e o meu sentimento ficou lá atrás, passou também. Virou ferida, se curou e hoje, por mais que haja a reparação, ela não faz mais diferença para mim porque não existe mais sofrimento, não existe mais sentimento e a pessoa por quem eu nutri tanto, se perdeu pelo caminho. Triste é notar um arrependimento pelo que não foi, pelo que poderia ter sido, pelo que não houve porque as possibilidades, assim como nós, são infinitas. Pena é ver que, às vezes, se leva tanto tempo para perceber isso. Como o mundo não para de girar, vamos mudando com as suas voltas, levando bordoadas que vão nos mostrando o caminho.

Como me sinto hoje com a minha vida? Tentei ao máximo, muitas vezes, me conectar com outros universos. Vi de muitos o que consegui identificar - não sem dor - como uma ponte quebrada, por onde eu jamais conseguiria passar; em alguns desses universos, identifiquei e senti amor e todas as outras coisas que vêm com ele; em outro, achei que vi uma ponte com uma porta, ao final, entreaberta, pela qual caminhei até que, ao chegar mais perto dela, vi que a porta fora batida. Não posso entrar, ela só abre por dentro. Fico sem entender. Havia uma ponte entre nós, achei que... achei que... achei que nada. Achei, na grandeza do meu universo, que o outro se abriria para mim, mas me esqueci que isso não acontece. Mesmo que me desnude em palavras, mesmo que me abra em carne viva, ainda sou só eu. Não nos acessamos. Mas, na pior das hipóteses, ainda usei de todos os artifícios possíveis para que a ponte se estabelecesse, para que a porta se abrisse, para que eu pudesse ver lá dentro o que as palavras não eram capazes de exteriorizar. A linguagem lacônica, por sua vez, parece denotar medo; medo de falar demais, medo de ser preciso, medo de demonstrar, de abrir a porta, de escolher, de abrir mão, de ter uma posição e é aí que voltamos ao parágrafo anterior. Entende? O tempo certo é o tempo em que sentimos, nenhum outro.

Conheço um carneiro que ficou por anos tentando reabrir a porta de uma conexão. Estava ele sempre ali, forçando a maçaneta, sem perceber que o tempo daquilo já tinha passado. Anos... Meu tempo passa mais depressa - mas não sem lamento -, e já está quase no fim, se tudo der certo. Queria ter podido compartilhar isso lado a lado, vendo as estrelas ficando coloridas como luzes de natal, mas vejo que é chegada a hora de fechar a minha porta também. O que não é correspondido, mingua com o tempo. Passa a dor e depois não sobra nada, assim como a lua minguante. Depois, surge, então, a lua nova, discreta, preparando o palco para a chegada da lua crescente, que emerge com as escolhas, até que fique cheia, prenhe de luz, clareando as noites em que poderíamos estar juntos, dois universos, cabeça com cabeça, sobre um pano na praia olhando para o céu.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

sobre um dia qualquer

meu computador voltou a carregar... notebook, chame como quiser. isso foi anteontem; peguei-o no conserto e ele ficou na sacola sobre o balcão um dia inteiro, me esperando. ontem à noite, decidi ligá-lo e fazê-lo trabalhar. escrevi um tanto, mas foi só para mim, para clarear as nuvens da minha cabeça. hoje os cigarros tinham acabado e eles são sempre um bom motivo para sair de casa. coloquei o vestido verde, sem sutiã - que aguente o peso dos meus peitos sem reclamar. estou fedendo, então mantenho os braços junto ao corpo, e não escovei os dentes, então diálogos apenas a uma distância segura. coloco meus óculos escuros, saio de chinelos e cruzo com três carrinhos de bebês, cujos pais os levam para um passeio de final de tarde. as caras redondas e felizes me fazem sorrir, mas o sonho de família perfeita da classe média me dá náuseas. compro os cigarros e, na volta, cruzo com um grupo de rapazes falando sobre relatórios de trabalho e tecnologia. nessa hora, queria poder dar um tiro na minha cabeça. sigo. digito as senhas, pego o elevador, abro a porta, tiro a roupa, acendo um cigarro, ligo de novo o computador e escrevo.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Sobre deslocar-se

Alguns lugares são nossos. A alguns lugares pertencemos em algum momento da vida e em outros, ainda, não nos encaixamos. Não me encaixo aqui, estou deslocada. O vácuo do não pertencimento. Às vezes não me sinto à vontade nem na minha casa. Sinto vontade de fugir do lugar, da minha própria pele, me amalgamar a uma parede, ser nada. Alguns lugares e algumas pessoas são moradas para nós, outros são prisões. Você é o quê?

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Sobre conviver, cansar e não entender

Não vou entendê-la nunca. Acho que nem a própria sabe por que age como age. Criou tudo dentro dela e grande parte disso é de demônios. O inferno são os outros, já diria Sartre, e ela é o meu. Acho que faço parte do dela também. Mas é minha mãe. Essa palavra que simboliza tantas coisas boas e felizes, a mim me dá medo, pois tenho medo da minha mãe; figura indecifrável, maledicente, amarga. Das mães dos outros, tenho inveja e, da minha, de muito tempo atrás, tenho alguma saudade.
Nem sei dizer o quão frustrante é precisar ser mãe da sua mãe, nem o quanto dói olhar os esforços de melhoria escorrendo pelo ralo dos dias. Não tenho mais esperanças de ser cuidada por ela, apenas gostaria que ela fosse capaz de fazer por si mesma, mas a essa altura, o pássaro não aprende novas formas de voar.
Prefere a gaiola, a corrente amarrada aos pés, pois ver os outros voarem não a faz querer bater asas também, ao contrário, ela quer que todos se amarrem a ela, se tranquem na gaiola e que um pano nos cubra para que ela tenha a sensação de que o mundo não é e nem nunca será maior do que o espaço pequeno, limitado e confortável que ela conhece.
Isso é o que ela pensa? Não sei, não saberei nunca, mas é o que penso dela.

Sobre o peito aberto

Meu peito está aberto. Talvez sempre tenha estado, por isso o que lhe pesa me faz doer as vértebras. Está aberto e solar. Cabe em mim o nascer do astro em bola de fogo, entre as ondas sombreadas e as nuvens cor de rosa. Cabem todos os grãos de areia das praias todas. Meu peito aberto é um universo infinito com possibilidades, limitações, movimento e inércia; é o caos, meu caos, meu peito, minha dor e minha alegria.
Vê as pintas, as veias, os mapas por baixo da pele? aqueles que levam pra dentro, nos quais me perco nos caminhos de mim mesma. Consegue ver o coração batendo por trás da carne? Vê como acelera? Vê como ele aperta na angústia e como se expande nas risadas e no abraço sincero? Vem, deita em meu peito, sente, se conforta no meu braço - digo em um eco que ressoa na minha imensidão.
Me afogo em lágrimas e depois me reergo em gozos pulsantes e sufocados na madrugada. Descubro o que não conhecia e redescubro o que tinha esquecido. Tudo dentro, tudo no meu peito aberto.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

sobre conversas no espelho

estava com os pés molhados, gelados. calçava sandálias em uma dia de chuva que, durante a manhã, não se prenunciava para tão breve. saiu da sala, trancou a porta, e logo sentiu os pelos se eriçarem de frio. desceu as escadas com cigarro, isqueiro e drops em uma mão e o telefone celular na outra.

passou pela rampa, tomou alguns pingos grossos de chuva na cabeça, deu três passos sobre o gramado e sentou-se no banco de concreto. de óculos escuros, o dia parecia ainda mais fechado do que era de fato. olhou o estacionamento minguado de carros; as férias estão chegando.

sentiu a ideia vindo, uma frase solta que poderia chegar a um texto. abriu seu blog no telefone e fez o que não gosta: escrever usando o pequeno teclado. sua única vantagem é o corretor ortográfico. no tempo de três cigarros, escreveu sobre isto:

Tinha incríveis diálogos consigo mesma, nua, em frente ao espelho. Falava com interlocutores imaginários interessantíssimos, ou que o eram de sua perspectiva. Sua mente tagarelava sobre o sentido das coisas, das escolhas e das dores. Cada dor era uma pequena ferida que teimava em sangrar. Sujava os lençóis e secava sobre a pele que já tinha tantas outras cicatrizes. Sentir dor era bom porque assim sentia, da mesma forma que os fugazes momentos de alegria figuravam agora em lembranças soltas, escondidas embaixo do travesseiro com um fio de cabelo perdido.

Olhava para o teto, para a luz branca, fixamente por tempo o bastante para que não enxergasse mais nada, apenas o nada; era como uma meditação. Poderia ficar imóvel por horas, com a cabeça leve e cheia de luz. Mas de repente, revolvia-se na cama, até que ficasse confortável novamente, com o cobertor entre as pernas. Deitada de lado, sentia saudades até dormir.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

sobre morrer pela boca

estou ansiosa, não cabendo em mim. dizem que o peixe morre pelo boca; será que é por isso? falei demais, expressei demais? durante anos entrei em jogos de comunicação. muitas vezes me perdi neles, porque não sabia quando falar. elaborava longas respostas perfeitas para o confronto, mas elas sempre vinham tardiamente, quando já não fariam mais sentido. me perdia nos meus argumentos e, depois, quando dava por mim, me sentia pequena, feita de boba, me imaginando em uma catatonia que me impediria de articular o que estava tão claro em minha mente. perdia a "briga", o debate, a discussão. não falei o que deveria ou me expus demais, me coloquei em uma posição vulnerável, naquela em que o outro poderia fazer o que quisesse comigo.

não se tratava só de falar o que me incomodava; se tratava de falar tudo. do ruim e do bom. das borboletas no meu estômago, do peito saltando, dos sonhos felizes. o que eu posso fazer com isso? pra que falar, contar, tirar de dentro de mim se o que parece é que não dá, que não pode ser?

por isso, o melhor era que me fechasse na minha concha. não demonstrar fraqueza, nem interesse, nem preocupação, nem apreço, nem afeição. ser duro é ser forte, eu pensava. com o tempo (muito recentemente, na verdade) percebi que por mais que me mostrasse frágil, isso ainda era mais sensato do que ficar calada, com os dedos sobre a boca, num gesto inconsciente de querer verbalizar o que eu escondia em mim.

aos poucos, fui me abrindo, achando que, de fato, estava fazendo o certo, mesmo me sentindo exposta, ainda que me sentisse prestes a levar uma surra no escuro que eu não saberia de onde viria. ao mesmo tempo em que me senti mais confiante na entrega, me senti também insegura porque falar o que se passa dentro da gente não é garantia de entendimento e nem de reciprocidade por quem ouve. com isso, me sinto diminuindo de novo, me sinto despida e indefesa e eu sou a única que pode me proteger de mim mesma.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

sobre ser ridículo

o ridículo é aquele que é risível, mas não porque é engraçado; por escárnio. mais ridículo que o próprio é quem o julga. o ridículo não o teme ser. ele não consegue entrar nas gavetas da norma, da regra, da convenção. a própria vida nos leva a ser ridículos. os amantes são ridículos, assim como o amor que os origina. a exacerbação, o espalhafato, o sentimentalismo e o excesso de maneiras, de cores, a liberdade assim o tornam. gosto de ser ridícula porque choca, porque não esperam, porque quem cabe em caixas não quer sair de dentro delas e aponta dedos, lança olhares. o ridículo enxerga além, vê beleza na loucura, no ponto cego, no que está perdido... perdido, aquilo que não tem direção, que não sabe pra onde ir e só vai (ou estanca), vai sem receio, levado pela brisa leve da incerteza. ser ridículo é não ter medo de errar, é fazer mesmo sabendo que tudo pode se desfazer, que a dor pode chegar, que o encantamento pode acabar, que os quereres podem se transformar, que os caminhos podem se distanciar, que a vida pode ter outros planos. às vezes não quero; ser ridículo é uma merda. bancar o ridículo, fazer o papel ridículo. às vezes me envergonho; outras me regozijo. às vezes, num surto, é só o quero ser: RI-DÍ-CU-LA.


terça-feira, 5 de novembro de 2019

faz três dias que meu corpo dói. sinto como se tivessem me ateado fogo. minha pele dói, minha espinha urra, minha cabeça dilacera, minha nuca arde. as vontades se desfazem todas em suor durante a noite, quando me reviro, me reviro, me viro. a coberta me esquenta e me agonia, mas não consigo ficar sem ela. a dor se intensifica ou é amenizada pela posição fetal em que me encontro. vai passar, não vai? quando fecho os olhos, as palavras vêm como em um teleprompter acelerado. não dou conta de lê-las, de interpretá-las, de entendê-las. elas vêm me atropelando, marcadas em negrito e eu sequer consigo... me tonteiam, e seguem sem parar, noite adentro, me enojando, me fazendo sentir maluca, como se o sonho metalinguístico não fosse acabar nunca. por favor, tira-me daqui. acorda-me porque não quero mais dormir.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

sobre desamparo e desamor

eu era pequena, não sei quão pequena, mas estava sentada no colo dela, na sala de estar. eu ouvia sua voz e a sentia falar abafado, pois minha cabecinha estava encostada em seu peito. ela me abraçava e eu via as várias jóias que usava nos pulsos, os anéis de ouro nos dedos, as unhas pintadas de vermelho reluzente. eu estava acolhida no colo de minha mãe. um colo. é o único colo de que me lembro na infância, só aquela vez. hoje, eu sentei no chão da minha sala, sobre o tapete, com as pernas cruzadas e esperei que aquela menina entrasse pela porta. ela vinha um pouco maior, com os cabelos mais escuros e uma franja curta. ela vestia as roupas de moleque que eu vestia na meninice. entrou, veio em minha direção e logo enroscou os braços no meu pescoço. eu a abracei e a coloquei no meu colo. aquela menina franzina, meio tímida, queria meu aconchego. eu dei a ela. coloquei sua cabeça em meu peito como minha mãe fizera comigo - me lembrei de alguns cafunés que recebia; o som das unhas passando pelos cabelos, o relaxamento e os olhos cerrando na segurança da presença materna.

Fiquei com aquela menina ali, meio a embalando em meus braços, dizendo a ela que apesar de ela não ter recebido todo o afeto que lhe cabia, ainda assim ela o merecia; merecia amor, carinho e cuidado. não era culpa dela. nunca foi. ela só estava ali e por ali estar, apenas por existir ela merecia ser amada. então a abracei forte, me abracei e chorei até soluçar porque nunca tinha me ocorrido que em 35 anos eu havia recebido colo de tão poucas pessoas. colo de verdade, sem julgamentos, sem perguntas, sem moral. colo onde eu pudesse me esvair em lágrimas até me sentir seca e melhor. me senti desamparada de perceber que foram tão escassos. senti: caramba! que vida sozinha! quantas vezes sofri sozinha e não tive um colo pra me acalentar... eles demoraram pra surgir e os tenho garantidos, tenho certeza, apesar de poucos. eles me acalentaram e eu sei que também estive ali por eles.

ainda assim, me senti pequena, diante de um grande vazio, como se todas as pessoas que tivessem passado pela minha vida tivessem sumido e eu estivesse diante de um vácuo branco, sozinha, criança, perdida, deixada, infeliz. foi horrível. quisera não ter sentido, mas agora está registrado, mesmo que eu me esqueça, está aqui, em palavras, e está em mim, na minha mente.

em uma tarde febril de primavera, eu encontrei a minha menina a quem disse coisas amorosas em meio à vergonha, porque proferir palavras de amor a mim mesma, com sinceridade, ainda soa como algo... errado? não sei... preciso me convencer de que merecemos e dói, dói tanto que não seja natural, que não seja fluido; eu travo um tanto, um abraço de amor não é fácil, de compaixão genuína. me vejo, a vejo e esperamos ser enxergadas com o mesmo olhar; esperamos ser colocadas no colo e acarinhadas. um pescoço para enroscar os braços é o que queremos, mas primeiro precisamos entender que temos direito a isso.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

sobre o controle

controlar. segurar firme nas mãos e não deixar escapar. por medo do abandono, por medo de falhar, por medo. queremos sempre controlar o que não temos controle, o que está fora de nosso alcance, além de nós. o que está em nós, o que somos, o que apenas nos cabe e compete, deixamos de lado. eu deixo de lado; só por mim posso falar. meu modo de agir, de ser e de pensar. é sobre isso que tenho controle, mas os modos parecem fugidios e escapam à minha percepção. agem à revelia. me sabotam, como se eu não fosse capaz de domá-los, sendo eles eu mesma. foco no externo, fugindo de mim, tentando com isso tampar meus buracos, preenchê-los. e o faço com sucesso, mas ao contrário, enchendo-os de desassossego, de aflição, de ânsias idealizadas que me reviram o estômago e me cansam a mente. não basta perceber o todo, é preciso atuar sobre ele. é preciso se moderar, se modelar, se forjar para caber em si mesmo e ali ficar. dentro da minha forma, atuando em mim é o que posso fazer.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

sobre as casas que sou

voltei a sonhar com casas. cada sonho, uma casa diferente. às vezes elas são pequenas, de madeira, realmente necessitadas de uma reforma, mas gosto tanto delas... mudo os móveis de lugar, analiso os cômodos, vejo o que pode ser feito, transformado. tenho animais de estimação. às vezes cães, às vezes gatos. meus gatos nos sonhos são filhotes. minha filha nos sonhos não é uma adolescente; ela é pequena, minha. às vezes um bebê, que mama em meu seio. às vezes estou grávida e excitada com a expectativa de um novo ser. às vezes, meu marido e meus amigos estão comigo. às vezes estou sozinha em uma enorme casa, com grandes escadarias em caracol. eu e os fantasmas, meus fantasmas. eles não me assustam. cuidam da casa e cuidam de mim porque eu sou a casa. com grandes vitrais, largos corredores, muitas salas, móveis antigos, quartos espaçosos, cozinha acolhedora, muitos andares, telas, pinturas rebuscadas, tapetes peludos. concluo que estou grávida de mim mesma há 35 anos e ainda não me pari. que beleza é perder-se em si mesmo sabendo o caminho de volta. que tristeza é perder-se em si mesmo e só se perder, sem nunca encontrar nada além de um caminho tão longo e tortuoso que não se sabe mais como voltar, nem como se foi parar ali. que inferno é ser sua própria casa, lugar de aconchego e aprisionamento; gozo e dor. pra sempre um preso no outro, intercalando entre quem está dentro e quem está fora, sem nunca poder fugir dessa dinâmica. entre a visão de tudo o que se quer, o que se pode e o que se consegue. quero me parir, quero poder sair de mim sem ter medo de voltar.


quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Sobre o resgate diário

às vezes eu tento pensar em como seria minha vida sem você; não consigo. acho que teria me perdido em alguma das curvas do caminho, tenho como quase certo. nessa lida até aqui, segurei muitas barras, fui esteio dos outros, a equilibrada, enquanto piravam à minha volta. nunca me permiti endoidar como os via fazendo. fraquejei, me entreguei, fiquei na cama, quis desaparecer, mas não pude enlouquecer, por sua causa. hoje é você que me deixa à beira de um ataque de nervos, que me desvaria, que me enche o saco, que me perturba, mas tô aqui pra você. sempre te amando, mesmo chateada com a efervescência do que eu também já vivi. quero proteger, controlar, mas não posso mais, acho que desde que você entendeu que era gente, uma pessoa. não é minha extensão, mas é minha carne, que eu tento fazer entender os percalços pelos quais ainda vai passar, mas somos duas mentes, dois universos que nunca serão um só, como todos os outros. te amo mais do que qualquer pessoa na face da terra, e é por isso que dói. é por isso que me remoo. é porque te quero tanto bem que sofro pela falta de desapego. você ainda vai voar muito alto, tenho certeza, junto com todas as minhas certezas de mãe, mas queria que fosse mais fácil. todos os dias vejo você se aproximar de um buraco, eu grito, te puxo de volta. é exaustivo. às vezes são pequenos buracos, às vezes eles são maiores do que a água parada lá dentro permite enxergar; te puxo sempre e continuarei jogando a boia para que você se segure. a boia sou eu. e às vezes você é a minha boia. vamos trocando a boia para que nenhuma de nós afunde. mas eu nado melhor do que você, acredite. tenho mais ferramentas para não perecer. no jogo da confiança, por favor, se apoie em mim, eu te seguro, vou sempre segurar.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

sobre o que está dentro e que buscamos no que está fora

entre sentir demais e não sentir nada, o que você prefere? você acha que sente o outro ou é só você sentindo a si mesmo? se não podemos sentir o outro, não é melhor se tocar sozinho e sentir tudo? você fode com alguém ou você só fode a si mesmo com a ajuda do outro? duas pessoas transando são duas pessoas transando, uma com a outra, ou apenas transando consigo mesmas? você busca o gozo do outro ou só usa o outro pra gozar? o que você sente pelo outro, acha que sente por ele ou por si mesmo? pelo gozo de ser gostado, pela satisfação que tiramos do afeto do outro em relação a nós, porque o outro nos gosta é que gostamos do outro. não há desinteresse; ao contrário, tudo é autocentrado. eu te dou porque você me dá. se não me dá, se não me faz gozar, se não atua na minha potência, não quero. se não me come, não me consome, não me vomita e não me come de novo, pra quê? se não me devora, se não me agita, se não me deixa sem ar, pra quê? sinto demais, inferno! quisera não sentir nada, mas é mentira, porque sentir é sempre - ou quase - melhor do que não. 

sábado, 10 de agosto de 2019

sobre amores leoninos

Quando eu tinha 12 anos de idade, conheci meu amor mais duradouro até hoje. Ela é a pessoa a quem quero contar meus problemas e minhas alegrias; a pessoa que escolhi na vida pra ter assim, pra sempre, e essas pessoas existem. Temos pais, temos irmãos, temos filhos, temos amores e temos amigos. Meus verdadeiros amigos estão comigo há bons anos e sei, como ela diz, que me ajudaria até a esconder um corpo, que me confiaria sua vida e a quem eu confio, também, meu bem mais precioso. Eles surgem em algum momento, bom ou ruim, mas estão sempre ali, como ela, apesar de não atender sempre o telefone. No meio de músicas felizes e tristes, no meio do turbilhão diário, sendo madrinha de casamento, confidente, colo e consolo, ela está ali. Minha Thaz, a quem eu tanto devo, a quem eu tanto amo que nem sei dizer. Novas, velhas, doentes ou sãs, sempre estaremos juntas, meu amor. A todos os outros que amo e por quem tenho carinho, só desejo que um dia possam encontrar alguém tão especial e luminosa quanto ela. Para além de todas as riquezas, quem tem uma amizade como a nossa, tem tudo nessa vida que se poderia querer. Logo seu ano recomeça e eu espero do fundo da minha alma que seja tão maravilhoso quanto você é. Que seja de riquezas infinitas, beleza plantar, de contemplação feliz, e que você possa ser muito muito muito mais do que já é. Te amo até o fim, pra sempre.

sábado, 3 de agosto de 2019

sobre familiaridade

Tenho dormido demais, de novo. Todos os dias sonho que minha mãe volta a morar comigo ou que eu vou morar com ela. A convivência é caótica nas casas diferentes de cada sonho; o drama está sempre presente, ainda assim, vejo essa mulher mais jovem, viva, querendo fazer parte da minha vida novamente. Acho que sou eu querendo a familiaridade do instável, do colo torto, os joguetes emocionais dos quais nunca gostei, mas com que convivi por tempo demais. Meu inconsciente está buscando o familiar, o que deveria ser porto-seguro, a mãe, que preciso aprender a re-conhecer, mesmo diante de todas as faltas, teve sua presença: me acalentou e esteve comigo, mesmo que depois tenha me cobrado um preço alto de sanidade por isso. Importa que agora a filha cuida de uma filha. Com as faltas e erros, ainda me considero um sucesso no percurso todo. Ela será muito melhor do que nós duas fomos uma com a outra. Espero ter rompido dinâmicas viciadas de dor e dependência. Espero que apesar da simbiose, ela consiga se descolar de mim e ir para o mundo, livre, sem sonhar que voltamos a conviver na busca por um vínculo doente.