Quando eu era pequena - sim, preciso dizer isso; é o meu "era uma vez...", meu início de narrativa, minhas histórias geralmente começaram lá atrás e ainda estão se desenrolando... sou eu ali, tipo plantinha, crescendo e me espalhando pelo mundo -, agora volto para o que quero contar, repetindo.
Quando eu era pequena, bem, acho que antes mesmo de eu nascer, mas vou começar do ponto em que me percebi como ser pensante e consciente; tive pais disfuncionais. Por muitos anos, acreditei que meu pai era apenas ausente em virtude de sua separação da minha mãe e que ele não ligava lá muito para mim e essa falta só veio se mostrar com força na adolescência, depois da morte dele; mas a minha mãe, ela sempre esteve ali. Era assim na prática: pai ausente, mãe presente. Mãe fazia questão de dizer que pai não estava nem aí e pai não fazia nada para provar o contrário disso. Pintei o cenário.
Mesmo diante desse cenário tristinho - que faz parte da história de muitos e muitos, sabe-se lá quantos -, eu ainda não tinha noção das coisas da vida e era felizinha; não no sentido amplo e irrestrito, mas eu cultivava dentro de mim uma chaminha brilhante e vermelho-azulada de otimismo. Era bem otimista. A cara fechada da minha mãe, seu cansaço e a constância em reclamar da vida, da falta de amizades, de melhorias, aquela coisa de adultos que têm problemas, aquela vida pesada de viver mas que, como não tinha jeito, a gente tinha de se agarrar em alguma coisa e como nos agarramos!
Aí nos pegamos em Deus - naquela época, ele ainda era grafado com letra maiúscula pra mim -, mas não éramos como os crentelhos, ui, não, nunca fomos (!); é só que com vida difícil, a gente se apegava com tudo, éramos sincréticos. Vejo que minha mãe buscava na religião alguma resposta para as dificuldades, mas mais do que isso, vejo que ela buscava o fim dos problemas; ela não queria mais se preocupar com problemas, então, sei lá, pensava que se fosse às missas, rezasse e pedisse muito, as coisas ruins iriam embora, e acho que tantos outros pensavam assim também. Além disso, ter um Deus responsável por tudo de bom ou ruim que acontecesse nas nossas vidas era um tanto cômodo, porque seja como for "Deus proverá". Bastava rezar, ler a bíblia e seguir suas leis (nunca li a bíblia inteira e dos dez mandamentos, só não matei, porque o resto...).
Rolavam fases católicas em que íamos à missa aos domingos e isso era um martírio. Minha mãe, com toda sua gentileza, só que nunca, nos obrigava a ir à igreja e era um saco! Primeiro porque se não fôssemos cedo, teríamos de ficar em pé por mais de uma hora, lá no fundo da igreja lotada. Eu gostava de sentar nos primeiros bancos, porque pareciam um lugar mais privilegiado, só que nunca sentamos nos primeiros primeiros, porque parece que eles eram meio reservados para as tiazinhas que batiam ponto no recinto sagrado, de maneira que sentar no quarto ou quinto banco já era muito bom e evitava os olhares feios lançados em caso de atraso: "que mal católico, tem que chegar na missa cedo! Se chega atrasado é porque não dá a importância devida a Deus".
Chegávamos e já procurávamos o jornalzinho de ritos. Aquela coisa era o roteiro do católico feliz, porque se você não era uma carola e ia ouvir o padre falar ocasionalmente, sem um jornalzinho daqueles pra acompanhar, você ficava completamente perdido. No meio do senta-levanta, das repetições de "glória sei lá o quê" e "graças a Deus", das músicas tocadas no teclado (que coisa blergh!) e do fato de que quase nunca eu entendia tudo o que o padre falava porque o microfone dele era horrível; no meio de tudo isso que eu não entendia bem o porquê de ser daquele jeito, eu sentia que era um lance meio vazio, parecia um treinamento de cachorros. Senta, levanta, canta, toma a óstia e pede perdão, ouve música ruim e coloca uma grana na caixinha do altar, segue o livrinho, ouve historinhas de como era nos tempos remotos e bla bla bla... Daí, no meio disso tudo, havia a única parte que eu gostava, além daquela em que eu podia ficar do lado de fora da igreja, brincando de pega-pega com meu irmão enquanto lá dentro a galera rezava, era a parte da comunhão, é esse o nome? Era a parte em que todo mundo fazia de conta que se importava com o outro e dava um abraço no coleguinha do lado, mesmo nunca o tendo visto antes. Eu gostava muito disso. Era o único momento em que eu sentia uma energia se movimentando por ali, como se fosse o pequeno momento em que as pessoas se olhavam e se viam como seres humanos, pena que era meio: "chegou a hora do abraço no coleguinha. Hey, dê cá um belo abraço! Te reconheço como pessoa e pelo tempo desse abraço ou aperto de mão, sinto a pequena brasa da empatia no meu coração católico", mas aí acabava o tempo e a missa tinha que seguir, e já voltava pro que era antes: "não te conheço, nunca te vi".
Lembrei agora que também tinha a parte de rezar "a oração que nosso pai nos ensinou", daí toda a galera dava as mãos e rezava em coro; era bonito, vai dizer?! Batia uma emoção, porque de repente os adultos estavam ali, livres de tudo o que carregavam, de mãos dadas, como irmãos... ai ai...
Enfim, nessa vibe católica minha mãe me obrigou a fazer a primeira comunhão, já que eu era batizada pela religião porque meu pai era de família bem devota. Na realidade, não sei se foi por causa do meu pai ou por causa dos dois, mas com uns nove anos comecei a catequese aos sábados, sob protestos, porque era nos finais de semana, que foram feitos para aproveitar a vida não fazendo nada de útil e não para preenchê-los com compromissos religiosos. Eu não queria, mas a minha mãe disse que eu deveria fazer porque os catequistas amados e arrebanhadores de gado diziam para as crianças que quem não fazia a primeira comunhão não entrava no céu. Então eu entendi como era importante fazer isso porque, afinal de contas, não queria ficar no limbo quando morresse, junto de outras crianças pagãzinhas. Queria o céu, o paraíso.
A turma funcionava na minha escola, numa das salas de aula. Pense em quarenta pequenos demônios tocando o terror dentro da sala, era tipo isso. Quando o curso de catequese estava acabando e estávamos quase "graduados", o último passo antes da cerimônia formal era o de se confessar com o padre. Fiquei nervosa, né, porque havia algumas falas prontas pra dizer a ele, algo como: "padre, me perdoe porque pequei..." e eu não queria errar, porque imagina se antes mesmo que eu contasse meu pecado, eu não soubesse me expressar, ele não iria me perdoar mesmo! Inferno na certa! Fui, entrei na cabine de confissão, disse o que tinha de dizer e confessei meus pecados cabeludos de menina de nove anos e recebi como penitência rezar sei lá quantos "pai nosso" e umas trocentas "ave, Maria". Okay, de boa, fácil. Mas as últimas palavras do padre foram: "da próxima vez que vier se confessar, não use roupas curtas."
PORRA, eu fui com uma roupinha nova que minha mãe tinha me dado, era um shortinho e um topzinho, era um conjuntinho de lycra super comum na época, mas parecia que Deus não tinha curtido minha roupa especial para ir bater um lero com seu representante na terra; nunca mais me confessei depois daquilo e saí da igreja me questionando: a gente se confessa porque comete pecados, mas e o padre? ele não peca? por que o padre, que também deve ter seus pecados, é melhor do que eu a ponto de dizer o que eu tenho de fazer ou rezar pra me redimir dos meus erros? por que eu preciso de uma pessoa entre mim e Deus? Deus não está em toda parte? então não preciso de ninguém para interceder por mim diante dele além de mim mesma, nem preciso ir a lugar nenhum para falar com ele...
Saí toda questionadora e passei a rezar todas as noites, antes de dormir. Não era ave-nosso nem pai-Maria. Eu conversava com Deus de verdade, mas tudo bem que só eu falava porque ele nunca respondia. Mesmo assim, sentia uma conexão feliz com o divino. Começava sempre pedindo perdão por isso, isso e isso, e dava umas explicações a respeito dos "pecados" daquele dia. Depois, pedia que ele abençoasse o mundo inteiro, especialmente a minha família, meus amiguinhos, todas as pessoas do meu círculo de convivência e conhecimento, mesmo as que eu não gostava e quando eu pedia que ele abençoasse as pessoas que eu não gostava, sentia a brasinha da empatia brilhando no meu coração, do mesmo jeito que sentia na missa, era bom. Então falava com ele abertamente sobre algumas coisas que me incomodavam, que me alegravam e ia nesse lero até dormir.
Hoje eu vejo que conversar com Deus, era conversar comigo mesma; era ter a capacidade de refletir sobre as coisas que aconteciam na minha vidinha de criança e mesmo sendo uma coisa minha comigo mesma, não havia o que há hoje e é tão forte na vida adulta: o julgamento, a cobrança, a crítica. Naquela época, conseguia me despir das minhas dores e mágoas e me perdoava todas as noites, achando que conversava com Deus e que ele me abençoava, quando era eu mesma que fazia isso, quando me permitia falar e ouvir o que queria e tinha o coração aberto para novas oportunidades de errar. Era divina a relação que havia entre todos os meus eus de criança e só percebi isso agora.
Continua.
P.S.: No dia da primeira comunhão, tive que usar um sapato branco de verniz que machucava meus pés; mesmo usando meia-calça, meus calcanhares doíam; não foi legal.
quarta-feira, 4 de novembro de 2015
sexta-feira, 9 de outubro de 2015
Volver
Eu queria escrever porque achava que, escrevendo, me entenderia melhor; ah, é fato. Fica posto, registrado. Seja dor, alegria ou medo. Fica assim, pra posteridade. Pra depois reler e achar muito ruim. Pra depois reler e relembrar. Pra depois reler e me surpreender: ainda penso assim, que bonito ficou isso... Reler pra me reconhecer no papel, pra lembrar como me registro.
Me angustiava quando entrava aqui antes; não queria ver o que já tinha ido, mas olhando agora tem tantas coisas belas que mesmo o que foi dor pode ficar sem receio. Tem também um monte de bosta, daí a gente converte em rascunho.
Voltei; estou voltando...
Me angustiava quando entrava aqui antes; não queria ver o que já tinha ido, mas olhando agora tem tantas coisas belas que mesmo o que foi dor pode ficar sem receio. Tem também um monte de bosta, daí a gente converte em rascunho.
Voltei; estou voltando...
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
Feliz natal
Natal quer dizer dia do nascimento e não me refiro ao nascimento de Jesus; refiro-me ao nascimento de todos nós, que é diário. Todos os dias morremos um pouco para renascermos no próximo alvorecer.
Quando eu era pequena, acreditava em papai noel, e em todos os símbolos que permeiam esta data. Hoje, acredito simplesmente que o natal é a época em que devemos estar com quem amamos, com quem é especial para nós, com quem faz parte da nossa vida. O natal, para mim, é a celebração de mais um ano, é como se fosse o aniversário de todo mundo no mesmo dia, celebrando a vida e o amor. Que aproveitemos este dia para refletir sobre os passos dados, sobre o que estamos fazendo aqui e sobre como podemos ser melhores para os outros e para nós mesmos.
Desejo a todo mundo um dia com muito amor, paz, luz e comida! Que o universo conspire sempre positivamente para todos! <3 p="">3>
Quando eu era pequena, acreditava em papai noel, e em todos os símbolos que permeiam esta data. Hoje, acredito simplesmente que o natal é a época em que devemos estar com quem amamos, com quem é especial para nós, com quem faz parte da nossa vida. O natal, para mim, é a celebração de mais um ano, é como se fosse o aniversário de todo mundo no mesmo dia, celebrando a vida e o amor. Que aproveitemos este dia para refletir sobre os passos dados, sobre o que estamos fazendo aqui e sobre como podemos ser melhores para os outros e para nós mesmos.
Desejo a todo mundo um dia com muito amor, paz, luz e comida! Que o universo conspire sempre positivamente para todos! <3 p="">3>
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
Chama negra
Sonhei que voava. Várias vezes tive esse sonho. Começo dando saltos leves e quando me dou conta, estou flutuando com graça; é a melhor sensação do mundo. Meus braços me norteiam e consigo sentir o ar suave percorrendo todo o meu corpo. Rodopio, dou cambalhotas, mas é tudo lento e sinto cada parte de mim sendo parte da matéria que não sou capaz de sentir como tangível.
Hoje, eu alçava voo em uma praia, em um fim de tarde febril e de céu azul acinzentado. Havia algumas pessoas ali e a garota de cabelos cacheados me olhou com admiração quando eu ascendi. Eu trajava um vestido preto, na altura dos joelhos, acinturado e de saia rodada; estava descalça. Fizeram-se pequenos redemoinhos de areia aos meus pés, e então essa areia tornou-se um rastro de purpurina dourada por onde eu ia passando.
Eu dava a mão a ela, queria tocá-la e trazê-la comigo para o ar, mas não consegui porque ela deveria ficar ali.
Agora me ocorreu que houve linda junção de elementos. A água da praia, a areia que é o chão, a terra; e o ar, que era onde eu, fogo, me propagava, como uma chama negra, feliz feliz feliz. Enquanto houver ar, me propagarei.
Há pouco vi uma coruja perto da praia. Nunca tinha visto uma coruja ao acaso. Ela era pequena, graciosa; olhou-me nos olhos e voou livre em direção a uma luz. Sincronicidade.
Hoje, eu alçava voo em uma praia, em um fim de tarde febril e de céu azul acinzentado. Havia algumas pessoas ali e a garota de cabelos cacheados me olhou com admiração quando eu ascendi. Eu trajava um vestido preto, na altura dos joelhos, acinturado e de saia rodada; estava descalça. Fizeram-se pequenos redemoinhos de areia aos meus pés, e então essa areia tornou-se um rastro de purpurina dourada por onde eu ia passando.
Eu dava a mão a ela, queria tocá-la e trazê-la comigo para o ar, mas não consegui porque ela deveria ficar ali.
Agora me ocorreu que houve linda junção de elementos. A água da praia, a areia que é o chão, a terra; e o ar, que era onde eu, fogo, me propagava, como uma chama negra, feliz feliz feliz. Enquanto houver ar, me propagarei.
Há pouco vi uma coruja perto da praia. Nunca tinha visto uma coruja ao acaso. Ela era pequena, graciosa; olhou-me nos olhos e voou livre em direção a uma luz. Sincronicidade.
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
Sonho de véspera de primavera
Às vésperas de primavera tocam músicas antigas em noites de chuva. Chove muito, chove pouco, mas não para de chover. Formam-se cachoeirinhas nos morros e a água que se acumula no asfalto reflete a luz artificial dos carros, dos postes e dos semáforos coloridos que piscam como luzes de natal pela madrugada.
A aranhazinha tece sua teia e enfia-se embaixo do guarda-chuva xadrez que a acompanha para não escorregar nas pedras molhadas. Dividem cigarros de filtro caramelo, bebida amarela doce e vagabunda; sobem morro, descem morro em direção ofensiva pelo dia que começa a surgir cinza pelos confins do céu que tem sua cor favorita.
São quatro olhos, que se olham, ofegam e se culpam por viverem as flores da primavera. Depois, a monstrinha corta a teia, mostra a língua para o guarda-chuva e se enfia na quentura da multidão agitada.
A aranhazinha tece sua teia e enfia-se embaixo do guarda-chuva xadrez que a acompanha para não escorregar nas pedras molhadas. Dividem cigarros de filtro caramelo, bebida amarela doce e vagabunda; sobem morro, descem morro em direção ofensiva pelo dia que começa a surgir cinza pelos confins do céu que tem sua cor favorita.
São quatro olhos, que se olham, ofegam e se culpam por viverem as flores da primavera. Depois, a monstrinha corta a teia, mostra a língua para o guarda-chuva e se enfia na quentura da multidão agitada.
quarta-feira, 4 de setembro de 2013
Sobre a dor de existir
Quando eu era criança e minha mãe vinha me acordar todos os dias pra ir pra escola; eu fingia que estava em sono tão profundo que ela me chacoalhava com força – e eu fazia um enorme exercício pra controlar o riso -, mas não acordava. Enquanto ela tentava me despertar, eu ouvia as coisas que ela dizia: acho que vou levar essa menina no médico, não é possível que durma tanto!
Isso era só charminho, pra chamar atenção. Não gostava de dormir.
De ontem pra hoje, devo ter ficado na cama por umas doze horas.
Acho que ela sempre me acompanhou de alguma forma; antes como uma sombra pequena, mas com o passar dos anos e com o desenrolar da vida, ela veio crescendo, e me tomando. Não queria que ela me tomasse dessa forma que, diga-se de passagem, foi muito safada. Infiltrou-se na minha vida como se fosse minha personalidade, meu jeito; como se fosse o que sou e irremediável a sua cura.
Minha mãe dizia que eu era fechada e eu não entendia o porquê disso. Via a mim mesma como uma pessoa extrovertida e bem-humorada e depois de um tempo achei que a minha rabugice era fruto da convivência com ela, que sempre fora uma pessimista nata, mas que nada, a sombra já a tinha tomado também.
Não sabia o que era depressão de verdade, até a minha adolescência, quando meu pai resolveu se enforcar pra dar cabo da dor e do sentimento de solidão que o habitavam. Daí vi quão profundo era o buraco. Daí vi até onde uma pessoa poderia ir pra aplacar o que a impede de ser feliz, de ser como todo mundo que é “normal”.
Me deprimi às vezes, fiz terapia, chorei rios, me questionei, procurei sentidos; quis morrer, desaparecer, e aparecer pra viver de novo. Tive lampejos de felicidade quente e outros nem tanto, mornos como a brisa do verão que sempre vem. Senti muito e também senti nada. Talvez no fundo, eu sempre soubesse que tinha isso e, por essa razão, não quisesse ter filhos. Não queria minha semente estragada por aí, sentindo dor. Não queria ter uma extensão de mim mesma dizendo que devo continuar, a qualquer custo.
O sentimento da falta de vontade, da falta de amor, da falta de razão continuou dentro de mim, como um verme alimentado pela mentira, pelo comodismo. Vamos lá, mexa-se! Levante esse corpo gordo da inércia e faça alguma coisa! Isso é o pior. A crítica que vem de você mesmo, sua consciência gritando no vazio de você, urrando por movimento e mudança, e você é incapaz de dar voz a ela. Letargicamente, deitada em uma cama, você não quer morrer, só quer que isso passe; você só quer dormir e acordar desse pesadelo.
Já tinha ido a psiquiatras diversos e os remédios se estragavam pela metade em suas caixas. Copo meio vazio, eu sempre via. Ainda assim, é um copo, ainda assim há algo dentro dele, não importa quanto.
Resisti a tomar remédios talvez por eles não terem sido capazes de ajudar meu pai, talvez porque minha mãe tenha tomado tantos deles que tenha ficado meio afetada, talvez porque eu achasse que poderia dar fim a tudo isso por conta própria, mas não é verdade.
Semana passada, clamei por ajuda, de novo, e desta vez decidi que vou agarrá-la da forma que for. Se ela vier em comprimidos, chás, pílulas ou diabo, a tomarei. Tenho quase trinta anos e uma filha. O tempo não vai voltar pra mim, como não voltará pra ninguém nessa terra. Meu bebê é quem melhor me cuida, ficando do meu lado e me fazendo carinho pra eu dormir por mais doze horas. Não é justo que ela cuide de mim, porque meu intento nunca foi o de ser um fardo para os meus.
Meu sonho de menina sempre foi o de ser especial, de ter uma missão especial por essas bandas, mas eu nunca pensei que viver fosse tão difícil. Semana que vem volto a estudar, porque cabeça vazia é oficina do diabo, é o que dizem.
No fim de semana passado, fui acolhida por uma prima com quem não tinha contato, e o que mais nos ligava era a dor de um ente fugidio dessa vida, cada qual com o seu. A dor nos aproximou e fui com ela e uma parte de sua família para seu sítio. Lá, conversamos, dividimos nossos fardos, comi comida de mãe, me meti no mato e vi um lindo céu estrelado com direito a duas estrelas cadentes. Não dá pra fazer pedido a elas, porque enquanto elas passam pelos nossos olhos em décimos de segundos, estamos ocupados vendo toda a beleza do universo, do qual também somos feitos.
O que me acalenta é saber que eu também sou o mato, as estrelas, a chuva e os montes. Eu sou todo mundo e todo mundo também é um pouco de mim e, assim, tudo e todos, somos um só.
Isso era só charminho, pra chamar atenção. Não gostava de dormir.
De ontem pra hoje, devo ter ficado na cama por umas doze horas.
Acho que ela sempre me acompanhou de alguma forma; antes como uma sombra pequena, mas com o passar dos anos e com o desenrolar da vida, ela veio crescendo, e me tomando. Não queria que ela me tomasse dessa forma que, diga-se de passagem, foi muito safada. Infiltrou-se na minha vida como se fosse minha personalidade, meu jeito; como se fosse o que sou e irremediável a sua cura.
Minha mãe dizia que eu era fechada e eu não entendia o porquê disso. Via a mim mesma como uma pessoa extrovertida e bem-humorada e depois de um tempo achei que a minha rabugice era fruto da convivência com ela, que sempre fora uma pessimista nata, mas que nada, a sombra já a tinha tomado também.
Não sabia o que era depressão de verdade, até a minha adolescência, quando meu pai resolveu se enforcar pra dar cabo da dor e do sentimento de solidão que o habitavam. Daí vi quão profundo era o buraco. Daí vi até onde uma pessoa poderia ir pra aplacar o que a impede de ser feliz, de ser como todo mundo que é “normal”.
Me deprimi às vezes, fiz terapia, chorei rios, me questionei, procurei sentidos; quis morrer, desaparecer, e aparecer pra viver de novo. Tive lampejos de felicidade quente e outros nem tanto, mornos como a brisa do verão que sempre vem. Senti muito e também senti nada. Talvez no fundo, eu sempre soubesse que tinha isso e, por essa razão, não quisesse ter filhos. Não queria minha semente estragada por aí, sentindo dor. Não queria ter uma extensão de mim mesma dizendo que devo continuar, a qualquer custo.
O sentimento da falta de vontade, da falta de amor, da falta de razão continuou dentro de mim, como um verme alimentado pela mentira, pelo comodismo. Vamos lá, mexa-se! Levante esse corpo gordo da inércia e faça alguma coisa! Isso é o pior. A crítica que vem de você mesmo, sua consciência gritando no vazio de você, urrando por movimento e mudança, e você é incapaz de dar voz a ela. Letargicamente, deitada em uma cama, você não quer morrer, só quer que isso passe; você só quer dormir e acordar desse pesadelo.
Já tinha ido a psiquiatras diversos e os remédios se estragavam pela metade em suas caixas. Copo meio vazio, eu sempre via. Ainda assim, é um copo, ainda assim há algo dentro dele, não importa quanto.
Resisti a tomar remédios talvez por eles não terem sido capazes de ajudar meu pai, talvez porque minha mãe tenha tomado tantos deles que tenha ficado meio afetada, talvez porque eu achasse que poderia dar fim a tudo isso por conta própria, mas não é verdade.
Semana passada, clamei por ajuda, de novo, e desta vez decidi que vou agarrá-la da forma que for. Se ela vier em comprimidos, chás, pílulas ou diabo, a tomarei. Tenho quase trinta anos e uma filha. O tempo não vai voltar pra mim, como não voltará pra ninguém nessa terra. Meu bebê é quem melhor me cuida, ficando do meu lado e me fazendo carinho pra eu dormir por mais doze horas. Não é justo que ela cuide de mim, porque meu intento nunca foi o de ser um fardo para os meus.
Meu sonho de menina sempre foi o de ser especial, de ter uma missão especial por essas bandas, mas eu nunca pensei que viver fosse tão difícil. Semana que vem volto a estudar, porque cabeça vazia é oficina do diabo, é o que dizem.
No fim de semana passado, fui acolhida por uma prima com quem não tinha contato, e o que mais nos ligava era a dor de um ente fugidio dessa vida, cada qual com o seu. A dor nos aproximou e fui com ela e uma parte de sua família para seu sítio. Lá, conversamos, dividimos nossos fardos, comi comida de mãe, me meti no mato e vi um lindo céu estrelado com direito a duas estrelas cadentes. Não dá pra fazer pedido a elas, porque enquanto elas passam pelos nossos olhos em décimos de segundos, estamos ocupados vendo toda a beleza do universo, do qual também somos feitos.
O que me acalenta é saber que eu também sou o mato, as estrelas, a chuva e os montes. Eu sou todo mundo e todo mundo também é um pouco de mim e, assim, tudo e todos, somos um só.
quarta-feira, 17 de abril de 2013
Prelúdio gastronômico
Eu cozinho. Aprendi com a minha mãe. Antes dela ir trabalhar, escolhia feijão e colocava na panela de pressão; o meu trabalho era cuidar do feijão. Parece fácil, mas nem tanto, ainda mais quando você tem entre oito e dez anos e vive nos anos 90, assistindo ao programa satânico da Xuxa e esquecendo do almoço na frente da TV.
Perdi as contas de quantas vezes eu lembrava do feijão só quando já sentia o cheiro de torrado que vinha da cozinha. Era o maior desespero porque eu tinha que me livrar daquela merda, lavar a panela, escolher mais feijão, botar pra cozinhar de novo e fazer o cheiro de queimado se dissipar. Como eu só me dava conta de que ele estava queimando lá pelas 11h30, e já era quase a hora da minha mãe voltar pra casa, era praticamente certo que eu apanharia.
Acontecia o mesmo com o arroz, de quem eu deveria tomar conta com igual carinho, colocando água e esperando que ele ficasse no ponto.
E foi assim, entre panelas queimadas e chineladas que eu aprendi a cozinhar; na marra.
Tá, daí que não foi assim que eu tomei gosto pela coisa; o gosto pela coisa veio comendo as coisas, porque comida de mãe é sempre boa. Pelo menos a comida das mães de antigamente e, hoje, eu sou uma delas.
Acho uma vergonha gente que não sabe cozinhar. Acho uma vergonha gente que fala com orgulho que só sabe fazer miojo e mal e porcamente frita um ovo. Acho uma vergonha gente que acha bonito ser um zero à esquerda na cozinha. Porra, cozinhar é ser independente no sentido mais digestório da palavra; comer o que você mesmo prepara não figura independência e motivo de orgulho? Ser reconhecido por encher uma pancinha amiga com uma comidinha gostosa é o que há.
Quando fui ficando mais velha, minha mãe passou a me ensinar a cozinhar com mais didatismo; ela não me dava mais porradas, ela só me obrigava porque eu tinha que ajudar no almoço mesmo. De tanto fazer, você aprende; de tanto comer, você toma gosto. Ela me ensinou quase tudo do que eu sei. Não tem nenhum requinte, mas é muito bom. Arroz, feijão, salada de maionese, macarrão, lasanha, bifinho, strogonoff, farofa, madalena, creme de milho e vai embora... Minha cunhada também me ensinou umas coisas gostosas e gordas, que são mais gostosas ainda porque são gordas.
Claro que tudo a gente vai adaptando ao nosso gosto e ao que temos em casa na hora. Às vezes, a comida é de vadio, às vezes é mais ajeitadinha, mas o que importa é o tempero; tem que ter gosto, sabor, tem que encher a barriga e o coração. Tem dias que é foda e a comida fica uma bosta, mas nunca intragável, daí o coração não fica pleno, mas a barriga fica, o que já é alguma coisa.
E toda essa enrolação foi só pra dizer que farei um vídeo super profissional na minha cozinha industrial, dirigido pela minha filha linda e estrelado por esta que vos escreve apenas para ensinar aos leigos e amadores a receita, até então secreta, do maravilhoso creme de milho da D. Márcia.
Mas, subliminarmente, o vídeo é endereçado a minha amiga Thaís, que provavelmente cozinha muito melhor do que eu, mas que me pediu a receita do dito cujo. Já adianto que não uso medidas; é tudo na base do olhômetro e do bom senso.
Perdi as contas de quantas vezes eu lembrava do feijão só quando já sentia o cheiro de torrado que vinha da cozinha. Era o maior desespero porque eu tinha que me livrar daquela merda, lavar a panela, escolher mais feijão, botar pra cozinhar de novo e fazer o cheiro de queimado se dissipar. Como eu só me dava conta de que ele estava queimando lá pelas 11h30, e já era quase a hora da minha mãe voltar pra casa, era praticamente certo que eu apanharia.
Acontecia o mesmo com o arroz, de quem eu deveria tomar conta com igual carinho, colocando água e esperando que ele ficasse no ponto.
E foi assim, entre panelas queimadas e chineladas que eu aprendi a cozinhar; na marra.
Tá, daí que não foi assim que eu tomei gosto pela coisa; o gosto pela coisa veio comendo as coisas, porque comida de mãe é sempre boa. Pelo menos a comida das mães de antigamente e, hoje, eu sou uma delas.
Acho uma vergonha gente que não sabe cozinhar. Acho uma vergonha gente que fala com orgulho que só sabe fazer miojo e mal e porcamente frita um ovo. Acho uma vergonha gente que acha bonito ser um zero à esquerda na cozinha. Porra, cozinhar é ser independente no sentido mais digestório da palavra; comer o que você mesmo prepara não figura independência e motivo de orgulho? Ser reconhecido por encher uma pancinha amiga com uma comidinha gostosa é o que há.
Quando fui ficando mais velha, minha mãe passou a me ensinar a cozinhar com mais didatismo; ela não me dava mais porradas, ela só me obrigava porque eu tinha que ajudar no almoço mesmo. De tanto fazer, você aprende; de tanto comer, você toma gosto. Ela me ensinou quase tudo do que eu sei. Não tem nenhum requinte, mas é muito bom. Arroz, feijão, salada de maionese, macarrão, lasanha, bifinho, strogonoff, farofa, madalena, creme de milho e vai embora... Minha cunhada também me ensinou umas coisas gostosas e gordas, que são mais gostosas ainda porque são gordas.
Claro que tudo a gente vai adaptando ao nosso gosto e ao que temos em casa na hora. Às vezes, a comida é de vadio, às vezes é mais ajeitadinha, mas o que importa é o tempero; tem que ter gosto, sabor, tem que encher a barriga e o coração. Tem dias que é foda e a comida fica uma bosta, mas nunca intragável, daí o coração não fica pleno, mas a barriga fica, o que já é alguma coisa.
E toda essa enrolação foi só pra dizer que farei um vídeo super profissional na minha cozinha industrial, dirigido pela minha filha linda e estrelado por esta que vos escreve apenas para ensinar aos leigos e amadores a receita, até então secreta, do maravilhoso creme de milho da D. Márcia.
Mas, subliminarmente, o vídeo é endereçado a minha amiga Thaís, que provavelmente cozinha muito melhor do que eu, mas que me pediu a receita do dito cujo. Já adianto que não uso medidas; é tudo na base do olhômetro e do bom senso.
segunda-feira, 4 de março de 2013
A máquina
Noite dos diabos. Deito, rolo de um lado para o outro; tudo perturba. A criança que se move e faz barulho, os gatos aos pés da cama, brincando com a pequena boneca de cabelos espigados e batendo-a contra o assoalho, o calor do quarto, a quentura das cobertas que preciso usar para me sentir protegida da noite.
Na cabeça tudo vem. Tento me focar na minha respiração, que mais parece a de um animal asmático; inspiro, prendo, solto, prendo e faço de novo umas três vezes, mas os pensamentos me invadem. Penso que tenho de marcar uma consulta, penso que tenho de arrumar a casa, penso que tenho de escrever e daí penso penso na dor, penso na vida. Pensei tanto que não me apercebi quando o sono finalmente veio, uns quarenta minutos depois.
Acordo e estendo a roupa da máquina; resolvo colocar ordem no pardieiro que se tornou minha casa. Começo sempre pelas roupas, depois arrumo os livros de volta no lugar, esvazio os cinzeiros, guardo os pares de sapatos. Pego uma sacola plástica e saio pela casa recolhendo o lixo que se deposita por todos os cômodos; guardo papéis, coloco a bateria de volta na câmera fotográfica, troco a roupa de cama e tiro o pó dos móveis e objetos.
Daí, então, passo o aspirador e a vassoura em todo o apartamento, jogo o limpador cheiroso no chão e passo o pano, uma, duas vezes. Vou para o meu pesadelo maior, a cozinha. Há louça lá de duas semanas; todos os copos que tenho estão na pia e a sujeira já nem fede mais porque se liquefez. Até os vermes da lixeira da pia já morreram, secaram, reencarnaram e morreram de novo, tanto foi o tempo de dor.
Abro a geladeira, e jogo fora comidas estragadas, cristalizadas com suas colônias de bolor coloridas. Deixo-a limpa e lavo a panela de arroz que jazia no frio desde o último dia em que coloquei uma cobra dentro da minha casa. Ela arrastou-se por tudo, comeu e bebeu comigo e depois me deu o bote, mas é o que cobras fazem.
Limpo o chão, os vômitos secos de gatos mortos de fome. Limpo suas fezes na caixa de areia. Limpo minhas privadas, junto os cabelos e pentelhos do chão, tiro o ensebado dos vidros dos boxes, limpo as pias com restos de pasta de dentes e jogo fora a escova que não será mais usada.
Faço tudo isso expurgando a mim mesma, tirando de mim toda a sujeira que poderia haver, limpando minha casa e minha mente. Tentando desgastar a dor de existir com a rotina, com o mecanicismo, com o ocupar para não pensar, ocupar para fazer sentido, ocupar para poder ser.
Dói ainda, é fato, mas de tanto repetir isso, acabo por me imiscuir no meu todo. Sou meu corpo, minha mente, minha casa. E as coisas finalmente se ajeitam, até que estejam novamente uma bagunça e seja necessário mais um esforço demandante de movimento, que me tire da letargia e me lembre que mesmo que tudo pareça parado, a movimentação é contínua.
Na cabeça tudo vem. Tento me focar na minha respiração, que mais parece a de um animal asmático; inspiro, prendo, solto, prendo e faço de novo umas três vezes, mas os pensamentos me invadem. Penso que tenho de marcar uma consulta, penso que tenho de arrumar a casa, penso que tenho de escrever e daí penso penso na dor, penso na vida. Pensei tanto que não me apercebi quando o sono finalmente veio, uns quarenta minutos depois.
Acordo e estendo a roupa da máquina; resolvo colocar ordem no pardieiro que se tornou minha casa. Começo sempre pelas roupas, depois arrumo os livros de volta no lugar, esvazio os cinzeiros, guardo os pares de sapatos. Pego uma sacola plástica e saio pela casa recolhendo o lixo que se deposita por todos os cômodos; guardo papéis, coloco a bateria de volta na câmera fotográfica, troco a roupa de cama e tiro o pó dos móveis e objetos.
Daí, então, passo o aspirador e a vassoura em todo o apartamento, jogo o limpador cheiroso no chão e passo o pano, uma, duas vezes. Vou para o meu pesadelo maior, a cozinha. Há louça lá de duas semanas; todos os copos que tenho estão na pia e a sujeira já nem fede mais porque se liquefez. Até os vermes da lixeira da pia já morreram, secaram, reencarnaram e morreram de novo, tanto foi o tempo de dor.
Abro a geladeira, e jogo fora comidas estragadas, cristalizadas com suas colônias de bolor coloridas. Deixo-a limpa e lavo a panela de arroz que jazia no frio desde o último dia em que coloquei uma cobra dentro da minha casa. Ela arrastou-se por tudo, comeu e bebeu comigo e depois me deu o bote, mas é o que cobras fazem.
Limpo o chão, os vômitos secos de gatos mortos de fome. Limpo suas fezes na caixa de areia. Limpo minhas privadas, junto os cabelos e pentelhos do chão, tiro o ensebado dos vidros dos boxes, limpo as pias com restos de pasta de dentes e jogo fora a escova que não será mais usada.
Faço tudo isso expurgando a mim mesma, tirando de mim toda a sujeira que poderia haver, limpando minha casa e minha mente. Tentando desgastar a dor de existir com a rotina, com o mecanicismo, com o ocupar para não pensar, ocupar para fazer sentido, ocupar para poder ser.
Dói ainda, é fato, mas de tanto repetir isso, acabo por me imiscuir no meu todo. Sou meu corpo, minha mente, minha casa. E as coisas finalmente se ajeitam, até que estejam novamente uma bagunça e seja necessário mais um esforço demandante de movimento, que me tire da letargia e me lembre que mesmo que tudo pareça parado, a movimentação é contínua.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
Carta de suicídio
A quem interessas possa, isto aqui é uma carta de suicídio.
Sempre que escrevo um texto, escrevo e por último coloco o título, mas este já tem o título de cara porque a decisão foi pensada com cautela, como deve ser quando você pretende dar fim a um sofrimento.
Devemos pesar sempre os prós e os contras da nossa vida, ver e rever conceitos, crenças e atitudes; foi o que fiz, na verdade venho fazendo há algum tempo já. E esta decisão que cabe somente a mim deverá me livrar do sentimento de angústia e tristeza que esta vida me causa. A gente se vicia na vida que leva e quando para para pensar, para vê-la de perto, não mais como um espectador, você, então, se dá conta de que não importa quantos anos você tenha, especialmente nesta vida, você ainda age como se fosse o umbigo do mundo. Você quer ser importante, todos querem. Você quer atenção, amor, afeto, afeição, carinho. Você quer milhares de coisas boas, mas quando você percebe que o seu vizinho quer o mesmo que você, então começa uma pequena e velada guerra de egos, de inveja pela conquista alheia, pela felicidade estática do outro, pelas viagens que os outros fazem, pelo reconhecimento que têm e que esfregam na sua cara 24/7. É triste admitir que somos todos diferentes, que nossos gostos não são cem por cento iguais, que nossas crenças se esbarram, que nossas ideologias diferem, que nosso orgulho é ferido e que o centro do mundo não somos nós; até somos, mas cada um é o seu.
É difícil de acreditar que todo mundo tem problemas e que cada um sabe exatamente onde dói o seu calo, onde o peso pesa mais nas suas costas, a despeito de toda a felicidade, autoajuda, autocomiseração, e mais um monte de coisas. Somos condescendentes demais com a gente, aceitando vidas de merda cercadas de pessoas que estão cagando e andando para gente, por mais próximas que elas pareçam. Cada um quer brilhar no seu quadradinho, mesmo que seja às custas de alguém, mesmo que seja de mentira, mesmo que quando você se desconecte da porra da rede a sua vida seja uma bela miséria.
Eu nasci aqui no dia 10 de abril de 2009, e o nascimento foi tímido porque não entendia como esse mundo funcionava e ele me parecia muito complicado e pouco útil. Quando larguei a outra vida para entrar nesta que parecia ser a vida em que todos estavam encarnando, eu não fazia ideia de que ela me tomaria tão inteiramente. No começo, não interagia; só via a vida alheia se desenvolvendo através dos meus "amigos", mas logo comecei a atuar também, como todo mundo.
Eram fotos postadas - vejam como sou jovem, feliz e boa fotógrafa! -, músicas postadas - vejam o meu gosto musical e como expresso meus sentimentos através de clipes -, frases postadas - vejam como tenho opinião para tudo -, textos, fotos, frases compartilhadas - vejam quem eu sou por meio de fotos, textos e frases que não são meus, mas que expressam toda a profundidade do meu ser e a indignação que tenho perante este mundo cruel -, páginas curtidas - vejam como sou cool e descolada e sigo quem é cool, engraçado, irônico e descolado na medida que me interessa e assim foi.
Fora os "amigos". Nem tenho muitos, mas eles são colecionados baseados em critérios muito rigorosos: conheço pessoalmente; parentes de 1° a 6° grau, incluindo os de vizinhos distantes; foram meus amigos no jardim de infância; estudei com eles no ensino fundamental/médio/superior, incluindo os fdp que nem gostavam de mim; trabalhei com eles no emprego de bosta que tive; dormi com eles, arghhh; vi uma vez em uma festa de relance, mas quis adicionar... É, talvez não sejam tão rigorosos assim, mas eu tinha que adicioná-los porque empilhar gente é poder nessa vida. São contatos, pessoas que fazem volume no espaço infinito da rede.
Dessa gente toda, se tenho contato frequente com vinte delas, é um número bem razoável... As outras todas servem para eu ver que vivemos todos em uma grande mentira cibernética que consome, entedia e vicia tristemente. Hoje, posso dizer com pesar enorme que sou viciada no Facebook e que isso não me traz quase nada de bom. Fiquei viciada em querer saber da vida dos outros, sem que isso represente qualquer benefício para a minha própria.
Talvez haja pessoas que façam bom uso da ferramenta e é bem provável que este não seja o meu caso. É claro que há coisas boas como reencontrar pessoas que não víamos há anos para que elas voltem a ser nossas "amigas" apesar de nunca se preocuparem em perguntar se você está bem ou vivo, mas elas estão ali na lista, porque amigos são para essas coisas! Há os "eventos" em que você pode ir, há as denúncias que você pode compartilhar, há as fotos fofinhas que você pode curtir, há as páginas que se encaixam perfeitamente ao seu estado de espírito e um monte de outras merdas legais. Mas enquanto eu vivo a vida de mentirinha que postam aqui o tempo todo, eu deixo de viver a minha própria lá fora, fora da linha.
O que me fez pensar mais tempo sobre morrer aqui ou não foi o fato de que eu poderia de alguma maneira divulgar o meu blog e para isso, o livro de rostos serve muito bem. Acontece que é mais fácil uma foto de um gatinho dormindo de barriga para cima ter mais curtidas e compartilhamentos do que o que eu escrevo, então não é uma grande vantagem para mim. Outra coisa que também me fez refletir foram justamente as imagens que eu vejo e que me despertam um enternecimento ou dor lancinante. Essas imagens me despertam emoções muito maiores do que as criaturas que passam o dia todo postando coisas estúpidas de autoajuda, autoaceitação e autocaralhoaquatro.
Mas agora, acho que já tomei minha decisão: as imagens que tanto me agradam serão salvas no meu computador para quando eu quiser vê-las e isso é sanado.
Quanto às pessoas, bom, aquelas que amo, respeito, tenho carinho, admiração e contato frequente, elas com certeza sabem que nada muda com a morte nessa esfera, pois o telefone, e-mail, e visitas ainda existem e estão aí para serem desfrutados. Àqueles por quem nutro carinho por terem feito parte da minha vida em alguma época dela, foi bom tê-los reencontrado, mas se não nos "falamos" via chat, curtidas e compartilhamentos, é provável que isso se dê porque hoje não temos mais nada em comum além do laço de amizade virtual que nos une e esse laço há que ser cortado porque não representa evolução na minha vida.
Agradeço a quem tiver lido isso aqui até o fim e será um grande sinal de consideração da sua parte.
Tenho quase certeza que menos de dez pessoas manifestar-se-ão a respeito, o que só comprova tudo o que já disse antes.
A quem fica, vida longa. Parto dessa para uma melhor e mais real, que é a minha vida. Não acredito mais em vida após a morte, mas ela, com certeza, existe após o Facebook.
Mais uma vez, a quem interessar possa, meu nome é Karla Cristina Fernandez Philipovsky Koerich, nasci em Florianópolis, tenho 28 anos, sou de leão e sou sua parente em algum grau, estudei com você em alguma série, fui ou ainda sou sua amiga próxima, dormi com você em algum momento escroto da minha adolescência, fui sua aluna em algum ponto da minha vida estudantil, vi você em alguma festa ou você é amigo de um amigo de um amigo, talvez eu nunca tenha visto você pessoalmente, mas achei que seria legal se fôssemos amigos, enfim...
Paz e luz a todos.
Sempre que escrevo um texto, escrevo e por último coloco o título, mas este já tem o título de cara porque a decisão foi pensada com cautela, como deve ser quando você pretende dar fim a um sofrimento.
Devemos pesar sempre os prós e os contras da nossa vida, ver e rever conceitos, crenças e atitudes; foi o que fiz, na verdade venho fazendo há algum tempo já. E esta decisão que cabe somente a mim deverá me livrar do sentimento de angústia e tristeza que esta vida me causa. A gente se vicia na vida que leva e quando para para pensar, para vê-la de perto, não mais como um espectador, você, então, se dá conta de que não importa quantos anos você tenha, especialmente nesta vida, você ainda age como se fosse o umbigo do mundo. Você quer ser importante, todos querem. Você quer atenção, amor, afeto, afeição, carinho. Você quer milhares de coisas boas, mas quando você percebe que o seu vizinho quer o mesmo que você, então começa uma pequena e velada guerra de egos, de inveja pela conquista alheia, pela felicidade estática do outro, pelas viagens que os outros fazem, pelo reconhecimento que têm e que esfregam na sua cara 24/7. É triste admitir que somos todos diferentes, que nossos gostos não são cem por cento iguais, que nossas crenças se esbarram, que nossas ideologias diferem, que nosso orgulho é ferido e que o centro do mundo não somos nós; até somos, mas cada um é o seu.
É difícil de acreditar que todo mundo tem problemas e que cada um sabe exatamente onde dói o seu calo, onde o peso pesa mais nas suas costas, a despeito de toda a felicidade, autoajuda, autocomiseração, e mais um monte de coisas. Somos condescendentes demais com a gente, aceitando vidas de merda cercadas de pessoas que estão cagando e andando para gente, por mais próximas que elas pareçam. Cada um quer brilhar no seu quadradinho, mesmo que seja às custas de alguém, mesmo que seja de mentira, mesmo que quando você se desconecte da porra da rede a sua vida seja uma bela miséria.
Eu nasci aqui no dia 10 de abril de 2009, e o nascimento foi tímido porque não entendia como esse mundo funcionava e ele me parecia muito complicado e pouco útil. Quando larguei a outra vida para entrar nesta que parecia ser a vida em que todos estavam encarnando, eu não fazia ideia de que ela me tomaria tão inteiramente. No começo, não interagia; só via a vida alheia se desenvolvendo através dos meus "amigos", mas logo comecei a atuar também, como todo mundo.
Eram fotos postadas - vejam como sou jovem, feliz e boa fotógrafa! -, músicas postadas - vejam o meu gosto musical e como expresso meus sentimentos através de clipes -, frases postadas - vejam como tenho opinião para tudo -, textos, fotos, frases compartilhadas - vejam quem eu sou por meio de fotos, textos e frases que não são meus, mas que expressam toda a profundidade do meu ser e a indignação que tenho perante este mundo cruel -, páginas curtidas - vejam como sou cool e descolada e sigo quem é cool, engraçado, irônico e descolado na medida que me interessa e assim foi.
Fora os "amigos". Nem tenho muitos, mas eles são colecionados baseados em critérios muito rigorosos: conheço pessoalmente; parentes de 1° a 6° grau, incluindo os de vizinhos distantes; foram meus amigos no jardim de infância; estudei com eles no ensino fundamental/médio/superior, incluindo os fdp que nem gostavam de mim; trabalhei com eles no emprego de bosta que tive; dormi com eles, arghhh; vi uma vez em uma festa de relance, mas quis adicionar... É, talvez não sejam tão rigorosos assim, mas eu tinha que adicioná-los porque empilhar gente é poder nessa vida. São contatos, pessoas que fazem volume no espaço infinito da rede.
Dessa gente toda, se tenho contato frequente com vinte delas, é um número bem razoável... As outras todas servem para eu ver que vivemos todos em uma grande mentira cibernética que consome, entedia e vicia tristemente. Hoje, posso dizer com pesar enorme que sou viciada no Facebook e que isso não me traz quase nada de bom. Fiquei viciada em querer saber da vida dos outros, sem que isso represente qualquer benefício para a minha própria.
Talvez haja pessoas que façam bom uso da ferramenta e é bem provável que este não seja o meu caso. É claro que há coisas boas como reencontrar pessoas que não víamos há anos para que elas voltem a ser nossas "amigas" apesar de nunca se preocuparem em perguntar se você está bem ou vivo, mas elas estão ali na lista, porque amigos são para essas coisas! Há os "eventos" em que você pode ir, há as denúncias que você pode compartilhar, há as fotos fofinhas que você pode curtir, há as páginas que se encaixam perfeitamente ao seu estado de espírito e um monte de outras merdas legais. Mas enquanto eu vivo a vida de mentirinha que postam aqui o tempo todo, eu deixo de viver a minha própria lá fora, fora da linha.
O que me fez pensar mais tempo sobre morrer aqui ou não foi o fato de que eu poderia de alguma maneira divulgar o meu blog e para isso, o livro de rostos serve muito bem. Acontece que é mais fácil uma foto de um gatinho dormindo de barriga para cima ter mais curtidas e compartilhamentos do que o que eu escrevo, então não é uma grande vantagem para mim. Outra coisa que também me fez refletir foram justamente as imagens que eu vejo e que me despertam um enternecimento ou dor lancinante. Essas imagens me despertam emoções muito maiores do que as criaturas que passam o dia todo postando coisas estúpidas de autoajuda, autoaceitação e autocaralhoaquatro.
Mas agora, acho que já tomei minha decisão: as imagens que tanto me agradam serão salvas no meu computador para quando eu quiser vê-las e isso é sanado.
Quanto às pessoas, bom, aquelas que amo, respeito, tenho carinho, admiração e contato frequente, elas com certeza sabem que nada muda com a morte nessa esfera, pois o telefone, e-mail, e visitas ainda existem e estão aí para serem desfrutados. Àqueles por quem nutro carinho por terem feito parte da minha vida em alguma época dela, foi bom tê-los reencontrado, mas se não nos "falamos" via chat, curtidas e compartilhamentos, é provável que isso se dê porque hoje não temos mais nada em comum além do laço de amizade virtual que nos une e esse laço há que ser cortado porque não representa evolução na minha vida.
Agradeço a quem tiver lido isso aqui até o fim e será um grande sinal de consideração da sua parte.
Tenho quase certeza que menos de dez pessoas manifestar-se-ão a respeito, o que só comprova tudo o que já disse antes.
A quem fica, vida longa. Parto dessa para uma melhor e mais real, que é a minha vida. Não acredito mais em vida após a morte, mas ela, com certeza, existe após o Facebook.
Mais uma vez, a quem interessar possa, meu nome é Karla Cristina Fernandez Philipovsky Koerich, nasci em Florianópolis, tenho 28 anos, sou de leão e sou sua parente em algum grau, estudei com você em alguma série, fui ou ainda sou sua amiga próxima, dormi com você em algum momento escroto da minha adolescência, fui sua aluna em algum ponto da minha vida estudantil, vi você em alguma festa ou você é amigo de um amigo de um amigo, talvez eu nunca tenha visto você pessoalmente, mas achei que seria legal se fôssemos amigos, enfim...
Paz e luz a todos.
domingo, 3 de fevereiro de 2013
A sorte
Quando você vive uma infância no meio de mudanças e incertezas de vários tipos, o que você mais quer é saber do futuro; mas não é só saber dele, você quer que ele seja doce, cheio de coisas boas, sólidas e felizes. Acho que foi daí que surgiu o fascínio pelas cartas, oráculos e afins.
A curiosidade,de fato, não brotou de mim sozinha; minha mãe ia a cartomantes e até pagava caro para ouvir o que elas tinham a lhe dizer e, parecia um preço razoável, já que sempre saía dos lugares com alguns bons agouros e outros nem tanto, pois quem já viu a sua sorte sabe bem que tem sempre alguém invejoso que aparece nas cartas; alguém quer roubar o seu dinheiro, o seu homem ou quer lhe passar para trás. A gente vive como consulente e as cartas nos prometem viagens, ganhos inesperados, perdas repentinas e amores duradouros, e acreditamos nisso porque se o nosso presente já é um mar de dificuldades e incertezas, cremos então que o futuro nos reserva algo muito melhor e, com isso, vamos engolindo em seco os obstáculos duros até chegar ao dia da recompensa prevista.
D. Avani era avó de um aluno da minha mãe na escola e era ela que pagava as mensalidades do neto só lendo cartas para pessoas curiosas e em apuros. Era uma senhora magra, de cabelos curtos meio grisalhos e que ia até a nossa casa para ver o nosso futuro. Ela não via a sorte em baralhos ciganos ou coisas desse tipo; via tudo em uma baralho de cartas mesmo, desses que as pessoas jogam fazendo apostas e que só depois de muitos anos descobri que foi o tarô que deu origem a ele e não o contrário. O baralho dela era um grande maço de cartas gastas e gordas de tanto manuseio. Ela lia e via e interpretava. As cartas não mentem é o que dizem. Minha mãe gostava tanto das previsões que vira sua sorte com a senhora umas três ou quatro vezes em menos de um ano. A mulher era boa e recomendada até para familiares com anseios casadoiros. Viu até a minha sorte e olhe que na época eu tinha onze anos e um futuro em branco, exceto pelo fato dela ver que em breve eu ficaria mocinha. Ela previu isso para um ano novo e me alertou para ficar atenta e não sujar roupas brancas.... Minha menarca veio pelos idos de março do outro ano, se não me engano, depois de chegar em casa da escola achando que estava com dor de barriga ao invés de cólicas.
Queríamos tanto saber do futuro, que minha mãe via o dela pelo telefone, porque minha tia tirava as cartas para ela a quase dois mil quilômetros de distância, pagando interurbanos caros, mas que rendiam dias de alívio pelo futuro.
Não sei quando foi, mas minha tia, a quem eu chamava de tia bruxa, ensinou minha mãe a ver as cartas de Lenormand e logo ela me ensinou também e víamos quase todos os dias, como forma de solucionar os nossos problemas. O tarô era uma baliza, nos mostrava o que viria até nós e quem eram as pessoas que estavam ao nosso redor. Ficava guardado na sua própria caixinha e era sobre a cama que dormíamos que o futuro repousava. De pernas cruzadas sobre o colchão ondulado, íamos tirando as cartas, fazendo perguntas, tirando dúvidas e tendo certezas.
A sorte que eu via para ela e a que ela via para mim não era das mais certeiras, mas quando víamos para pessoas de fora, acertávamos muitas coisas. Eu, com doze ou treze anos, fiz amizade com a dona de uma loja de produtos esotéricos do shopping da cidade onde morávamos e lá, comecei a ver a sorte dela e de clientes da loja. Cobrava cinco reais e elas gostavam tanto dos resultados que, em uma semana, cheguei a ganhar quarenta e cinco reais pelos meus serviços. Era aquela coisa: embaralha, corta, embaralha de novo, faz montinhos e vai virando as cartas, de maneira que o panorama se formava em volta da carta da consulente e a gente já sabia se vinham coisas boas ou não.
Nisso, os anos se passaram. Nos consolávamos com as nossas previsões, mas adorávamos as dos profissionais. Eram filas de espera e conversa com outros que esperavam como nós a dizer que o fulano era muito bom, que viu isso, que adivinhou aquilo e transbordávamos de esperanças para saber de toda a glória que nos aguardava.
Lembro de uma famosa D. Lola em que minha mãe fora e que era a cartomante preferida dos políticos da cidade; disse ela que eu engravidaria com quatorze anos e que seria uma grande decepção para a minha mãe. Ela quase acertou, não fossem por quatro anos de diferença. Se acreditasse em todas as cartomantes em que já fui, teria tido uns cinco filhos, porque elas sempre viam muitos deles. Fora aquelas que além de verem as cartas, indicavam banhos com ervas e coisas do tipo. Minha mãe fazia, porque olho grande sempre tinha, ela achava. No mundo da sorte, estamos sempre rodeados por amigos da onça, mas acho que é em qualquer mundo mesmo...
Então, de sortista em sortista, de baralho em baralho, fomos vivendo os anos. Eu já tinha o meu próprio e os amigos me pediam que "tirasse" a sua sorte, e eu dizia que não tirava a sorte de ninguém, via.
Alguns anos atrás, fui à casa de uma senhora que atendia no seu quarto, sobre a sua cama, da mesma maneira que minha e mãe e eu fazíamos. Nunca tinha visto a mulher mais gorda na vida e quando eu fui cortar o monte de cartas ela pegou na minha mão e disse: "Você tem o dom" e eu fiquei de boca aberta porque não mencionei qualquer coisa e ela sabia que eu via cartas. De tudo o que ela me disse, nada deu em alguma coisa, mas só pelo que ela falou sem ver carta alguma, fiquei besta com a mulher. Nunca acreditei que era guiada por alguma entidade ou coisa parecida. Muitas cartomantes se dizem guiadas por espíritos, entidades, ciganas e o diabo a quatro, mas eu sempre segui somente as cartas e o que eu achava que elas queriam dizer.
De uns anos para cá li mais a respeito, aprendi algumas coisas e faz muito tempo que não jogo meu tarô cigano. Até fiz um curso uns dois anos atrás, e a senhora que o ministrava foi outra que disse que eu sei jogar. Ela e uma quiromante me disseram que há uma cigana perto de mim, mas nunca acreditei. Aliás, já acreditei em muitas coisas; hoje estou tão cética com quase tudo que me sinto chata e presa ao mundo real. Pessoas próximas a mim já me falaram que eu deveria voltar a ver a sorte das pessoas, que deveria desenvolver esse lado oculto, que muitos outros que conheci diziam que era um lado ruim, que isso era macumba, bruxaria e sempre achei graça.
Meu mapa astral diz que eu devo estudar essas coisas, pois minha intuição é muito forte e meu lado sensitivo tem que ser explorado, mas como disse, já não acredito mais.
Hoje vejo o baralho não como um oráculo do futuro, mas como um oráculo que mostra o que temos dentro de nós, expressando através das cartas as nossas angústias, perspectivas e desejos. O baralho aflora nosso interior e deixa mais claro aquilo que não entendemos acerca do que nos é mais profundo.
A sorte, o futuro, as reviravoltas da vida estão todos no próximo segundo e nos que vêm depois dele.
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
pequenina fábula da leoa que virou pulga
Deveria ser uma leoa, de juba bem cuidada e esvoaçante;
daquelas com andar elegante, porte de rainha e fino trato. Deveria ser daquelas
leoas que rugem alto sem perder a serenidade ao olhar para a savana; daquelas que
se movem feito gatinhas para dar grandes botes feito cobras. Deveria ser uma
leoa típica como as outras que nascem no inverno dos trópicos, na época das
férias da escola e do frio convidativo. Deveria ser como as leoas que são
agressivas e generosas; daquelas que olham para o sol, seu regente, e conseguem
se ver nas labaredas do fogo astral. Deveria ser magnânima e dourada, como são
as leoas, felinas, leoninas.
Deveria ser tudo isso, mas se vê apenas como um bichinho;
bem pequenino. Vê-se insignificante, com pernas cheias de teias de aranha, que
crescem e formam hematomas. Suas fuças são manchadas e com algumas rugas e
pelos que não deveriam estar ali; a pele é flácida e sob ela se encontra
amarela camada de gordura que não se queima. Acha que é uma preguiça, mas
preguiças são graciosas e têm expressão risonha. Além disso, esses animais
preguiçosos são grandes perto dela, que é como um tisco.
Fácil de ser pisada, magoada, trapaceada, feita de boba. Apesar
de ver a si mesma como um quase nada, ainda chora quando vê um animalzinho
dando a mão para outro que precisa. Ela já foi grande feito pessoa, mas foi se
esfacelando com o tempo, até só sobrar o pedacinho. Ela já foi leoa brilhante
com todos os seus defeitos e virtudes, mas é que agora sobraram só os defeitos;
uma amargurinha aqui, uma grosseriazinha acolá e nisso, ela perdeu todo o
brilho que em um dia tão distante já tivera.
A savana foi crescendo e muitos outros animais surgiram e
todos eles pareciam mais felizes do que ela. Todos eles parecem mais felizes do
que ela, filha de um touro teimoso e ligado a terra e de uma
carangueja que anda para os lados e ligada ao mar - ao mais profundo dele, onde ficam as emoções que todos escondemos na nossa essência...
É filha de terra e água, mas não é ela lama suja; é faísca oscilante que quer vida, que quer muito mais do que só fazer coçar como todas as outras pulgas, mas, triste, sente-se pequenina feito uma pulga vulgar que passa pelo mundo despercebida.
É filha de terra e água, mas não é ela lama suja; é faísca oscilante que quer vida, que quer muito mais do que só fazer coçar como todas as outras pulgas, mas, triste, sente-se pequenina feito uma pulga vulgar que passa pelo mundo despercebida.
sábado, 29 de setembro de 2012
Balão leve e cheio
Nu, vem ele flutuando na nuvem escura, trazendo chuva para a tarde de prima Vera.
Escrevi esse versinho anteontem, à tarde, na cama, enquanto olhava pela janela as nuvens que passavam no céu. Acho que as nuvens mais bonitas são aquelas meio negras que passam em frente ao sol, tapando-o e deixando um branco muito glacial nas suas bordas. Quase me cegam, mas não tem como não olhar.
Olhei pela janela e quis escrever; não foi grande coisa, mas na hora em que li, fiquei feliz. Sabe feliz? Daí eu disse que escrever me deixava feliz, e foi como uma brasinha brilhando vermelha dentro do meu coração apertado. Eu senti que precisava escrever, seja lá o que fosse, mas não saiu mais nada.
Ontem, passei quase o dia todo dormindo, sonhando, e quando acordava sentia o corpo todo doer de ficar tanto tempo deitada. Uma insatisfação gigante dentro de mim, que me ocupa toda. Sinto que estou cada dia mais vazia, cada dia mais distante de ser quem eu já fui.
Acho que escrever me alivia, mas acho também que gosto muito de sofrer porque evito escrever com todas as minhas forças. Não tenho nada pra dizer pra ninguém, mas talvez só quem precise ouvir alguma coisa seja eu mesma, sobre mim mesma, sobre o que faço comigo todos os dias, levando essa vida nas costas que de tão vazia se torna um balão pesado de coisas ruins.
Eu já fui feliz, mas perdi a pista desse caminho aqui dentro. Uma dor, um peso gigante de angústia e ansiedade que não sei onde enfiar. Ando chorona, mais que de costume. Me entupindo de comida, novela, fofocas sobre pessoas estúpidas e filmes de terror péssimos.
Não fazem mesmo mais filmes de terror como antigamente, mas eu insisto em assisti-los, mesmo sabendo que serão uma porra de uma piada. Não sinto prazer de verdade com coisa nenhuma. Faço o que devo, enrolo no que posso e vou levando com a barriga que fica cada dia maior. Já disse que estou me enchendo de coisas externas pra tentar aplacar o me faz sentir vazia, né?
Só queria saber qual é o meu problema. Será que algum remédio me resolve? Será que uma surra dá conta de mim? Será que com o tempo passa ou vai piorar? Será? E choro.
Passei a tarde toda chorando pro meu analista e ele disse que não tinha problema d'eu chorar ali com ele, mas nem lencinhos ele tem pra oferecer, então fico toda ranhenta na sessão, mas o que importa é que posso chorar. Será que é só dor que tem em mim? Tem que ser muita dor pra saírem tantas lágrimas, mas se alguém me pergunta por que eu tô chorando, não sei dizer.
Quase explodo de tanto sentir tudo e não sentir nada. Vida de merda a que eu carrego dentro de mim; e pode ser que amanhã tudo mude e que eu não sinta mais nada disso e esteja dando pulinhos por aí.
Escrevi esse versinho anteontem, à tarde, na cama, enquanto olhava pela janela as nuvens que passavam no céu. Acho que as nuvens mais bonitas são aquelas meio negras que passam em frente ao sol, tapando-o e deixando um branco muito glacial nas suas bordas. Quase me cegam, mas não tem como não olhar.
Olhei pela janela e quis escrever; não foi grande coisa, mas na hora em que li, fiquei feliz. Sabe feliz? Daí eu disse que escrever me deixava feliz, e foi como uma brasinha brilhando vermelha dentro do meu coração apertado. Eu senti que precisava escrever, seja lá o que fosse, mas não saiu mais nada.
Ontem, passei quase o dia todo dormindo, sonhando, e quando acordava sentia o corpo todo doer de ficar tanto tempo deitada. Uma insatisfação gigante dentro de mim, que me ocupa toda. Sinto que estou cada dia mais vazia, cada dia mais distante de ser quem eu já fui.
Acho que escrever me alivia, mas acho também que gosto muito de sofrer porque evito escrever com todas as minhas forças. Não tenho nada pra dizer pra ninguém, mas talvez só quem precise ouvir alguma coisa seja eu mesma, sobre mim mesma, sobre o que faço comigo todos os dias, levando essa vida nas costas que de tão vazia se torna um balão pesado de coisas ruins.
Eu já fui feliz, mas perdi a pista desse caminho aqui dentro. Uma dor, um peso gigante de angústia e ansiedade que não sei onde enfiar. Ando chorona, mais que de costume. Me entupindo de comida, novela, fofocas sobre pessoas estúpidas e filmes de terror péssimos.
Não fazem mesmo mais filmes de terror como antigamente, mas eu insisto em assisti-los, mesmo sabendo que serão uma porra de uma piada. Não sinto prazer de verdade com coisa nenhuma. Faço o que devo, enrolo no que posso e vou levando com a barriga que fica cada dia maior. Já disse que estou me enchendo de coisas externas pra tentar aplacar o me faz sentir vazia, né?
Só queria saber qual é o meu problema. Será que algum remédio me resolve? Será que uma surra dá conta de mim? Será que com o tempo passa ou vai piorar? Será? E choro.
Passei a tarde toda chorando pro meu analista e ele disse que não tinha problema d'eu chorar ali com ele, mas nem lencinhos ele tem pra oferecer, então fico toda ranhenta na sessão, mas o que importa é que posso chorar. Será que é só dor que tem em mim? Tem que ser muita dor pra saírem tantas lágrimas, mas se alguém me pergunta por que eu tô chorando, não sei dizer.
Quase explodo de tanto sentir tudo e não sentir nada. Vida de merda a que eu carrego dentro de mim; e pode ser que amanhã tudo mude e que eu não sinta mais nada disso e esteja dando pulinhos por aí.
quarta-feira, 8 de agosto de 2012
O caminho da barriga
Não consigo dormir e isso é raro. Me sinto mal quando não consigo, porque isso é sinal de que já dormi demais horas antes; demais até pra mim que durmo como ursos hibernam no inverno frio. É ruim porque sinto que não estou indo pra onde deveria ir, pro meu caminho, pra profusão de símbolos que transbordam soltos na minha cabeça.
Quando eu era mais nova, com alguma regularidade, sonhava com ruas muito íngremes, tanto que me davam náuseas; às vezes eu tentava subi-las com um carro, mas o carro andava pra trás e eu entrava em desespero. Deviam ser os tempos fodidos da época. Agora, o que me invade com frequência são os sonhos com estradas, muitas delas. Rodovias, caminhos-movimentados-sem-fim. Ando por marginais, vias-expressas, ladeiras e faço muitos retornos. Acho que isso quer dizer que ainda estou buscando o meu caminho, aquele feito sob medida pra mim, pro que eu busco e ainda não sei onde vai dar.
Em muitos deles eu paro em grandes supermercados e faço compras. Adoro mercados e posso passar horas pelos corredores. Os grandes, que têm tudo, são os meus favoritos. Dentro deles me sinto amparada, porque sempre gostei de me imaginar em cenários apocalípticos e os mercados me dão a sensação de que vou encontrar tudo o que preciso ali. Não se preocupe, aqui você está segura, eu penso. Acho que nisso está também o meu interior mulherzinha, dona-de-casa. Muitas pessoas odeiam ir ao mercado, acham verdadeiro suplício. Eu poderia ser a compradora oficial das famílias atarefadas, acho terapêutico um bom supermercado.
Acho também que gosto tanto hoje porque quando era menor, lá naquela cidade onde cresci, o mercado não era lá muito sortido e mesmo quando era, nem sempre podíamos comprar tudo o que era gostoso. Deve ser lombriga remanescente de tempos difíceis que ainda me habita. Acho que por isso sou gorda hoje; meu inconsciente ainda pensa que pode faltar, então quando surge a possibilidade de comer um bom prato, de gordura principalmente, ele deve ser bem servido, porque nunca se sabe quando veremos um igual novamente. A necessidade primordial sempre fala mais alto, mesmo quando já está sendo suprida.
Nisso, o lado com que pouco falo, vai falando comigo. Me deixa no corpo a mensagem do medo da falta e nos sonhos a busca pelo caminho que ainda não encontrei.
Quando eu era mais nova, com alguma regularidade, sonhava com ruas muito íngremes, tanto que me davam náuseas; às vezes eu tentava subi-las com um carro, mas o carro andava pra trás e eu entrava em desespero. Deviam ser os tempos fodidos da época. Agora, o que me invade com frequência são os sonhos com estradas, muitas delas. Rodovias, caminhos-movimentados-sem-fim. Ando por marginais, vias-expressas, ladeiras e faço muitos retornos. Acho que isso quer dizer que ainda estou buscando o meu caminho, aquele feito sob medida pra mim, pro que eu busco e ainda não sei onde vai dar.
Em muitos deles eu paro em grandes supermercados e faço compras. Adoro mercados e posso passar horas pelos corredores. Os grandes, que têm tudo, são os meus favoritos. Dentro deles me sinto amparada, porque sempre gostei de me imaginar em cenários apocalípticos e os mercados me dão a sensação de que vou encontrar tudo o que preciso ali. Não se preocupe, aqui você está segura, eu penso. Acho que nisso está também o meu interior mulherzinha, dona-de-casa. Muitas pessoas odeiam ir ao mercado, acham verdadeiro suplício. Eu poderia ser a compradora oficial das famílias atarefadas, acho terapêutico um bom supermercado.
Acho também que gosto tanto hoje porque quando era menor, lá naquela cidade onde cresci, o mercado não era lá muito sortido e mesmo quando era, nem sempre podíamos comprar tudo o que era gostoso. Deve ser lombriga remanescente de tempos difíceis que ainda me habita. Acho que por isso sou gorda hoje; meu inconsciente ainda pensa que pode faltar, então quando surge a possibilidade de comer um bom prato, de gordura principalmente, ele deve ser bem servido, porque nunca se sabe quando veremos um igual novamente. A necessidade primordial sempre fala mais alto, mesmo quando já está sendo suprida.
Nisso, o lado com que pouco falo, vai falando comigo. Me deixa no corpo a mensagem do medo da falta e nos sonhos a busca pelo caminho que ainda não encontrei.
terça-feira, 7 de agosto de 2012
Te direi quem és
Dizem ainda hoje, mas isso já vem há alguns milhares de anos, que gatos são seres muito especiais; neutralizadores de más energias, deuses, protetores, superiores e afins. Apareceram na minha vida quando eu ainda era muito pequena e, mantêm-se nela até hoje, mas agora vistos sob uma ótica que minha cabeça sempre avoada nunca fora capaz de perceber, apesar da convivência diária com os pelos e miados... Eis que certa pessoa me diz um dia que os gatos que tenho aqui em casa não são nada além de um alter-ego meu; na verdade, dois; Marte e Marta, de acordo com ele são a representação dos meus lados masculino e feminino, bem aqui, passeando pela casa e esfregando o que sou na minha cara todos os dias, por quase dois anos, sem que percebesse que eles são como eu.
Depois do choque, vi como as coisas se encaixavam.
Marte, meu lado masculino, deus da guerra, colérico, negro como o que não tem fim, mal-humorado como os velhos mal-amados, impaciente, gordo e sedentário, faminto e calado, vingativo e isolado; destemperado, retraído e nunca muito acessível a ser amado, tocado e acolhido, a menos que parta dele próprio a vontade de assim o ser. Ele dorme o dia todo, como todos os gatos, mas seu sono imiscui-se ao meu, tornando a nossa fuga muito mais agradável através de seus pelos pretos que se soltam sobre o chão, sobre os tapetes e as cobertas.
Marta sou eu feminina e, mesmo nisso, há o Marte junto. Curioso é que pesquisando sobre Marta, descobri que esse é o nome de um animalzinho muito simpático, parente das doninhas e que faz parte do gênero Martes (!) e, vejam, vocês, assim como a parente selvagem que é curiosa e facilmente atraída por qualquer coisa que brilhe, assim também sou eu; do espalhafato, do brilho, da purpurina. Além desse bichinho, Marta também é um nome bíblico e de acordo com algumas fontes, quer dizer dona de casa, senhora da casa e esse significado não poderia ser mais propício para nós duas.
A gata é delgada, rajada e elegante. Tem olhos brilhantes e miado entusiasta. Anda pela casa atrás de todo mundo, especialmente da Ana, no que ouso dizer que a gata a vê como uma filha também, porque está sempre atenta ao que a menina faz. Além disso, fala como uma comadre sem papas na língua. Às, vezes, estamos nós humanos conversando, quando surge alguma pergunta derradeira, a qual a felina metida sempre responde com um sonoro NÃO. Ela manda e desmanda, sempre afofando as cobertas, subindo nos meus ombros como um papagaio de pirata, ronronando nos pés da cama, exigindo comida nova e água fresca, confortando com seus olhos de ouro nossas cabeças que carregam o mundo dentro de si.
Ela é simpática, sociável, leve e preocupada com o bem-estar de tudo o que a cerca. Se me deprimo, durmo; se durmo, sei que logo eles virão para me acompanhar na solidão. Se bagunçamos a casa, logo estão eles juntos a comer caixas, derrubar água e a correr sem parar com suas unhas tilintando pelo assoalho e tornando nossas noites ainda mais miseráveis. Se há portas fechadas, mandam os dois peludos que elas sejam abertas, aos seus interesses e necessidades. Se há frio, aconchegam-se em nossos colos ao seu bel prazer e se estamos receptivos ou se percebem a falta em nossos olhos, vêm como seres cheios de luz e compaixão e nos presenteiam com carinhos amoráveis de cabeça contra toda a nossa matéria. Liquefazem-se em pelos macios, como mãos aprazíveis que nos tocam não só a pele, mas também o coração, enchendo-nos de amor desinteressado, que é o amor mais puro que há, já sabem disso os humanos.
Depois do choque, vi como as coisas se encaixavam.
Marte, meu lado masculino, deus da guerra, colérico, negro como o que não tem fim, mal-humorado como os velhos mal-amados, impaciente, gordo e sedentário, faminto e calado, vingativo e isolado; destemperado, retraído e nunca muito acessível a ser amado, tocado e acolhido, a menos que parta dele próprio a vontade de assim o ser. Ele dorme o dia todo, como todos os gatos, mas seu sono imiscui-se ao meu, tornando a nossa fuga muito mais agradável através de seus pelos pretos que se soltam sobre o chão, sobre os tapetes e as cobertas.
Marta sou eu feminina e, mesmo nisso, há o Marte junto. Curioso é que pesquisando sobre Marta, descobri que esse é o nome de um animalzinho muito simpático, parente das doninhas e que faz parte do gênero Martes (!) e, vejam, vocês, assim como a parente selvagem que é curiosa e facilmente atraída por qualquer coisa que brilhe, assim também sou eu; do espalhafato, do brilho, da purpurina. Além desse bichinho, Marta também é um nome bíblico e de acordo com algumas fontes, quer dizer dona de casa, senhora da casa e esse significado não poderia ser mais propício para nós duas.
A gata é delgada, rajada e elegante. Tem olhos brilhantes e miado entusiasta. Anda pela casa atrás de todo mundo, especialmente da Ana, no que ouso dizer que a gata a vê como uma filha também, porque está sempre atenta ao que a menina faz. Além disso, fala como uma comadre sem papas na língua. Às, vezes, estamos nós humanos conversando, quando surge alguma pergunta derradeira, a qual a felina metida sempre responde com um sonoro NÃO. Ela manda e desmanda, sempre afofando as cobertas, subindo nos meus ombros como um papagaio de pirata, ronronando nos pés da cama, exigindo comida nova e água fresca, confortando com seus olhos de ouro nossas cabeças que carregam o mundo dentro de si.
Ela é simpática, sociável, leve e preocupada com o bem-estar de tudo o que a cerca. Se me deprimo, durmo; se durmo, sei que logo eles virão para me acompanhar na solidão. Se bagunçamos a casa, logo estão eles juntos a comer caixas, derrubar água e a correr sem parar com suas unhas tilintando pelo assoalho e tornando nossas noites ainda mais miseráveis. Se há portas fechadas, mandam os dois peludos que elas sejam abertas, aos seus interesses e necessidades. Se há frio, aconchegam-se em nossos colos ao seu bel prazer e se estamos receptivos ou se percebem a falta em nossos olhos, vêm como seres cheios de luz e compaixão e nos presenteiam com carinhos amoráveis de cabeça contra toda a nossa matéria. Liquefazem-se em pelos macios, como mãos aprazíveis que nos tocam não só a pele, mas também o coração, enchendo-nos de amor desinteressado, que é o amor mais puro que há, já sabem disso os humanos.
terça-feira, 15 de maio de 2012
Da independência à proclamação da república
Tudo começou quando meus pais se separaram. Fomos lá para o fim da rua, morar no último prédio que havia. Isso foi no tempo em que eu tinha muitos vizinhos amigos e um hamster suicída; tempo em que eu morria de medo de dormir de frente para a parede e em que a minha mãe preparava bacon frito como aperitivo para mim e meu irmão, e nisso, lá se vão vinte e um anos.
Depois, fomos para a avenida principal, no tempo em que o mercado ficava ali, do lado do prédio em que fomos morar, e lembro até hoje da aventura de ter ido ao mercado para a minha mãe, com a ilustre missão de comprar fósforos. Embaixo desse prédio, havia uma sorveteria, onde tomávamos vacas pretas... Foi morando nesse lugar que sofri meu segundo pior acidente: a porta de vidro temperado da entrada quebrou em cima de mim quando fui abri-la; tenho as cicatrizes até hoje e ainda me lembro da madeira rosa de compensado colocada no lugar da porta até que chegasse uma nova. Lá, minha Barbie era casada com o Jaspion do meu irmão e também ia à guerra com os bonecos dele. Lá, meu irmão teve sua primeira crise de rebeldia, trancando-se no banheiro. Lá, eu tinha medo do Freddie Krueger e assisti pela primeira vez Hellraiser - tudo isso com menos de sete anos de idade!
Foi nesse lugar também que deixamos todas as nossas coisas com vizinhos, em gavetas alheias, e juntamos nossos trapos rumo ao norte. Até os seis anos de idade, tive uma infância feliz em São José, santo, pai de Jesus, carpinteiro... Feliz no Kobrasol.
Quatorze anos: restante da infância, adolescência e começo da idade adulta em terras caboclas - até uma filha índia consegui por lá - e me vejo de volta ao meu lugar. Manezinha da Ilha porque nasci lá, mas sou como meu pai, e não é São José, apesar de ter me acompanhado e ser o Padroeiro da cidade do norte, apesar de lá e aqui haver sua imagem; uma no meio do rio, pequena, tímida, em concreto, pintada de branco, colocando-se sobre as águas quando a maré sobe; a outra, grande, enorme, de metal, imponente no meio da praça que fica à beira-mar. Não é por causa desse pai que tanto amo essa cidade que tem nome de santo; é por causa do pai que me fez mesmo, daquele que nasceu na Colônia Santana e se criou lá, ali, aqui, nesses lados do continente que me alegram muito mais do que qualquer praia bonita do lado da Ilha da Magia. Meu lado bruxa, muito bem herdado de minha mãe, não faz questão de atravessar a ponte, porque ama mesmo é essa terra.
Então, que depois de quatorze anos, graças a meu pai de sangue, me vejo em casa novamente. A moradia que me deixou ficava aqui, nesse irmão Kobrasol que era novo e pequeno como eu, e que cresceu, casou-se e se multiplicou pela vizinhança. Voltei para cá, indo para a tal Dinarte Domingues. Não sei quem foi, não faço ideia. Sei que depois de quase três anos morando nesse desconhecido, tive minha independência emocional, indo para onde eu achava que cabia, na Sete de Setembro. A independência durou quase cinco anos e hoje me vejo indo para a Quinze de Novembro, proclamando minha república! Numa evolução de fatos históricos, que se encaixam em meus endereços, em meus momentos pessoais, na minha evolução.
Hoje é véspera de mudança, e destarte, deixei hoje toda a minha falta de criatividade de lado para manifestar todo o amor que sinto pelo lugar onde moro, digo, onde morei até agora, pois, a partir de amanhã, estarei em outro lugar, mas que fica ao seu lado, sendo o lugar que lhe deu origem, então não sinto que abandono meu irmão, sinto que me junto a seu pai, nosso.
Esta casinha, que apesar de ser uma apartamento, sempre será a minha casinha, tem agora só bagunça, caixas lacradas, sacos pretos, a carcaça de móveis e mais um pedaço da minha história. Hoje é a véspera de um dia cansativo e feliz, mas também triste porque sei que um pedacinho de mim está indo embora e não vai mais voltar.
Encerro com lágrimas nos olhos, um pequeno peso no coração e enormes expectativas pelo que virá.
Amor,
Karla
sábado, 7 de abril de 2012
quinta-feira, 15 de março de 2012
K.I.S.S.
Crianças são os seres mais vulneráveis e, ao mesmo tempo, os mais escrotos que existem. Enquanto você é pequeno, pode passar por inúmeras situações de abuso, que veja só, são cometidas por outras crianças e, por isso, não há bem uma punição pelas merdas que podem fazer contra você.
A criança sofre por ser frágil e suscetível justamente pelas mãos de outra, que é igual a ela e que deveria ser tão frágil e suscetível quanto ela.
Quando tinha uns quatro ou cinco anos, imagine todo o discernimento que me habitava – nenhum –, estava eu na frente da escola em que “estudava” na época,
(vamos abrir aqui um gigantesco parêntese; com quatro ou cinco anos eu não estudava bosta nenhuma; a escola era só um depósito de crianças, que mesmo sendo a melhor escola, não passava de um lugar com “tias” rabugentas doidas para matar meia turma de pequenos animais; eu comia cola, via meninos tendo ataques de histeria por serem abandonados ali por suas mães pós-modernas que precisavam trabalhar, me sentia deslocada e feliz só de vez em quando, como sempre)
esperando que alguém fosse me buscar. Ficava lá na calçada, onde eram vendidas guloseimas por tiozinhos com ares de pedófilos; havia algo que eu achava muito interessante, mas que agora não tenho certeza se já comi ou não: puxa-puxa. Era um doce à base de calda de açúcar, que era bem grudento e quando você dava uma dentada, ele esticava, daí o nome; uma beleza para os dentes das crianças.
Além desse doce, havia, claro, pipoca. Acho que eu gostava de pipoca. Pipoca é bom. Talvez naquele dia eu estivesse com muita vontade de comer pipoca, porque umas crianças maiores estavam comendo a dita cuja por ali e um belo punhado caiu no chão, como sempre acontece quando alguém come milho estourado e eu, que era uma menininha, estava com vontade de comer, então não vi nada de errado em juntar do chão da calçada, colocar na boca, mastigar e, delícia (!), estava comendo o que queria.
Acontece que quem me viu fazer isso – a escola toda –, não encarou meu ato como eu e fizeram com que me sentisse a criatura mais imunda da face da terra por ter comido algo do chão. Riram de mim, me chamaram de suja e porca. Senti-me absolutamente humilhada, envergonhada, acuada. Uma tristeza só para uma menina tão pequena. Era só pipoca, eu era só uma criança, era só um chão sujo de calçada. Eu certamente não iria morrer por ter comido aquilo, visto que a pessoa “grandota” que aqui vos fala é bastante saudável – leia-se acima do peso.
É claro que hoje em dia não cato nenhuma comida que tenha caído no chão, a não ser que seja o chão da minha casa ou de algum lugar conhecido; é, certos hábitos não se perdem e com isso eu sempre aumento a imunidade do meu corpinho.
Mas pergunte se isso me marcou.
- Isso te marcou, Karla?
- Ô. Não é à toa que eu tenho 27 anos e ainda me lembro disso. Foi uma coisa de crianças que viram motivo para avacalhar com uma outra, igual a todas elas. Foi algo que aconteceu de um jeito despretensioso por parte delas talvez, mas que me deixou uma marca muito profunda porque eu não merecia aquilo, eu não tinha noção do que o que estava fazendo era errado e que por isso eu deveria ser alertada, não achincalhada, mas quem chamou a minha atenção foram mini-pessoas que também não sabiam que a forma que usaram para me abordar me causaria tanto mal.
Hoje tenho o entendimento de que carreguei essa história por ter sido ignorante e por ter sido vítima de outros ignorantes. Éramos todos crianças e escrever sobre isso me deixa mais leve por ver que consigo expressar esse incômodo de maneira saudável.
Agora, alguém me pergunte se eu metralharia cada um dos filhos da puta, caso os visse pela rua? Absolutamente. ;)
segunda-feira, 12 de março de 2012
Peidei, e agora?
O amor é lindo... Mas de que amor costumamos falar quando dizemos essa frase? Do amor que abre a porta do carro? que leva flores? que leva pra jantar? Esse é bem lindo, bem formal e cada dia mais raro de encontrar.
Tem também aquele bonito, que é o que dorme com você duas ou três vezes por semana, que às vezes leva uma cafezinho na cama, que manda mensagenzinhas em uma hora inesperada.
Tem aquele bem charmoso, que divide as contas com você, que prepara o almoço, que esquenta o seu pé no meio da noite.
Tem aquele sensual, que te faz sexo oral, pega você de jeito e te deixa boba só de ficar olhando.
Tudo é lindo, não é? Tudo é amor, então por que, por que, por que diabos as pessoas não admitem que suas relações avancem um passo a mais na intimidade através do compartilhamento de atitudes singelas e comuns a todos?
Para mim, não existe um relacionamento de verdade se meu namorado/marido não tem conhecimento de que eu peido, arroto, cago e mijo de porta aberta! E sim, é com essas denominações mesmo!
Ai, sempre a mesma história furada de "bons modos", "ninguém precisa saber o que eu faço no banheiro", "isso é porquice", "mulher não faz isso", "acaba com o encanto da relação" e blá blá blá.
Gente, vamos encarar os fatos:
Eu fui muito bem educada pela minha mãe, apesar de ter presenciado todos os tipos de necessidades fisiológicas dela. Vejam bem, ela me ensinou as regras e é importante você saber as regras, claro.
Mas é importante também que saibamos que uma coisa é a relação que temos com o outro que é o outro; aquele com quem não temos intimidade, com quem não temos convivência afetiva ou que não vive com o seu rabinho dentro da nossa casa.
Outra coisa totalmente diferente é a convivência que você tem com seu cônjuge. Uma pessoa com quem você decidiu compartilhar os melhores e os piores momentos da sua vida, sendo que mijar/cagar/peidar e outras coisas semelhantes sequer podem ser encaixadas como piores momentos, pois são apenas parte do dia a dia de qualquer ser que respire na face da terra.
Sua mãezinha, por exemplo, que deus a abençoe, limpou muito a sua bunda; aliás, tão incontáveis vezes que se duvidar, até hoje, quando você sente uma dor de barriga, pensa em ligar para ela. E é assim mesmo. As pessoas com quem você pode contar quando está na merda literalmente, geralmente são as pessoas com quem você vai poder contar para o resto da vida.
Não se trata de sentir cheiros; trata-se de intimidade, no seu estado mais "tcham" de ser. Não se trata de você fazer cara feia e ficar pensando "puta que pariu, ele/ela tá podre! morreu, mas ainda não foi enterrado!"; trata-se de você ter a liberdade para sentar no chão do banheiro enquanto o outro está cagando, e conseguir trocar altas ideias sobre um assunto qualquer, abstraindo o mau cheiro, porque não é disso que se trata a vida; de falar sobre o quanto a merda alheia fede. Afinal, acho que só valeria a pena discutir sobre isso no dia em que o cheiros exalados por mim forem de flores silvestres dos bosques longínquos que ficam além do arco-íris.
De que adianta você ter a relação mais "foda" do mundo, se quando você tem uma dor de barriga daquelas, em que as tripas se reviram, você empalidece e acha que vai ficar no trono pra sempre, você tem que manter o sorriso, correr para o banheiro, ligar a torneira e ficar cantando Macarena bem alto para que o seu digníssimo namorado não seja surpreendido por algum barulho de "peido metralhadora" e assim, descubra subitamente que o anjo de candura, delicadeza, educação e sensualidade que ele namora também peida, e pior, peida muito, e pior ainda, caga??? Diarreia??? Oh, meu deus!!! Pensei que mulheres direitas não fizessem isso! Cagar é coisa de puta!
Eu imagino que seja um choque muito grande mesmo, para qualquer relação, você descobrir que a pessoa que você ama, quando toma uma Coca-Cola bem gelada tenha vontade de arrotar e, veja você, às vezes arrota?! Um absurdo, não é mesmo? Quem faz isso? Vamos guardar esse tipo de reação absolutamente normal do nosso organismo dentro de nós mesmos, afinal, colocar pra fora é o cúmulo do que a civilidade rejeita.
São essas mesmas pessoas que vão a um banheiro público e ficam intimidadas de dar uma bela mijadinha porque outras pessoas, que também entraram lá para isso, podem ouvir o som do xixi caindo na privada. Não é ridículo imaginar que tem gente que se ressente de mijar numa porra de um banheiro público, que por acaso foi feito para que as pessoas mijem e mijem e mijem de novo e também para que caguem lá quantas vezes sentirem vontade porque têm vergonha de que outras pessoas as ouçam fazendo isso, sendo que é algo que todo mundo faz nessa porra dessa vida várias vezes em um único dia???
Fico puta com toda essa hipocrisia! Espero que vocês tenham lido o parágrafo anterior não como se tivesse sido dito, mas sim gritado, ok?
As coisas que saem dos nossos corpinhos não são limpas, é verdade, por isso são excretadas, mas o fato de fazê-las não nos torna sujos ou sujeitos diminutos diante de ninguém. Ir ao banheiro não torna ninguém mais porco do que ninguém e o fato de você ter um relacionamento em que isso não é encarado como algo maior do que é, ao menos para mim, é fator de aproximação, no qual o outro sabe que eu o entendo e o respeito no que existe de mais básico em um ser humano, que é o seu aspecto fisiológico, que nem em um milhão de anos poderá ser mudado.
Se eu posso trocar fraldas, olhar pra cinco diferentes tipos de merda todos os dias e fazer isso ainda com um sorriso no rosto por saber que ela sai de dentro de um serzinho gracioso feito por mim; se faço isso pelos animais de estimação que tenho em casa, catando cocôs, por que não posso aceitar que a pessoa que amo e que escolhi para ficar comigo vai ao banheiro de porta aberta?
Falta de boas maneiras é não parar na faixa de pedestres, não dar bom dia, ter filhos que parecem o capeta em um restaurante ou não deixar que um idoso se sente no ônibus. Percebem a diferença entre intimidade e frescura?
Sim, porque para mim, isso não passa de uma frescura das brabas. Todo o romantismo e a magia do amor foram construídos ao longo de muitos anos, é verdade, mas isso não quer dizer que certos pontos de vista devam ser mantidos a qualquer custo. Pelo menos a minha visão sobre o amor é bem mais realista e portanto, acredito que mais romântica e menos superficial/iludida e por isso, devo dizer que me sinto bem feliz.
Quem estiver comigo, pode saber que conta com o meu apoio mesmo nos momentos cotidianamente malcheirosos da vida. Amar é aceitar e sublimar o que nos incomoda no outro para que o outro assim o faça conosco.
Tem também aquele bonito, que é o que dorme com você duas ou três vezes por semana, que às vezes leva uma cafezinho na cama, que manda mensagenzinhas em uma hora inesperada.
Tem aquele bem charmoso, que divide as contas com você, que prepara o almoço, que esquenta o seu pé no meio da noite.
Tem aquele sensual, que te faz sexo oral, pega você de jeito e te deixa boba só de ficar olhando.
Tudo é lindo, não é? Tudo é amor, então por que, por que, por que diabos as pessoas não admitem que suas relações avancem um passo a mais na intimidade através do compartilhamento de atitudes singelas e comuns a todos?
Para mim, não existe um relacionamento de verdade se meu namorado/marido não tem conhecimento de que eu peido, arroto, cago e mijo de porta aberta! E sim, é com essas denominações mesmo!
Ai, sempre a mesma história furada de "bons modos", "ninguém precisa saber o que eu faço no banheiro", "isso é porquice", "mulher não faz isso", "acaba com o encanto da relação" e blá blá blá.
Gente, vamos encarar os fatos:
Eu fui muito bem educada pela minha mãe, apesar de ter presenciado todos os tipos de necessidades fisiológicas dela. Vejam bem, ela me ensinou as regras e é importante você saber as regras, claro.
Mas é importante também que saibamos que uma coisa é a relação que temos com o outro que é o outro; aquele com quem não temos intimidade, com quem não temos convivência afetiva ou que não vive com o seu rabinho dentro da nossa casa.
Outra coisa totalmente diferente é a convivência que você tem com seu cônjuge. Uma pessoa com quem você decidiu compartilhar os melhores e os piores momentos da sua vida, sendo que mijar/cagar/peidar e outras coisas semelhantes sequer podem ser encaixadas como piores momentos, pois são apenas parte do dia a dia de qualquer ser que respire na face da terra.
Sua mãezinha, por exemplo, que deus a abençoe, limpou muito a sua bunda; aliás, tão incontáveis vezes que se duvidar, até hoje, quando você sente uma dor de barriga, pensa em ligar para ela. E é assim mesmo. As pessoas com quem você pode contar quando está na merda literalmente, geralmente são as pessoas com quem você vai poder contar para o resto da vida.
Não se trata de sentir cheiros; trata-se de intimidade, no seu estado mais "tcham" de ser. Não se trata de você fazer cara feia e ficar pensando "puta que pariu, ele/ela tá podre! morreu, mas ainda não foi enterrado!"; trata-se de você ter a liberdade para sentar no chão do banheiro enquanto o outro está cagando, e conseguir trocar altas ideias sobre um assunto qualquer, abstraindo o mau cheiro, porque não é disso que se trata a vida; de falar sobre o quanto a merda alheia fede. Afinal, acho que só valeria a pena discutir sobre isso no dia em que o cheiros exalados por mim forem de flores silvestres dos bosques longínquos que ficam além do arco-íris.
De que adianta você ter a relação mais "foda" do mundo, se quando você tem uma dor de barriga daquelas, em que as tripas se reviram, você empalidece e acha que vai ficar no trono pra sempre, você tem que manter o sorriso, correr para o banheiro, ligar a torneira e ficar cantando Macarena bem alto para que o seu digníssimo namorado não seja surpreendido por algum barulho de "peido metralhadora" e assim, descubra subitamente que o anjo de candura, delicadeza, educação e sensualidade que ele namora também peida, e pior, peida muito, e pior ainda, caga??? Diarreia??? Oh, meu deus!!! Pensei que mulheres direitas não fizessem isso! Cagar é coisa de puta!
Eu imagino que seja um choque muito grande mesmo, para qualquer relação, você descobrir que a pessoa que você ama, quando toma uma Coca-Cola bem gelada tenha vontade de arrotar e, veja você, às vezes arrota?! Um absurdo, não é mesmo? Quem faz isso? Vamos guardar esse tipo de reação absolutamente normal do nosso organismo dentro de nós mesmos, afinal, colocar pra fora é o cúmulo do que a civilidade rejeita.
São essas mesmas pessoas que vão a um banheiro público e ficam intimidadas de dar uma bela mijadinha porque outras pessoas, que também entraram lá para isso, podem ouvir o som do xixi caindo na privada. Não é ridículo imaginar que tem gente que se ressente de mijar numa porra de um banheiro público, que por acaso foi feito para que as pessoas mijem e mijem e mijem de novo e também para que caguem lá quantas vezes sentirem vontade porque têm vergonha de que outras pessoas as ouçam fazendo isso, sendo que é algo que todo mundo faz nessa porra dessa vida várias vezes em um único dia???
Fico puta com toda essa hipocrisia! Espero que vocês tenham lido o parágrafo anterior não como se tivesse sido dito, mas sim gritado, ok?
As coisas que saem dos nossos corpinhos não são limpas, é verdade, por isso são excretadas, mas o fato de fazê-las não nos torna sujos ou sujeitos diminutos diante de ninguém. Ir ao banheiro não torna ninguém mais porco do que ninguém e o fato de você ter um relacionamento em que isso não é encarado como algo maior do que é, ao menos para mim, é fator de aproximação, no qual o outro sabe que eu o entendo e o respeito no que existe de mais básico em um ser humano, que é o seu aspecto fisiológico, que nem em um milhão de anos poderá ser mudado.
Se eu posso trocar fraldas, olhar pra cinco diferentes tipos de merda todos os dias e fazer isso ainda com um sorriso no rosto por saber que ela sai de dentro de um serzinho gracioso feito por mim; se faço isso pelos animais de estimação que tenho em casa, catando cocôs, por que não posso aceitar que a pessoa que amo e que escolhi para ficar comigo vai ao banheiro de porta aberta?
Falta de boas maneiras é não parar na faixa de pedestres, não dar bom dia, ter filhos que parecem o capeta em um restaurante ou não deixar que um idoso se sente no ônibus. Percebem a diferença entre intimidade e frescura?
Sim, porque para mim, isso não passa de uma frescura das brabas. Todo o romantismo e a magia do amor foram construídos ao longo de muitos anos, é verdade, mas isso não quer dizer que certos pontos de vista devam ser mantidos a qualquer custo. Pelo menos a minha visão sobre o amor é bem mais realista e portanto, acredito que mais romântica e menos superficial/iludida e por isso, devo dizer que me sinto bem feliz.
Quem estiver comigo, pode saber que conta com o meu apoio mesmo nos momentos cotidianamente malcheirosos da vida. Amar é aceitar e sublimar o que nos incomoda no outro para que o outro assim o faça conosco.
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
Como morrer sem querer e como ficam os que ficam
Tinha médico às 10 da manhã; a casa estava uma zona há mais de uma semana, mas ela não percebia que isso era uma das poucas coisas que estava sob o seu controle, a organização e a manutenção da sua casa. Preferiu a internet, como muitos.
Tomou banho correndo, vestiu-se correndo, passou protetor solar correndo e correndo também, falou consigo mesma. Andava tendo conversas muito claras, em voz alta e não só dentro da cabeça, chamava sua própria atenção, se exigia, esperava ainda colocar em ação todas as coisas que se dizia. Continuou correndo quando foi abastecer o carro; não sabia mais se ele tinha gasolina ou não, porque a boia da bomba de combustível só funcionava quando queria, e nos últimos dias, ela não andava muito a fim de trabalhar.
Quando abasteceu o carro, já se avisou que o atraso era de sua única e exclusiva responsabilidade, então que deixasse de ser uma Zé-pressa e fizesse as coisas no tempo em que era capaz de fazê-las.
Foi pela Beira-mar, ouvia Statler Brothers, e como a vida é cheia de ironia, foi num muro, em que mais tarde as pessoas colocariam flores, que ela se espatifou. Apressada como o coelho de Alice, ela fez uma curva, pensou em fazê-la; não reduziu a marcha e foi direto em direção ao muro. Muito rápido. Instantâneo. Irreconhecível. Perda total para o carro, perda total para ela.
Agora é que o peito aperta. Enquanto via o muro se aproximar, enquanto não havia mais nada a se fazer, pensou em tudo. Viu 27 anos passarem diante de si. Percebeu finalmente o significado da palavra efêmero. Viu que não era nada. Viu o que era impermanência e entendeu de uma vez por todas que tudo pode mudar a qualquer momento. Uma corda bamba eterna. Roda gigante safada, que não só sobe e desce, mas que por vezes é equipada com um banco ejetor, e mesmo que você ache que está lá em cima, é lá de cima que você vai ser lançado. Dói mais.
Agora é que o peito aperta. Enquanto via o muro se aproximar, enquanto não havia mais nada a se fazer, pensou em tudo. Viu 27 anos passarem diante de si. Percebeu finalmente o significado da palavra efêmero. Viu que não era nada. Viu o que era impermanência e entendeu de uma vez por todas que tudo pode mudar a qualquer momento. Uma corda bamba eterna. Roda gigante safada, que não só sobe e desce, mas que por vezes é equipada com um banco ejetor, e mesmo que você ache que está lá em cima, é lá de cima que você vai ser lançado. Dói mais.
De viva, indo para um compromisso, à morta, esfacelada, com cacos de vidro no rosto, cabeça quebrada, sangue escorrendo por todos os buracos, ossos trincados, pele pendurada. Nunca mais um abraço, um beijo, um carinho. Era só a casca.
Tudo isso numa manhã de sol primaveril. Não é um paradoxo? O sol nunca para de brilhar, não importa o que aconteça em terra firme.
Carro no muro, game over pra ela. Os carros que vinham atrás, primeiro frearam bruscamente para que não batessem também, depois, descendo com pressa e temor pela gravidade do acidente, os motoristas vinham ver a morta. O tesão gerado por acidentes traz muitas reflexões para quem os assistem. Muitas perguntas, muita consternação. O que houve? Como aconteceu? Ela estava bêbada? Dirigia em alta velocidade? Perdeu o controle? Ela está morta? É, acho que está morta... Coitada, pobre da família...
Vinte minutos depois, chegam a ambulância, a polícia, os bombeiros e mais curiosos. Com alguma dificuldade, conseguem abrir a porta do carro. Ela, de cabeça caída pro lado, olha pro nada com as pupilas dilatadas de defunto. Morta? Sim, nem poderia ser diferente. Mais uma ironia para quem sempre achou que morreria em um acidente automobilístico. Assim foi.
Removeram-na. Saco preto, carro da polícia técnica. Ela já era estatística. Pegaram a bolsa, olharam o nome na identidade. Pegaram o telefone celular e começaram a olhar os números para que pudessem avisar alguém sobre a mais nova perda da família. Estava escrito na agenda “Casa” e ligaram. Lá, o telefone tocou à exaustão, e os gatos miaram sem saber da notícia. Ninguém. Tentaram o último número discado e ele atendeu. Acidente? Ele ainda estava dormindo... É que a morte é assim mesmo, chega sem avisar. Se você está vivo, pode empacotar a qualquer momento; para ela não tem tempo ruim ou bom, é tudo igual.
Sim, acidente. Você é da família? Precisamos falar com alguém da família. Sou namorado. Namorado não é família e ele sabia que nem namorado era, e se arrependeu, todo mundo se arrepende. Ah, burrice! A gente acha que a morte vem sempre amanhã, como a felicidade, como o fim de semana, mas ela sempre chega! E quando chega, pluft! Arrependimentos não resolvem nada. Nada.
Ele pensou imediatamente na menina, eram onze e meia, ela estava na escola, e naquele dia sua mãe não iria pegá-la, e nem em nenhum outro dia. Como dizer? Cadê minha mãe? Sozinha ela, sozinha com a menina. Todo mundo tem família e coisa e tal, mas era ela e a menina, sempre a menina e ela. Família de duas, como faz agora? Família de uma? Isso é família?
Tudo perdido, muito louco. Numa noite, mercado, carnes para o natal, planos indefinidos de natal aqui e ali, panetones que ela tanto gostava, chocolates envenenados pra ele, chinelo novo pra menina. Dorme, acorda e come coxinha. Lanche gorduroso do Beps na véspera da batida. Mas morreu em jejum, deixando o que mais estimava na vida, que era um pedaço seu de legado pra terra.
A menina deixada ao léu, cheia de comida em casa, mas sem a mãe preguiçosa pra cozinhar, pra brigar, pra deixar usar o computador. Ao menos ela já estava matriculada na escola para o ano que vem, mas a mãe não a veria mais. Oh vida que passa. O amanhã que nunca chega ou que chega rápido e sem aviso prévio. Leva, bagunça, empilha e deixa de lado.
Desestabilizadora a grande ceifadora.
P.S.: Não, eu não morri, nem estou pensando em morrer. Eu sempre reduzo nas curvas, mas gosto tanto de falar sobre ela, que me deu vontade de escrever. Você já se imaginou morrendo de repente e deixando tudo pra trás? Hoje, eu imaginei, mas é tão complicado pensar em quem fica... pensei na minha Ana, mas eu morta de repente, nada poderia fazer por ela, mas sei quem poderia cuidar dela. Se eu morrer de repente, cuidem dela!
P.S.²: Não, eu definitivamente não estou pensando em morrer, fiquem tranquilos, é só que a vida tem dessas coisas. Se alguém por aí também quiser que eu ajude em caso de falta por morte, estamos aí, é só deixar avisado. =)
P.S.³: Na verdade, estou bem feliz, porque o natal é uma época de luzes coloridas e comidas gostosas!
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Não sei por que, mas 10 x 7
Quando eu era pequena, às vezes tinha uma sensação que me incomodava muito; em alguns momentos, parecia que tudo à minha volta acelerava, tudo acontecia muito rápido, as pessoas, os movimentos, as coisas, tudo se mexia em uma velocidade maior e aquilo me dava uma enorme agonia, porque era como se eu estivesse devagar diante de tudo.
Outra coisa que me deixava desconfortável, mas que acontecia nos meus sonhos, é que, com certa frequência, sonhava com uma claridade tão forte que eu não conseguia abrir meus olhos; eles ardiam e a minha cabeça doía, e nos sonhos, eu ficava impaciente, porque dentro deles se passava considerável tempo, e eu era obrigada a andar com os olhos cerrados, me sentindo importunada pelo clarão.
Mas o ponto não é esse, o ponto é que hoje, andando pela rua, de repente senti como se todas as coisas tivessem um destaque maior dentro do ambiente, tudo. Duas vezes senti o cheiro da minha infância. Primeiro, senti o cheiro do meu pai, depois senti o cheiro de um chiclete paraguaio que mascava quando era menor. É incrível como a rua me leva a lugares que estavam guardados há muito tempo. Cruzei duas vezes, em dois pontos diferentes do bairro, com a mesma garota que usava tênis cor de violeta. Passei em frente a um salão de beleza e vi uma senhorinha que, apesar de toda a decrepitude estampada em si, tinha os cabelos emplastados de tinta, na tentativa de esconder todos os anos que já tinha vivido. Vi uma menina, parada, atrás de uma linha branca, feita no chão de uma das pracinhas daqui. Ela olhava pro nada e esperava o momento de cruzar aquela linha, quando sua mãe séria, veio e a levou. Ouvi o barulho ritmado de marteladas, e vi a água que escorria pela sarjeta. Tudo muito vivo, muito singular.
Ontem, depois de piscar, abri os olhos e não podia parar de rir; eu ria, ria, ria e não havia nada de engraçado, mas eu ri tanto que babei; ri descontrolada; ri e não conseguia falar. Do meu lado direito, tudo girava, e eu ria. Depois, fechei os olhos e um enorme leque de plástico transparente amarelo se colocou sobre o céu, ele cobria tudo, dava ares de verão, de calor ameno; eu mexia minha mão para um lado, e era pra lá que o leque cobria o céu; eu fazia isso para o outro lado, e o leque seguia minha mão. Eram as minhas mãos que controlavam o céu, e eu sentia toda a minha parte frontal formigar; me via em sonho. Então eles apareceram, meu pai e minha mãe, vieram em minha direção e falaram comigo carinhosamente, como se eu fosse uma criança, cada um deles tomava uma de minhas mãos e me levavam pra algum lugar que eles diziam ser bom. Por trás da parte que formigava, lá estava a minha consciência, me segurando, me impedindo de ser, dizendo que era tudo mentira. E, assim, acabou.
Ontem também, descobri que tenho uma prima que me lê, do lado paterno. Ela me procurou, disse que gostava do que eu escrevia, disse que se dava muito com meu pai, e que ele falava muito em mim. Em algum momento, antes de se perder em si mesmo, ele deve ter falado de mim, acho. Ela disse que ele ficaria orgulhoso, mas acho que não. Certamente ele ficaria chocado. Enfim, disse ela que se orgulhava de ser minha prima. Fiquei feliz por saber que uma pessoa, que eu sequer sabia que existia até ontem, se orgulha de mim. Tenho função no mundo?
Depois disso, recebi um e-mail com o convite para participar de uma constelação familiar, e no fim de semana conversamos sobre isso, não é? A primeira pessoa que me falou a respeito do assunto tem o mesmo nome da segunda pessoa que falou comigo sobre; uma é família, a outra é amiga. Isso é destino, coincidência ou conspiração? A gente, então, decidiu que vai se aventurar, se expor, e expurgar o que for possível.
E hoje, ah, hoje foi bonito. Hoje, vieram tantas coisas que as mãos dela ficaram quentes, fiz ela suar com o tanto de energia que entrou em mim. Ela viu nas minhas costas um lobo muito bonito e um delicado veadinho também. Li algo a respeito, e gostei dos significados. O lobo representa amor, relacionamentos saudáveis, fidelidade, generosidade e ensinamento. O veado denota delicadeza, sensitividade, graça, alerta, adaptabilidade, coração/espírito, gentileza. Oh sim, existe o bem em mim. E lembrei da cadela do vídeo, Mishca, linda, uivando, e lembrei do cachorro mais lindo que tivemos, nosso lobo, Zowie, querido devorador de gatos. Lobos são leais...
Mas nem tudo foi bom. Vi nitidamente uma briga. Nós dois em frente a um espelho. Me dava de dedo na cara, irado com a minha falta de compreensão, porque era inadmissível. Em frente a um espelho oval, apoiado em uma penteadeira, a mesma que vi no sonho em que eu era baleada no pescoço. O que se reflete nisso tudo? O que estamos projetando?
Ela me disse que há omissão, foi essa a palavra que ela ouviu de alguém. Há mais de uma pessoa dentro do corpo, e uma delas eu não conheço, porque ela se esconde, não se aceita, não se admite pra ninguém. Mas disse também que eu perceberei certas coisas nessa pessoa, e que os véus serão tirados dos meus olhos, e então, eu verei que não existe mais nada a agregar, e conseguirei me libertar do que me faz sofrer hoje.
Bolha de luz azul, bolha de luz violeta.
Ontem conheci alguém que me deixou feliz, porque pude conversar e dar um pouco do que tenho sido ensinada. Por isso agradeço, mas ainda acho que preciso de um gravador.
Outra coisa que me deixava desconfortável, mas que acontecia nos meus sonhos, é que, com certa frequência, sonhava com uma claridade tão forte que eu não conseguia abrir meus olhos; eles ardiam e a minha cabeça doía, e nos sonhos, eu ficava impaciente, porque dentro deles se passava considerável tempo, e eu era obrigada a andar com os olhos cerrados, me sentindo importunada pelo clarão.
Mas o ponto não é esse, o ponto é que hoje, andando pela rua, de repente senti como se todas as coisas tivessem um destaque maior dentro do ambiente, tudo. Duas vezes senti o cheiro da minha infância. Primeiro, senti o cheiro do meu pai, depois senti o cheiro de um chiclete paraguaio que mascava quando era menor. É incrível como a rua me leva a lugares que estavam guardados há muito tempo. Cruzei duas vezes, em dois pontos diferentes do bairro, com a mesma garota que usava tênis cor de violeta. Passei em frente a um salão de beleza e vi uma senhorinha que, apesar de toda a decrepitude estampada em si, tinha os cabelos emplastados de tinta, na tentativa de esconder todos os anos que já tinha vivido. Vi uma menina, parada, atrás de uma linha branca, feita no chão de uma das pracinhas daqui. Ela olhava pro nada e esperava o momento de cruzar aquela linha, quando sua mãe séria, veio e a levou. Ouvi o barulho ritmado de marteladas, e vi a água que escorria pela sarjeta. Tudo muito vivo, muito singular.
Ontem, depois de piscar, abri os olhos e não podia parar de rir; eu ria, ria, ria e não havia nada de engraçado, mas eu ri tanto que babei; ri descontrolada; ri e não conseguia falar. Do meu lado direito, tudo girava, e eu ria. Depois, fechei os olhos e um enorme leque de plástico transparente amarelo se colocou sobre o céu, ele cobria tudo, dava ares de verão, de calor ameno; eu mexia minha mão para um lado, e era pra lá que o leque cobria o céu; eu fazia isso para o outro lado, e o leque seguia minha mão. Eram as minhas mãos que controlavam o céu, e eu sentia toda a minha parte frontal formigar; me via em sonho. Então eles apareceram, meu pai e minha mãe, vieram em minha direção e falaram comigo carinhosamente, como se eu fosse uma criança, cada um deles tomava uma de minhas mãos e me levavam pra algum lugar que eles diziam ser bom. Por trás da parte que formigava, lá estava a minha consciência, me segurando, me impedindo de ser, dizendo que era tudo mentira. E, assim, acabou.
Ontem também, descobri que tenho uma prima que me lê, do lado paterno. Ela me procurou, disse que gostava do que eu escrevia, disse que se dava muito com meu pai, e que ele falava muito em mim. Em algum momento, antes de se perder em si mesmo, ele deve ter falado de mim, acho. Ela disse que ele ficaria orgulhoso, mas acho que não. Certamente ele ficaria chocado. Enfim, disse ela que se orgulhava de ser minha prima. Fiquei feliz por saber que uma pessoa, que eu sequer sabia que existia até ontem, se orgulha de mim. Tenho função no mundo?
Depois disso, recebi um e-mail com o convite para participar de uma constelação familiar, e no fim de semana conversamos sobre isso, não é? A primeira pessoa que me falou a respeito do assunto tem o mesmo nome da segunda pessoa que falou comigo sobre; uma é família, a outra é amiga. Isso é destino, coincidência ou conspiração? A gente, então, decidiu que vai se aventurar, se expor, e expurgar o que for possível.
E hoje, ah, hoje foi bonito. Hoje, vieram tantas coisas que as mãos dela ficaram quentes, fiz ela suar com o tanto de energia que entrou em mim. Ela viu nas minhas costas um lobo muito bonito e um delicado veadinho também. Li algo a respeito, e gostei dos significados. O lobo representa amor, relacionamentos saudáveis, fidelidade, generosidade e ensinamento. O veado denota delicadeza, sensitividade, graça, alerta, adaptabilidade, coração/espírito, gentileza. Oh sim, existe o bem em mim. E lembrei da cadela do vídeo, Mishca, linda, uivando, e lembrei do cachorro mais lindo que tivemos, nosso lobo, Zowie, querido devorador de gatos. Lobos são leais...
Mas nem tudo foi bom. Vi nitidamente uma briga. Nós dois em frente a um espelho. Me dava de dedo na cara, irado com a minha falta de compreensão, porque era inadmissível. Em frente a um espelho oval, apoiado em uma penteadeira, a mesma que vi no sonho em que eu era baleada no pescoço. O que se reflete nisso tudo? O que estamos projetando?
Ela me disse que há omissão, foi essa a palavra que ela ouviu de alguém. Há mais de uma pessoa dentro do corpo, e uma delas eu não conheço, porque ela se esconde, não se aceita, não se admite pra ninguém. Mas disse também que eu perceberei certas coisas nessa pessoa, e que os véus serão tirados dos meus olhos, e então, eu verei que não existe mais nada a agregar, e conseguirei me libertar do que me faz sofrer hoje.
Bolha de luz azul, bolha de luz violeta.
Ontem conheci alguém que me deixou feliz, porque pude conversar e dar um pouco do que tenho sido ensinada. Por isso agradeço, mas ainda acho que preciso de um gravador.
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