domingo, 3 de fevereiro de 2013

A sorte


Quando você vive uma infância no meio de mudanças e incertezas de vários tipos, o que você mais quer é saber do futuro; mas não é só saber dele, você quer que ele seja doce, cheio de coisas boas, sólidas e felizes. Acho que foi daí que surgiu o fascínio pelas cartas, oráculos e afins.

A curiosidade,de fato, não brotou de mim sozinha; minha mãe ia a cartomantes e até pagava caro para ouvir o que elas tinham a lhe dizer e, parecia um preço razoável, já que sempre saía dos lugares com alguns bons agouros e outros nem tanto, pois quem já viu a sua sorte sabe bem que tem sempre alguém invejoso que aparece nas cartas; alguém quer roubar o seu dinheiro, o seu homem ou quer lhe passar para trás. A gente vive como consulente e as cartas nos prometem viagens, ganhos inesperados, perdas repentinas e amores duradouros, e acreditamos nisso porque se o nosso presente já é um mar de dificuldades e incertezas, cremos então que o futuro nos reserva algo muito melhor e, com isso, vamos engolindo em seco os obstáculos duros até chegar ao dia da recompensa prevista.

D. Avani era avó de um aluno da minha mãe na escola e era ela que pagava as mensalidades do neto só lendo cartas para pessoas curiosas e em apuros. Era uma senhora magra, de cabelos curtos meio grisalhos e que ia até a nossa casa para ver o nosso futuro. Ela não via a sorte em baralhos ciganos ou coisas desse tipo; via tudo em uma baralho de cartas mesmo, desses que as pessoas jogam fazendo apostas e que só depois de muitos anos descobri que foi o tarô que deu origem a ele e não o contrário. O baralho dela era um grande maço de cartas gastas e gordas de tanto manuseio. Ela lia e via e interpretava. As cartas não mentem é o que dizem. Minha mãe gostava tanto das previsões que vira sua sorte com a senhora umas três ou quatro vezes em menos de um ano. A mulher era boa e recomendada até para familiares com anseios casadoiros. Viu até a minha sorte e olhe que na época eu tinha onze anos e um futuro em branco, exceto pelo fato dela ver que em breve eu ficaria mocinha. Ela previu isso para um ano novo e me alertou para ficar atenta e não sujar roupas brancas.... Minha menarca veio pelos idos de março do outro ano, se não me engano, depois de chegar em casa da escola achando que estava com dor de barriga ao invés de cólicas.

Queríamos tanto saber do futuro, que minha mãe via o dela pelo telefone, porque minha tia tirava as cartas para ela a quase dois mil quilômetros de distância, pagando interurbanos caros, mas que rendiam dias de alívio pelo futuro.

Não sei quando foi, mas minha tia, a quem eu chamava de tia bruxa, ensinou minha mãe a ver as cartas de Lenormand e logo ela me ensinou também e víamos quase todos os dias, como forma de solucionar os nossos problemas. O tarô era uma baliza, nos mostrava o que viria até nós e quem eram as pessoas que estavam ao nosso redor. Ficava guardado na sua própria caixinha e era sobre a cama que dormíamos que o futuro repousava. De pernas cruzadas sobre o colchão ondulado, íamos tirando as cartas, fazendo perguntas, tirando dúvidas e tendo certezas.

A sorte que eu via para ela e a que ela via para mim não era das mais certeiras, mas quando víamos para pessoas de fora, acertávamos muitas coisas. Eu, com doze ou treze anos, fiz amizade com a dona de uma loja de produtos esotéricos do shopping da cidade onde morávamos e lá, comecei a ver a sorte dela e de clientes da loja. Cobrava cinco reais e elas gostavam tanto dos resultados que, em uma semana, cheguei a ganhar quarenta e cinco reais pelos meus serviços. Era aquela coisa: embaralha, corta, embaralha de novo, faz montinhos e vai virando as cartas, de maneira que o panorama se formava em volta da carta da consulente e a gente já sabia se vinham coisas boas ou não.

Nisso, os anos se passaram. Nos consolávamos com as nossas previsões, mas adorávamos as dos profissionais. Eram filas de espera e conversa com outros que esperavam como nós a dizer que o fulano era muito bom, que viu isso, que adivinhou aquilo e transbordávamos de esperanças para saber de toda a glória que nos aguardava.

Lembro de uma famosa D. Lola em que minha mãe fora e que era a cartomante preferida dos políticos da cidade; disse ela que eu engravidaria com quatorze anos e que seria uma grande decepção para a minha mãe. Ela quase acertou, não fossem por quatro anos de diferença. Se acreditasse em todas as cartomantes em que já fui, teria tido uns cinco filhos, porque elas sempre viam muitos deles. Fora aquelas que além de verem as cartas, indicavam banhos com ervas e coisas do tipo. Minha mãe fazia, porque olho grande sempre tinha, ela achava. No mundo da sorte, estamos sempre rodeados por amigos da onça, mas acho que é em qualquer mundo mesmo...

Então, de sortista em sortista, de baralho em baralho, fomos vivendo os anos. Eu já tinha o meu próprio e os amigos me pediam que "tirasse" a sua sorte, e eu dizia que não tirava a sorte de ninguém, via.
Alguns anos atrás, fui à casa de uma senhora que atendia no seu quarto, sobre a sua cama, da mesma maneira que minha e mãe e eu fazíamos. Nunca tinha visto a mulher mais gorda na vida e quando eu fui cortar o monte de cartas ela pegou na minha mão e disse: "Você tem o dom" e eu fiquei de boca aberta porque não mencionei qualquer coisa e ela sabia que eu via cartas. De tudo o que ela me disse, nada deu em alguma coisa, mas só pelo que ela falou sem ver carta alguma, fiquei besta com a mulher. Nunca acreditei que era guiada por alguma entidade ou coisa parecida. Muitas cartomantes se dizem guiadas por espíritos, entidades, ciganas e o diabo a quatro, mas eu sempre segui somente as cartas e o que eu achava que elas queriam dizer.

De uns anos para cá li mais a respeito, aprendi algumas coisas e faz muito tempo que não jogo meu tarô cigano. Até fiz um curso uns dois anos atrás, e a senhora que o ministrava foi outra que disse que eu sei jogar. Ela e uma quiromante me disseram que há uma cigana perto de mim, mas nunca acreditei. Aliás, já acreditei em muitas coisas; hoje estou tão cética com quase tudo que me sinto chata e presa ao mundo real. Pessoas próximas a mim já me falaram que eu deveria voltar a ver a sorte das pessoas, que deveria desenvolver esse lado oculto, que muitos outros que conheci diziam que era um lado ruim, que isso era macumba, bruxaria e sempre achei graça.

Meu mapa astral diz que eu devo estudar essas coisas, pois minha intuição é muito forte e meu lado sensitivo tem que ser explorado, mas como disse, já não acredito mais.

Hoje vejo o baralho não como um oráculo do futuro, mas como um oráculo que mostra o que temos dentro de nós, expressando através das cartas as nossas angústias, perspectivas e desejos. O baralho aflora nosso interior e deixa mais claro aquilo que não entendemos acerca do que nos é mais profundo.

A sorte, o futuro, as reviravoltas da vida estão todos no próximo segundo e nos que vêm depois dele.

Um comentário:

  1. Adorei o texto, deverias voltar a ler o futuro dos ainda crédulos, como eu!

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