quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Sobre as coisas em que não acredito

Quando eu era pequena - sim, preciso dizer isso; é o meu "era uma vez...", meu início de narrativa, minhas histórias geralmente começaram lá atrás e ainda estão se desenrolando... sou eu ali, tipo plantinha, crescendo e me espalhando pelo mundo -, agora volto para o que quero contar, repetindo.

Quando eu era pequena, bem, acho que antes mesmo de eu nascer, mas vou começar do ponto em que me percebi como ser pensante e consciente; tive pais disfuncionais. Por muitos anos, acreditei que meu pai era apenas ausente em virtude de sua separação da minha mãe e que ele não ligava lá muito para mim e essa falta só veio se mostrar com força na adolescência, depois da morte dele; mas a minha mãe, ela sempre esteve ali. Era assim na prática: pai ausente, mãe presente. Mãe fazia questão de dizer que pai não estava nem aí e pai não fazia nada para provar o contrário disso. Pintei o cenário.

Mesmo diante desse cenário tristinho - que faz parte da história de muitos e muitos, sabe-se lá quantos -, eu ainda não tinha noção das coisas da vida e era felizinha; não no sentido amplo e irrestrito, mas eu cultivava dentro de mim uma chaminha brilhante e vermelho-azulada de otimismo. Era bem otimista. A cara fechada da minha mãe, seu cansaço e a constância em reclamar da vida, da falta de amizades, de melhorias, aquela coisa de adultos que têm problemas, aquela vida pesada de viver mas que, como não tinha jeito, a gente tinha de se agarrar em alguma coisa e como nos agarramos!

Aí nos pegamos em Deus - naquela época, ele ainda era grafado com letra maiúscula pra mim -, mas não éramos como os crentelhos, ui, não, nunca fomos (!); é só que com vida difícil, a gente se apegava com tudo, éramos sincréticos. Vejo que minha mãe buscava na religião alguma resposta para as dificuldades, mas mais do que isso, vejo que ela buscava o fim dos problemas; ela não queria mais se preocupar com problemas, então, sei lá, pensava que se fosse às missas, rezasse e pedisse muito, as coisas ruins iriam embora, e acho que tantos outros pensavam assim também. Além disso, ter um Deus responsável por tudo de bom ou ruim que acontecesse nas nossas vidas era um tanto cômodo, porque seja como for "Deus proverá". Bastava rezar, ler a bíblia e seguir suas leis (nunca li a bíblia inteira e dos dez mandamentos, só não matei, porque o resto...).

Rolavam fases católicas em que íamos à missa aos domingos e isso era um martírio. Minha mãe, com toda sua gentileza, só que nunca, nos obrigava a ir à igreja e era um saco! Primeiro porque se não fôssemos cedo, teríamos de ficar em pé por mais de uma hora, lá no fundo da igreja lotada. Eu gostava de sentar nos primeiros bancos, porque pareciam um lugar mais privilegiado, só que nunca sentamos nos primeiros primeiros, porque parece que eles eram meio reservados para as tiazinhas que batiam ponto no recinto sagrado, de maneira que sentar no quarto ou quinto banco já era muito bom e evitava os olhares feios lançados em caso de atraso: "que mal católico, tem que chegar na missa cedo! Se chega atrasado é porque não dá a importância devida a Deus".

Chegávamos e já procurávamos o jornalzinho de ritos. Aquela coisa era o roteiro do católico feliz, porque se você não era uma carola e ia ouvir o padre falar ocasionalmente, sem um jornalzinho daqueles pra acompanhar, você ficava completamente perdido. No meio do senta-levanta, das repetições de "glória sei lá o quê" e "graças a Deus", das músicas tocadas no teclado (que coisa blergh!) e do fato de que quase nunca eu entendia tudo o que o padre falava porque o microfone dele era horrível; no meio de tudo isso que eu não entendia bem o porquê de ser daquele jeito, eu sentia que era um lance meio vazio, parecia um treinamento de cachorros. Senta, levanta, canta, toma a óstia e pede perdão, ouve música ruim e coloca uma grana na caixinha do altar, segue o livrinho, ouve historinhas de como era nos tempos remotos e bla bla bla... Daí, no meio disso tudo, havia a única parte que eu gostava, além daquela em que eu podia ficar do lado de fora da igreja, brincando de pega-pega com meu irmão enquanto lá dentro a galera rezava, era a parte da comunhão, é esse o nome? Era a parte em que todo mundo fazia de conta que se importava com o outro e dava um abraço no coleguinha do lado, mesmo nunca o tendo visto antes. Eu gostava muito disso. Era o único momento em que eu sentia uma energia se movimentando por ali, como se fosse o pequeno momento em que as pessoas se olhavam e se viam como seres humanos, pena que era meio: "chegou a hora do abraço no coleguinha. Hey, dê cá um belo abraço! Te reconheço como pessoa e pelo tempo desse abraço ou aperto de mão, sinto a pequena brasa da empatia no meu coração católico", mas aí acabava o tempo e a missa tinha que seguir, e já voltava pro que era antes: "não te conheço, nunca te vi".

Lembrei agora que também tinha a parte de rezar "a oração que nosso pai nos ensinou", daí toda a galera dava as mãos e rezava em coro; era bonito, vai dizer?! Batia uma emoção, porque de repente os adultos estavam ali, livres de tudo o que carregavam, de mãos dadas, como irmãos... ai ai...

Enfim, nessa vibe católica minha mãe me obrigou a fazer a primeira comunhão, já que eu era batizada pela religião porque meu pai era de família bem devota. Na realidade, não sei se foi por causa do meu pai ou por causa dos dois, mas com uns nove anos comecei a catequese aos sábados, sob protestos, porque era nos finais de semana, que foram feitos para aproveitar a vida não fazendo nada de útil e não para preenchê-los com compromissos religiosos. Eu não queria, mas a minha mãe disse que eu deveria fazer porque os catequistas amados e arrebanhadores de gado diziam para as crianças que quem não fazia a primeira comunhão não entrava no céu. Então eu entendi como era importante fazer isso porque, afinal de contas, não queria ficar no limbo quando morresse, junto de outras crianças pagãzinhas. Queria o céu, o paraíso.

A turma funcionava na minha escola, numa das salas de aula. Pense em quarenta pequenos demônios tocando o terror dentro da sala, era tipo isso. Quando o curso de catequese estava acabando e estávamos quase "graduados", o último passo antes da cerimônia formal era o de se confessar com o padre. Fiquei nervosa, né, porque havia algumas falas prontas pra dizer a ele, algo como: "padre, me perdoe porque pequei..." e eu não queria errar, porque imagina se antes mesmo que eu contasse meu pecado, eu não soubesse me expressar, ele não iria me perdoar mesmo! Inferno na certa! Fui, entrei na cabine de confissão, disse o que tinha de dizer e confessei meus pecados cabeludos de menina de nove anos e recebi como penitência rezar sei lá quantos "pai nosso" e umas trocentas "ave, Maria". Okay, de boa, fácil. Mas as últimas palavras do padre foram: "da próxima vez que vier se confessar, não use roupas curtas."

PORRA, eu fui com uma roupinha nova que minha mãe tinha me dado, era um shortinho e um topzinho, era um conjuntinho de lycra super comum na época, mas parecia que Deus não tinha curtido minha roupa especial para ir bater um lero com seu representante na terra; nunca mais me confessei depois daquilo e saí da igreja me questionando: a gente se confessa porque comete pecados, mas e o padre? ele não peca? por que o padre, que também deve ter seus pecados, é melhor do que eu a ponto de dizer o que eu tenho de fazer ou rezar pra me redimir dos meus erros? por que eu preciso de uma pessoa entre mim e Deus? Deus não está em toda parte? então não preciso de ninguém para interceder por mim diante dele além de mim mesma, nem preciso ir a lugar nenhum para falar com ele...

Saí toda questionadora e passei a rezar todas as noites, antes de dormir. Não era ave-nosso nem pai-Maria. Eu conversava com Deus de verdade, mas tudo bem que só eu falava porque ele nunca respondia. Mesmo assim, sentia uma conexão feliz com o divino. Começava sempre pedindo perdão por isso, isso e isso, e dava umas explicações a respeito dos "pecados" daquele dia. Depois, pedia que ele abençoasse o mundo inteiro, especialmente a minha família, meus amiguinhos, todas as pessoas do meu círculo de convivência e conhecimento, mesmo as que eu não gostava e quando eu pedia que ele abençoasse as pessoas que eu não gostava, sentia a brasinha da empatia brilhando no meu coração, do mesmo jeito que sentia na missa, era bom. Então falava com ele abertamente sobre algumas coisas que me incomodavam, que me alegravam e ia nesse lero até dormir.

Hoje eu vejo que conversar com Deus, era conversar comigo mesma; era ter a capacidade de refletir sobre as coisas que aconteciam na minha vidinha de criança e mesmo sendo uma coisa minha comigo mesma, não havia o que há hoje e é tão forte na vida adulta: o julgamento, a cobrança, a crítica. Naquela época, conseguia me despir das minhas dores e mágoas e me perdoava todas as noites, achando que conversava com Deus e que ele me abençoava, quando era eu mesma que fazia isso, quando me permitia falar e ouvir o que queria e tinha o coração aberto para novas oportunidades de errar. Era divina a relação que havia entre todos os meus eus de criança e só percebi isso agora.

Continua.

P.S.: No dia da primeira comunhão, tive que usar um sapato branco de verniz que machucava meus pés; mesmo usando meia-calça, meus calcanhares doíam; não foi legal.



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