sexta-feira, 14 de outubro de 2011
Parei
quarta-feira, 14 de setembro de 2011
Como foi pra mim
Eu fazia o tipo porra-louca-rebelde e fui pra tal festa usando um vestido de cetim bordô estampado com caras de bichinhos fofos que eram cor de creme, estava de meia-arrastão e com meu inseparável All-Star preto; no pescoço, usava uma enforcadeira de metal; eu adorava fazer o tipo que chama a atenção, e chamava, de fato. Minha melhor amiga estava comigo e foi uma noite divertida. Lembro de ter invejado os cabelos escorridos de uma menina que estava lá. Lembro disso até hoje, sabe-se lá por que.
Não me lembro do que houve naquele domingo, dia 24, exatamente um mês antes do meu aniversário, mas lembro perfeitamente do que sonhei naquela noite, que viraria a segunda-feira.
No meu sonho, eu estava em casa, não era a minha casa de verdade, mas era na ocasião. Dois homens entravam lá pra roubá-la e atiravam em mim. Fui baleada duas vezes e um dos tiros me acertou no pescoço. Eu não sentia qualquer dor, e me via caindo no chão em câmera lenta. Já caída, sentia o sangue escorrer formando uma poça espessa; eu sentia um enorme alívio e desfalecia. Parecia uma libertação, como se eu tivesse morrido. Acordei, então, no que era o meu quarto, deitada em uma cama de casal e minha mãe estava sentada ao meu lado, numa cadeira. Em frente à cama havia uma grande penteadeira com um espelho oval; eu me levantei, fui em direção ao espelho e vi os pontos que haviam sido dados no meu pescoço.
Acordei com uma estranha sensação. Era segunda-feira, e na escola ainda comentei com algumas pessoas que tinha a impressão de que algo fora do comum aconteceria, e aconteceu.
Fui pra casa na hora do almoço, como em todos os outros dias. No meio da tarde, minha mãe me liga. Ela disse que estava indo pra casa e que tinha algo muito sério a me dizer. O seu tom me perturbou profundamente. Pensei em milhares de coisas, sendo que todas elas a envolviam. Pensei que ela iria me dizer que tinha aids, que tinha sido demitida, que tinha alguma outra doença gravíssima. Fiquei com o coração pesado de maneira que eu não sabia explicar.
Quando ela chegou, me disse: "Teu pai morreu, ele se matou". Pronto, caí numa outra vida, paralela a tudo. Eu não sabia como reagir, não conseguia chorar, só não acreditava. Uma tia dela, que morava na ilha, tinha ligado pra ela e contado que naquele dia, de manhã, ele havia dado cabo da sua vida. A porra toda era inconcebível pra mim. Como assim meu pai morreu? Pior, como assim ele se matou? Era a notícia mais surreal que eu poderia receber. Pra mim, ele era um homem católico, dedicado ao trabalho e que condenaria qualquer pessoa que tivesse atitude semelhante, mas é claro que eu não fazia ideia de quem era o meu pai de verdade.
Aí, então, liguei pros meus irmãos, cobrando uma satisfação, pois a filha de longe não soube da morte do próprio pai pela família dele, soube por outros. Ouviu deles um telefone desligado na cara e a resposta de que haviam tido uma preocupação muito grande com a caçula. Ah sim, todos ficaram muito mexidos com o fato, mas a família, os tios de estirpe muito distinta, rica, fina e religiosa, tinham que enterrar de uma vez a vergonha que o filho mais novo lhes trouxera. Morreu em torno das sete horas da manhã e às cinco da tarde já estava sendo escondido no jazigo da família, junto com os seus pais e avós.
Que merda, eu não o via já havia seis anos e nunca mais o veria novamente.
Baixaram na nossa casa pessoas da federação espírita, lembro de um cara careca e barbudo, falando sobre a morte, tentando confortar e eu só tinha vontade de mandá-lo tomar no cu. Minha mãe teve os surtos de culpa tardia e se vitimou pela morte do homem que ela tinha passado a vida inteira detonando pra mim. Eu liguei pro carinha de quem eu era a fim na época, e que vivia me maltratando e me dando foras pra contar a novidade, esperando algum tipo de consolo. Ele, obviamente, não sabia o que dizer, mas eu queria ser apaziguada pela perda, procurando ânimo e pena, esperando que assim ele fosse me amar.
Usei a morte do meu pai, desde o primeiro dia pra que sentissem pena de mim, mas isso não deu muito certo. A noite já tinha aparecido quando eu achava que ia explodir se continuasse dentro de casa com todas aquelas pessoas estranhas dando condolências por um morto que já estava enterrado. Desembestei pela rua, e fui parar no prédio do meu cursinho, achando que conseguiria assistir à aula de física e esperando a piedade de quem estivesse por perto.
Não lembro quando foi que consegui chorar a morte dele, só sei que queria fazer de conta que aquilo não tinha acontecido. Não fazia nem uma semana que ele tinha morrido e eu inventei de ir a uma festa, sob os protestos da minha mãe. Era muita falta de respeito minha sair pra me divertir quando eu deveria estar de luto. A festa era em uma casa grande; lembro da escuridão, da música alta, das muitas pessoas que estavam lá e lembro também que dentro de mim só havia um silêncio gigante. Eu estava lá, mas não estava.
Um mês depois, foi meu aniversário de dezessete anos, em casa, com bolo e salgadinhos pra dois amigos que me suportavam. Era uma vida de bosta. Não sentia nada, a ficha não tinha caído, ainda.
Meu pai foi um estranho pra mim, o tempo todo. As lembranças que eu tinha dele, em sua maior parte, eram ainda do tempo em que eu era uma meninota e ele me chamava de galega. Minhas lembranças eram de tristes conversas pelo telefone, nas quais eu tinha que fazer o que mais odiava em toda a vida, pedir.
Ele nunca disse que me amava, e a coincidência de tudo isso foi o sonho. No dia em que ele morreu, eu sabia que algo estranho aconteceria, eu tinha levado um tiro no pescoço, e foi se enforcando que ele teve paz. Sempre esperei que ele tivesse o mesmo alívio e sensação de libertação que eu tive, quando caí ensanguentada e leve no chão do meu sonho. Nossas vidas se tocaram e eu pude sentir, então, um pouco do que ele buscava.
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
Atrás da porta
Minha mãe namorava o irmão desse homem, e tínhamos voltado praquela cidade depois de quase um ano fora. Recém-chegados, ficamos na casa da mãe deles. Lá, moravam muitas pessoas. A matriarca, que cuidava de uma loja de muambas junto com a filha única, que era separada de algum marido mau-caráter e carregava três filhos pequenos nas costas; o patriarca fora de atividades, um senhor acamado há algum tempo e que já vivera a glória que almejava sendo delegado na cidade; um filho mais novo, solteiro e também policial, mas com uma índole duvidosa; o outro irmão, namorado da minha mãe, desparafusado e professor de História, como ela, e ser essas duas coisas é quase um sinônimo; a empregada espevitada e o homem que mencionei no início.
A família inteira tinha algo fora do comum, não no bom sentido, mas no sentido de perturbações emocionais; tantas que formavam uma nuvem pesada no ambiente meio decrépito do lugar em que viviam. Estavam todos juntos, protegiam-se uns aos outros, mas sequer sabiam do que faziam parte.
Não sei ao certo se ele era o primogênito ou o caçula, sei que tinha o nome do pai, e que por sua cara, passaria tranquilamente pelo filho mais moço. Ele vivia quase que numa masmorra. Na cozinha, bem em frente à mesa de refeições, havia uma porta de ferro, com uma pequena janela de vidro vedada. Era como a porta de uma solitária em um hospício, mas lá dentro as paredes não eram acolchoadas e nem ele vivia com uma camisa-de-força branca. Ele morava lá, nu, num ambiente sem janelas, sem luz, sem móveis; havia apenas uma rede. A única claridade que entrava lá, era através do vidro.
Às vezes, quando a empregada abria a porta para lhe dar de comer, ele fugia. Corria pelado pela casa, indomável. Quando isso acontecia, chamavam sua mãe, que era a única capaz de apaziguá-lo. Deixava o filho manso, quase em transe. Quando ele ficava nervoso, gritava, e os seus gritos abafados pelas paredes, pareciam uivos desesperados. Ela lhe fazia a barba, quando já estava muito grande. E frequentemente o quarto era lavado, pois fedia à merda e comida estragada.
Ele não falava. Não sei se porque não sabia, ou se porque desaprendera, já que naquela casa ninguém estava disposto a ouvi-lo. Quando ficava manso, soltavam-no e até lhe vestiam uma cueca ou algo como uma fralda, não lembro ao certo, e ele dava um passeio pela casa. Tinha o olhar débil e lascivo, e constantemente tocava sua genitália. Babava, ria, comia com as mãos. As pessoas da casa faziam gracejos, aos quais ele respondia com um riso de deboche. Ele era franzino, mas tinha força física, e acredito que ele usava isso a seu favor. Se ele ficasse fora de controle, o que poderia acontecer? Ele não era tratado como um retardado, era tratado como um bicho, e eu tinha medo dele.
Não sei se ele é vivo ainda hoje, porque faz quinze anos que presenciei o que contei aqui, mas mesmo na loucura e na debilidade em que ele vivia, imagino que ainda tinha algum desejo de ser visto como gente, e não como o monstro escondido no quartinho da cozinha. Eu não o conheci de verdade, talvez a mãe dele o tenha conhecido ou talvez, ainda, ela apenas soubesse como amansá-lo para parecer que não havia nada de errado ou de diferente dentro daquela casa. Desprezo no cuidado, aquele homem simplesmente não existia.
terça-feira, 23 de agosto de 2011
Limpar ou não limpar?
(Aliás, mesmo não gostando do trabalho sem fim que demanda uma casa, é importante saber fazê-lo. Acho um absurdo gente que não sabe lavar um talher sem deixá-lo ensebado ou que não sabe fazer um feijão com arroz sem fazer drama de que não tem talento pra cozinhar. A gente aprende fazendo e isso serve pra mulheres e homens. "É de menino que se torce o pepino" já diria o ditado. Se você não aprende essas coisas quando pequeno, aos poucos, e a necessidade de fazê-las, é provável que você cresça sendo uma bela bosta. Não adianta ser bom na escola e não saber onde fica a vassoura; não adianta viajar pelo mundo e não saber lavar a porra da sua calcinha; não adianta ser lindo e sarado se você não sabe passar as suas roupas, mas enfim...)
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
Eu, escritora
Escrever, então, pensei, poderia ser uma boa... Mas sobre o que eu escreveria? Não sou imaginativa como os grandes escritores que criam personagens densos com histórias conflituosas e desfechos bem pensados. Achei que seria uma ideia escrever sobre mim, sobre as minhas vivências, sobre as minhas parcas impressões acerca do mundo, mas vendo agora que não sei sequer o que me excita na vida, descubro que sou uma farsa. Mas isso também é mentira porque já sei disso há tempos, e escrever realmente me faz feliz.
O problema é que nunca acreditei em mim, porque sempre tive os outros como referência, os outros que são melhores do que eu. Sempre que acreditei um pouco mais no meu potencial, bastava que olhasse pro lado pra ver que havia alguém acima, e isso me fazia cair. Caio todos os dias por não conseguir ver em mim mesma tudo o que tenho de único.
A autoajuda vem agora: ninguém é melhor do que eu posso ser; somos únicos em tudo. Eu busco referências ao lado que me desestabilizam, como se elas só servissem pra provar que não sou capaz de fazer o que quero. Esqueço, com isso, que eu também sou referência pra alguém. Alguém me lê, me acha boa e me visita todos os dias esperando que eu tenha escrito algo novo.
Alguém espera ouvir de mim algo que faça uma mínima diferença em sua vida. Eu posso tocar as pessoas; posso ser uma distração em meio ao trabalho, posso ser ridicularizada, posso me tornar uma lembrança agradável ou desconcertante, posso xingar e lavar a alma de alguém e posso também fazer alguém chorar, porque eu sou depravada, mas também sei ser dramática, melancólica, doce e adulta. Eu posso fazer com que você se veja através de mim.
A gente consegue fazer a diferença na vida de várias pessoas, todos os dias e, talvez, a graça de tudo esteja nisso. Estamos sempre marcando as pessoas que cruzam os nossos caminhos. Elas nos deixam marcas e deixamos impressões nelas também. É tudo muito óbvio, mas eu gosto de pensar nisso, e decidi que, mesmo que o meu alcance seja limitado, deixarei a minha marca escrevendo.
sábado, 6 de agosto de 2011
Infância IV
Os camarões do rio também eram gostosos, e vendidos pelas ruas em carrocinhas, a preços módicos. A menina não gostava muito do cheiro, mas o sabor... Ela aprendeu a gostar de peixe frito, de palmito de jussara, de macaxeira e de mingau de tapioca. Mas nunca conseguiu sentir nem o cheiro da maniçoba, tão apreciada por aquela gente; tacacá, também, não engolia.
Os sabores das comilanças eram geralmente realçados por uma pimentinha que a menina conhecia bem, mas não era porque gostava; conhecia o ardor da pimenta-de-cheiro desde os oito anos, quando uma vez, numa briga com o irmão, ele por vingança cruel de criança, esfregou-lhe uma dessas na boca da pequena. Naquele dia, de boca inchada e sem jeito de parar de arder, viu que nunca provaria seu molho amarelo.
Naquela cidade, a menina aprendeu a dançar carimbó, ouvindo Pinduca. Lá também aprendeu o que é brega, o ritmo musical, que tocava nos bares, nas rádios, nas casas dos vizinhos, a qualquer hora do dia ou da noite. Com esse som, os casais dançavam colados, rodopiavam e suavam de um jeito safado e, irremediavelmente, contagiante. Ela não gostava da música, mas não havia como não aprender ao menos as suas letras, visto que estavam por toda a parte.
Mas lá, naquele lugar, ela descobriu músicos talentosíssimos, que cantavam a região com todas as belezas que ela tinha, e ainda tem. Com nostalgia, a menina se despede do relato de hoje, com Osmar Júnior cantando o Norte.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
Sobre as pessoas que caem
Nunca achei engraçado ver alguém caindo, nem quando criança, e crianças podem ser bem escrotas ao verem alguém no chão, mas isso nada mais é do que o reflexo da educação que receberam de seus pais. A falta de educação e de solidariedade ficam claras quando o assunto é uma queda.
Fato é que todo mundo cai. Se você tem pernas, anda por aí, descalço ou de salto alto, pode cair. Você pode escorregar e cair de bunda; pode tropeçar nos seus próprios calcanhares e cair de joelhos. O cóccix sente o impacto e seu traseiro pode doer por semanas. Seus joelhos podem ficar ralados e com hematomas, e o mesmo acontece com as suas mãos, que o amparam. Suas mãos impedem que você caia de cara no chão e que quebre os dentes ou o nariz; suas mãos também impedem que se faça um corte no seu queixo.
São as suas mãos que o impulsionam para que você se levante do chão e para que, mais à frente, possa cair de novo. Pode ser que haja alguém do seu lado, em quem você possa se apoiar para não cair, mas também pode ser que você caia e leve essa pessoa para o chão consigo. Pode ser ainda que só você caia, e que ela o ajude a se levantar e a passar logo pela multidão, de cabeça erguida.
Você, em algum momento da sua vida, vai cair; é questão de tempo. As pessoas caem por diversas razões. Elas caem porque andam distraídas e a queda vem para despertá-las; elas caem por medo de cair e também por excesso de autoconfiança. Você pode cair andando em um terreno plano; subindo ou descendo um lance de escadas; pode cair do alto de você mesmo.
Caímos sempre, todos os dias, e cair no meio de uma rua movimentada nos remete a uma vergonha tão intensa, que só gostaríamos de ter caído em um buraco negro, que nos tragasse e nos levasse para longe do riso alheio, porque cair é mais do que apenas perder o equilíbrio; cair é ficar exposto, vulnerável. Cair é ficar pronto para ser chutado, pisado, levado por quem passa.
Melhor é quando caímos sozinhos e podemos rir de nós mesmos; podemos praguejar o chão, nossos sapatos, os degraus, os buracos, as poças que nos fazem escorregar ou mesmo os nossos pés, por não terem visto que o tombo era iminente.
Hoje choveu o dia todo. Ainda chove, na verdade. Saí de casa de botas com solado de borracha, mas eles não puderam me conter. No piso molhado, em algum milésimo de segundo aconteceu: senti meu pé torcer e quando vi, já estava no chão. O joelho direito ardia pelo atrito com o jeans. Xinguei tudo ao mesmo tempo e levantei. Fui andando, mas pelo rabo dos meus olhos, vi as caras maledicentes de quem tinha presenciado o meu tombo. Eu não olhei para trás.
Depois, analisei os estragos. Palmas das mãos doloridas e pretas do chão sujo; joelhos ralados e instantaneamente roxos. Acontece. Amanhã caio de novo.
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Infância III
Por vários dias, depois de ter voltado do hospital, a menina viu sua mãe no choro sofrido de quem perdeu uma cria; com os seios empedrados e com febre por não poder alimentar seu bebê. Ela via aquilo e não entendia a dimensão da dor, da separação depois da longa espera por ficar juntos, por conhecer de fato quem se carregou no ventre, pela convivência e aprendizado que nunca viriam.
Naquela cidade, a menina acompanhou o sofrimento dela tantas outras vezes, como quando ela perdeu o amigo tão querido. Ele era bonito, tinha os olhos claros, e ela guardava uma foto 3x4 em que ele parecia um jesus borrado. Ele era tão novo pra morrer, mas se foi em um acidente brutal de motocicleta. Nas estradas do interior, cheias de cascalho, ele derrapou. Chegou a ser levado pro hospital com vida, mas tinha perdido um braço, e dizem, que pela enorme ferida do braço amputado, podiam ver seu coração.
Não é assim que se esperava ver o coração de um rapaz tão bom e católico. Ele não acreditava no além, e várias vezes depois de sua morte, a mãe da menina sonhou com ele; remoía-se de culpa por ele ter partido brigado com ela, mas essa foi só uma das muitas culpas que ela carregou pelo tempo em que viveu naquele lugar.
A menina também sentia culpa. A primeira grande culpa que sentiu foi pela morte do pequeno cachorro de pelo encardido que tinham. Ele era adorado pelas pessoas da casa, mas um dia, a menina esqueceu o portão aberto, até que um homem gordo bateu à sua porta perguntando-lhe se o cachorrinho de pelos encaracolados não era dela, ao que ela respondeu "sim", e foi quando o homem disse que ele estava na esquina, morto. Havia sido atropelado. Ela correu, chorando. Viu-o mole, o sangue tingiu seu pelo de tapete, seu pequeno focinho preto, molhado e sujo de areia, não fungaria mais nada.
Foi a primeira vez que perdeu alguém e sentiu enorme culpa por isso. Fora a responsável pela morte de um ser e isso era terrível. A menina não tinha nem dez anos ainda, e já era responsável por tirar do convívio dos seus um dos seus.
Naquela cidade, a menina tivera incontáveis gatos e cachorros, que tiveram incontáveis ninhadas de animaizinhos que foram amados e queridos por todos os cantos das muitas casas em que ela morou. Depois de um tempo, um de seus quintais tornou-se um verdadeiro cemitério de animais. Os bichinhos morriam, atropelados ou por doenças que os faziam cagar sangue. O cheiro daquela merda, era o cheiro da morte, da doença que não tem volta, que aniquila. E ela chorava sobre eles, e depois seu irmão mais velho os enterrava no fundo do quintal, em meio às árvores e folhas caídas.
Logo a menina percebeu que quando a morte aparecia, seres humanos e animais eram iguais. O cachorro do vizinho, atropelado por um caminhão caçamba, e deixado no asfalto com seu crânio esmagado e seus lindos olhos azuis saltados das órbitas, era igual à criança atropelada pelo ônibus na frente da escola; igual à mulher que andava de bicicleta e que também fora atropelada por um ônibus.
As doenças matavam os bichos, assim como matavam as pessoas, os amigos de sua mãe, com caras assustadoramente cadavéricas, dentro de caixões baratos. Amigos morriam afogados, com seus buchos inchados e línguas pra fora, olhos saltados como os de sapos-boi que quacham sob as casas de palafita daquela cidade.
domingo, 17 de julho de 2011
Infância II
Maré alta, maré baixa, todo mundo conseguia ver São José. E quando a maré estava baixa, tão baixa que se podia andar naquele chão, garotos se juntavam para jogar o que eles chamavam de futelama. Havia pedaços de madeira cravados no solo que faziam as vezes de traves, e todo mundo que jogava, saía de lá coberto da lama meio marrom, meio cinza.
Naquela cidade, a menina morou duas vezes no mesmo cortiço, e o cortiço ficava perto da catedral, e atrás dessa catedral, havia um prédio enorme que fora muito anos atrás um hospital psiquiátrico, e depois uma escola. Ele estava fechado e era administrado pela Igreja. Seu irmão, arteiro que era, uma vez entrou lá pra explorar o que meninos de doze anos exploram. Entrou não sabia como, junto com um vizinho, e fazendo barulhos lá dentro entre carteiras velhas, acabou chamando a atenção do padre. "Quem está aí? Não gosto de assombrações!". Ele saíra de lá depois de assustar o pobre pároco.
Juntavam-se em bando, sob a luz do poste que ficava no meio-fio daquela travessa, para conversar e brincar com toda a molecada que circundava o lugar. "Ô, Giiiilson!!!", chamava a mãe de um deles, e logo todas as mães berravam em coro, porque já estava na hora ir pra casa.
Ali também, havia uma casa de dois pisos, que estava em construção eterna, com uma montanha de areia na sua frente. Durante a semana, a menina e seus vizinhos pulavam e rolavam sobre aquela areia como cachorros que gostam de deixar seu cheiro nos lugares por onde passam. Nos fins de semana, com a construção fechada, pegavam enormes caixas de papelão e levavam para dentro da casa. Instalavam-se nelas e faziam de conta que estavam em uma nave espacial ou em um avião. As conversas eram de "gente grande", porque pilotar uma nave não era coisa pra crianças.
Ali, naquele monte de areia, não havia só areia, e também não havia só cocô de cachorro. Havia tábuas, com pregos virados para cima, e num deles, no meio da brincadeira, a menina fincou-lhe o pé. Aiii, o prego entrou inteiro, bem ao lado do dedão! Atravessou o chinelo de borracha, e daí só se via dor, sangue e areia; aquela sujeira típica de machucados infantis. Naquela ocasião não precisou de pontos, mas a anti-tetânica foi indispensável; o prego estava enferrujado, claro.
Naquela cidade estupidamente quente, em épocas de chuva, apareciam baratas cascudas, mas não eram simples baratas. Eram baratas do tamanho de mãos adultas, com cascos que pisados, não eram destroçados como os das baratinhas domésticas que se vêem por aí. Pior de tudo é que elas voavam... Pior ainda é que elas surgiam aos montes. Quando a menina acordava de manhã para ir para a escola, no caminho via duas grandes variedades de coisas pelo chão. Mangas e caroços de mangas, porque lá havia inúmeras mangueiras, e as baratas. Podiam ser varridas, pisadas. Tinha-se que escolher onde pisar, porque elas estavam por toda a parte; e mortas. A menina nunca soube porque elas amanheciam mortas, mas era assim que amanheciam. À noite voavam, picavam, aterrorizavam-na e, de manhã, estavam mortas. Eram como um pesadelo de verdade, que durante o dia podia ser visto, mas não fazia mal a ninguém.
E não é porque só fazia parte da imaginação dela, que não poderia lhe fazer mal, ou bem.
quinta-feira, 14 de julho de 2011
Cheiro feliz de meninice
Fiquei tão distraída pensando que esse cheiro tinha aparecido para mim como o prenúncio de coisas boas, que quase fui atropelada por um carro vermelho. Eu não olhei para atravessar a rua, como não olhava quando era criança.
Quando o carro me tomou de sobressalto, dancei no ar, de susto. Mesmo assim, o cheiro permaneceu. Fui e voltei com ele, e amanhã é o último dia de aula dela. Teremos férias, como quando eu era pequena.
terça-feira, 5 de julho de 2011
Infância I
Das praias de água azul, foi conhecer o rio, enorme, tão largo que quase não se via a outra margem. Aquele rio de águas escuras e ao mesmo tempo doces escondia toda a história daquele povo, daquele lugar onde ela foi morar.
Lá, as meninas andavam só de calcinhas pelas ruas sem asfalto. As casas eram de madeira e na cidade não havia prédios. A escola em que estudava também era de madeira, e ela não tinha muitos amigos, nenhum, na verdade, porque era vista como diferente da maioria. As pessoas de lá tinham traços caboclos, indígenas e a menina branca, de nariz fino, dentes separados e comportamento introvertido não era das mais agradáveis.
Naquela cidade, que era banhada pelo maior rio que existe, havia um lugar que chamavam de Beira-Rio, e ela era acostumada com a Beira-Mar. De salgada pra doce, de mar azul pra rio marrom. Lá na frente da cidade havia inúmeras carrocinhas com enorme panelas de óleo fumegante, onde os donos desses carrinhos fritavam batatas, e as batatas eram colocadas em copinhos descartáveis e vendidas com um pouco de queijo ralado e um palito. Ela as espetava e via o rio. Era a programação de todos da cidade nos fins de semana. Na época em que só os refrigerantes em garrafinhas de vidro eram populares, esses mesmos vendedores de batatas-fritas, viravam a garrafa de Coca-Cola em um pequeno saco plástico transparente, davam um nó e colocavam nele um canudinho. Era estranho. Bebidas em sacos, comidas em copos, mas era divertido.
Naquela cidade as pessoas também gostavam muito de redes, redes eram mais comuns do que camas e a menina gostava de se embalar nelas. Eram grandes e divertidos balanços quando ela estava acordada, e quando queria dormir, eram como o aconchego confortável de um colo de mãe.
Mas aquela cidade, tão no meio da floresta, também tinha muitos animais rastejantes, e qual foi a surpresa, então, quando um dia, enquanto a menina dormia na rede, uma cobra restejou em direção a ela, colocando-se bem embaixo de onde a pequena estava. Mal pior não aconteceu, porque um vizinho destemido e já acostumado com tais visitas, veio com um terçado dar fim ao animal.
Viveu ela em inúmeras casas com quintal e esgoto a céu aberto. Quando chegava da escola, gostava de parar em frente a sua casa para ver, por debaixo da camada verde de limo sujo, pequenos vermes e girinos que ali se criavam. Eram pequenas vidas asquerosas que se moviam aleatoriamente, como se se debatessem querendo sair dali.
Em um terreno baldio do lado de sua casa, havia também um enorme formigueiro marrom, onde moravam centenas de milhares de formigas de fogo. A menina gostava de perturbá-las. Pegava um pequeno graveto e desmoronava toda a cidade das pequenas raivosas. Várias vezes saíra de lá correndo, por ter sido mordida por várias delas nos pés, mas ela sempre voltava pra desarmonizar o micromundo.
Crescia assim, mudando de casa, de escola. E já não podia mais andar só de calcinhas pela rua, apesar do calor desumano daquela terra.
quinta-feira, 16 de junho de 2011
Ático
Eu subi, e não tinha qualquer intenção de fazer besteira. Trabalhava naquele prédio, já havia cinco anos. Cinco anos indo quase todos os dias até o sétimo andar. Pegando o elevador com aquelas pessoas. Nunca simpatizei com nenhuma delas, mas dividíamos quase todos os dias a caixa claustrofóbica. Eu não ligo pra elevadores, já fiquei preso em alguns. Não dá tempo nem de peidar e o peido feder, porque o socorro sempre vem rápido.
Eu cheguei lá em cima depois de achar por alguns segundos que isso não aconteceria nunca. Quando você está acostumado a descer sempre no mesmo andar, e entra no elevador pra descer em um andar mais alto, parece que você não chega nunca.
Mas eu cheguei. Subi mais um lance de escadas até o ático. O vento batia forte, muito forte. O vento seco gelava meu rosto e me fazia sentir vontade de sair voando. Fui em direção ao parapeito, encostei nele e olhei pra baixo. Vinte e um andares de empresas, de pessoas, de insatisfação e de gente que se faz de louca. O ambiente de trabalho é sempre uma merda.
Olhei pra baixo e vi umas "formigas". Quis dar uma puta escarrada pra ver onde ia parar. Ninguém iria descobrir, mesmo assim confesso que esse clima de empresa, firma, serviço sempre me passou a impressão de que ainda estamos na escola, e que sempre vai haver dois tipos de filhos da puta querendo te foder: um superior pra te chamar a atenção e um "colega" pra te dedurar por qualquer coisa ou fazer fofoquinha.
Não sou sádico nem nada, mas só quem trabalha nesses lugares sabe o que é pensar em ir armado para a "companhia".
Que merda, acho que pior do que ter alguém mala é ter alguém que tem o desplante de se levantar da sua cadeira, ir até o banheiro e voltar de lá fedendo a desodorante barato. Fora o cheiro de desinfetante atalcado que emana do banheiro feminino.
Mas lá no ático, eu não era obrigado a passar por essas provações diárias. Eu, homem equilibrado, benquisto por todos, com o salário razoável e concernente com a função, olhei lá pra baixo de novo, repousei os braços no parapeito e a cabeça nos braços. Depois de mais um dia em que quase não tive tempo pra nada, depois de mais um dia repleto de atribuições, encheções e complicações, eu vi que mesmo tão cheio, meu dia era apenas vazio, vazio em toda a sua porra de rotina.
Eu chorei então. Chorei, solucei, sequei a salmoura das lágrimas na minha gravata. Chorei mais um pouco. Mentira, chorei tanto que nem o vento seco conseguia dar conta. Chorei compulsivamente.
Fiquei com a cara inchada, o nariz entupido. Então aproveitei e dei a escarrada que queria. Ela subiu quente e salgada pela minha goela. Me recompus e voltei ao sétimo andar.
sexta-feira, 10 de junho de 2011
sonhos da semana
Em algum momento do sonho, eu morava em uma casa com um chão de madeira apodrecida, no qual eu pisava e ele ia afundando.
Em outro momento, havia um homem, com uma cara de estivador pesada! Ele tinha barba e parecia mal encarado. Ficava atrás de um balcão pra atender alguém, não sei no quê. Mas atrás desse homem e desse balcão havia o mar, e o mar batia nele, de uma maneira calma, com uma água verde e corrente. De repente a água parava, e havia peixes mortos de vários tamanhos, e agora a água parecia suja e fétida. No meio dos peixes que boiavam, havia um enorme e feio, e depois eu via uma mulher morta, tinha umas feições meio indígenas. Me assustava e saia correndo e gritando.
Hoje, novamente sonhei com o chão de madeira podre. Eu morava em uma casa toda de madeira, e o assoalho parecia firme, mas andando pra lá e pra cá, eu percebia que uma parte dele estava mole. Uma mulher gorda e simpática, com cabelos encaracolados e mãe de meninas gêmeas que estava por lá, vinha em minha direção com um toco, para cutucar o chão. Mexendo nele, ela conseguiu puxar a madeira velha. Era um pedaço grosso, com o seu meio amarelado, e eu olhava pr'aquilo com certo nojo.
Esses sonhos recorrentes com água e madeira... Fico pensando o que querem me dizer...
Em outro pedaço do sonho, eu estava sentada no chão, encostada na parede de algum lugar, com um grupo de amigos que de fato conheço. Ao meu lado, estava sentado um colega, o qual eu carinhosamente afagava sua cabeça, e sentia seus cabelos finos em minhas mãos. Recostado em mim, eu sentia um calor aconchegante, era quase um flerte.
terça-feira, 7 de junho de 2011
Conversa de namorados
- Tudo.
- Eu pego você aí?
- Tanto faz. Se você quiser, eu posso te pegar.
- Não sei se fica bem... Apesar de que mais tarde nos pegaremos de todos os jeitos possíveis...
- Você não presta, né? E por que não fica bem? Por acaso tem algo de errado nisso, em você me pegar?
- Não, nada de errado, mas é que da última vez, você sabe... Fiquei um pouco constrangido com o que aconteceu...
- Bobagem! Isso acontece nas melhores famílias...
- Na minha nunca tinha acontecido. Será um sinal?
- Sinal de quê? De chuva? Tá frio, mas acho que não chove mais hoje.
- Sei lá... Você entendeu... Pode ser um sinal de que as coisas estão indo rápido demais...
- Rápido demais? Ainda acho que isso não é um sinal de chuva...
- Não falo da chuva. Falo da gente.
- Ah, a gente... Não tinha pensado nisso... Sabe no que eu pensei hoje?
- Em quê?
- Pensei em matar.
- Em se matar??? Oh, meu Deus, não diga isso nem de brincadeira!
- Mas eu não disse me matar, eu disse que pensei EM matar. Você não acha que algumas pessoas deveriam morrer?
- Ah tá... Sim, acho que algumas delas... Mas por que isso agora?
- Sei lá, me ocorreu... Uma coisa meio lei da selva, sabe?
- Sei... Mas acho que estávamos falando sobre nós...
- Ah, claro! Desculpa.
- Tudo bem. Você acha que eu deveria levar meu casaco marrom?
- Aquele bem grosso? Sim, acho. O frio está mesmo implacável, não?
- Até que agora à noite, sinto que está mais quente do que estava mais cedo.
- Não sei. Não saí à rua hoje, mas como aqui dentro é sempre gelado...
- Você está distante...
- Sim, estou distante de você, meu amor. Mas nada que dez minutos de carro não resolvam.
- Eu moro há mais de dez minutos de carro da sua casa.
- Eu sei. Mas em dez minutos dentro do carro podemos ficar tão "unidos"...
- Hehehe. Você é pior do que eu pensava...
- Pior? Pensei que você gostasse disso. Que todos gostassem.
- Eu gosto, e você consegue ser ainda mais surpreendente no frio.
- Claro, meu amor! Não deixemos cair na rotina o que o mal começou...
- Mal começou ou começou mal?
- Já disse que essas coisas acontecem. Relaxa que eu vou cuidar de você.
- Vai mesmo?
- Melhor do que qualquer mulher já cuidou antes.
- Assim me sinto mais seguro...
- E você deve se sentir assim mesmo. Segurança é tudo em um relacionamento. Escuta, eu te pego!
- Ok. Estou te esperando então.
- Beijos!
- Beijos, te amo.
- Tchau.
Carreguei minha arma, coloquei-a no bolso do casaco e fui buscar meu amado. Eu vou cuidar dele, como nenhuma mulher cuidou antes.
sexta-feira, 15 de abril de 2011
M & M
Mesmo assim, quis olhar os demais. Logo embaixo da sua foto, havia a de outro . Ele era pretinho, pequenino como ela, e chamava-se Espirro. Vendo mais fotos, vi que apareciam juntos. Eram da mesma ninhada, daí pensei que se fossem dois, um haveria de fazer companhia ao outro, e por isso, nunca estariam sozinhos.
Estava decidido. Adotaria os irmãos. Liguei para a moça que os acolhera e ela me contou a história deles. Disse que uma pessoa havia ligado para ela, avisando que se ela não ficasse com a ninhada, mataria todos. Ela apiedou-se dos pequenos e os acolheu.
Me disse todas as coisas que se diz para uma "mãe de primeira viagem", e ficou especialmente preocupada quando eu disse que morava em um apartamento sem redes de proteção. Deu o telefone e o endereço de uma clínica que os castraria por um preço camarada, e me deixou ciente de toda a responsabilidade que envolvia a adoção dos animaizinhos.
Eu consenti com tudo, disse que providenciaria as redes, que os levaria ao veterinário e que cuidaria deles com carinho.
No outro dia, à noite, ela chegou com eles. Vinham dentro de uma cestinha de vime e cheiravam a carro novo, por causa do banho a seco que haviam tomado. Eram tão pequenos que cabiam cada um em uma mão.
Assinei um termo, ouvi suas últimas recomendações, e naquele dia mesmo já tinha me preparado para recebê-los, comprando caixa de areia, areia, ração para filhotes, toca e tudo o mais.
Pronto, agora tínhamos um casal de gatinhos.
Eles eram graciosos, e a Ana caiu de amores pelos dois imediatamente, até o Bruno que não era muito de bichos, gostou deles.
Mostrei a eles a caixa de areia, com a qual tiveram instantânea identificação. Coisa de gato. E a primeira surpresa veio pela manhã. Quando acordamos, havia patinhas de cocô no sofá e em cima do meu notebook. Já batiazaram a casa e a caixa de areia com uma tremenda diarreia, resultado da troca de ração. Mas isso era de se esperar...
Decidido, então, que enquanto seus pequenos intestinos não estivessem acostumados à nova comida, eles domiriam na área de serviço para evitar maiores surpresas pela casa.
No terceiro dia, levamos os pequenos para que fossem esterelizados. Foram dentro de uma sacola de praia, sem grandes protestos. Entregamos as criaturinhas para o veterinário sob o olhar de "oh, eles são tão pequenos!" da secretária. Em menos de meia hora, estavam de volta na sacola, inconscientes, moles e com as linguinhas para fora, para evitar que sufocassem. Disse o veterinário que não deveríamos alimentá-los até o outro dia, e que dentro de algumas horas eles acordariam.
Fomos para casa, e os colocamos dentro da toca. Lá, eles ficaram, até o momento em que, como pequenos gatos zumbis, foram acordando. Arrastavam-se e tombavam. Caídos ficavam, até tentarem se levantar novamente, com enorme dificuldade e muitos tremiliques. Assistimos àquilo num misto de pena - por eles - com muito escárnio. Era muito engraçado vê-los daqueles jeito, como que embriagados. Até vídeos temos, para a posteridade.
No dia seguinte, já pulavam e sassaricavam pela casa, como se não tivessem pontinhos de nylon nos seus corpinhos frágeis.
Logo as redes foram instaladas em todas as janelas, e eles já estavam habituados à nova vida.
Esqueci de dizer que os re-batizamos. Chamavam-se, agora, Marte e Marta.
Como todos os gatos, eles só atendem pelo nome quando lhes convêm, ou seja, quase nunca.
O Marte, na verdade, tinha um nome muito adequado à sua condição - Espirro -, visto que eu acredito que ele seja um gato asmático, com desvio de septo ou algo do gênero! Pois vejam vocês que o animal dorme de língua pra fora, com a boca meio aberta, e volta e meia espirra. Deve ser alergia aos pelos!
Cada um tem suas peculiaridades, e elas já vinham me pedindo que escrevesse a respeito, há algum tempo.
Os dois têm uma tara por Halls, sim, aquele do "alívio refrescante". Eu tenho os pacotinhos sempre comigo, e eles não podem vê-los, que abocanham os ditos e saem brincando com eles pela casa. Várias vezes já acordei e me deparei com vários drops jogados pelo chão da sala. As embalagens estão sempre cheias de furos de dentes. Eles são tão caras de pau que chegam a fuçar a minha bolsa para roubá-los.
Outra coisa curiosa é o fetiche que a Marta tem pela estátua de São Francisco de Assis, de cerâmica, que tenho no hall de entrada do meu apartamento. Sempre que a porta está aberta, ela vai lá, se esfrega generosamente no santo e o lambe. Lambe como se ele fosse feito de peixe, lambe com devoção! Nunca vou entender o porquê disso...
Seu irmão também tem algumas preferências exóticas: adora "comer" cotonetes. Não que eles os coma de fato, nada disso, mas adora arrancar o algodão das pontas da haste e brincar com ela até que a enfie embaixo de algum móvel inacessível. Se ele vê o copinho onde eu guardo os cotonetes, com prazer, vai lá e pega um com a boca e, se pudesse, destroçaria uma caixa inteira deles! A Marta, por sua vez, é uma gata que faz neve com o papel higiênico do banheiro. Sim, neve! Produzida por suas garrinhas afiadas e seus dentinhos pontiagudos. Porta do banheiro aberta é sinônimo de espetáculo natalino aqui em casa!
E eu fico quase louca!
Porque, é claro, além dessas peripécias, eles já aprontaram muitas outras! Louças quebradas, papéis roídos - eles são como cabras -, bolas de pelo pela casa, meu sofá e as quinas das camas, que são box, destruídos! Se tenho vontade de jogá-los pela janela pelo menos três vezes por semana? Oh, sim, tenho muita!
Mas assim como eles são umas pragas, são também extremamente amorosos, e não é só por interesse!
A Marta já enfiou as unhas nas minhas costas a ponto de sangrar feio. O Marte já meteu as unhas no meu seio e pescoço de um jeito que fiquei com as cicatrizes dos pequenos buracos, e a última dele fez com que parecesse que eu era uma viciada em drogas injetáveis, pois ele enfiou a garrinha bem na junção do meu braço com o antebraço. Mas ok, coisas da vida.
A Ana também, volta e meia, é vítima de uma brincadeira selvagem deles, com direito a unhas e dentinhos, mas nada grave.
A compensação para a selvageria dos felinos vem em forma de amor ronronante, de olhares compreensivos de dois gatinhos que se esfregam na gente, deitam sobre o nosso peito, aninham-se na nossa barriga, esfregam suas cabecinhas no nosso rosto incansavelmente; esfregam todo o seu corpinho peludo contra o nosso, e se a gente permitir, esfregam, carinhosamente, até suas "bundinhas peludas" na nossa cara!
Eles são inteligentes, sacanas a adoram aprontar. Quando sabem que fizeram algo errado, saem derrapando de tanto que correm. Sua lutas e brincadeiras são uma atração à parte! Nem preciso dizer que a Marta quase sempre leva a pior e que, às vezes, eu preciso apartá-los. Eles não são muito de miar, mas se comunicam que é uma beleza. Estão quase sempre juntos, e quando não estão, um mia para chamar o outro. Um dá banho no outro, coisa, aliás, que fazem frequentemente. Dormem juntos e comem juntos e, obviamente, quando pode, o Marte rouba a comida da Marta, coisa de gordo.
São abusados e, se eu deixar, viram senhores da minha cama. Mas já andei cortando as asinhas deles...
Esses animais são um espetáculo! Destroem a casa durante a noite, se matam brincando na sala, mas todos os dias, quando eu abro a porta do meu quarto, eles estão ali, esperando... Por comida é claro!
Sempre ficam no banheiro comigo enquanto eu tomo banho. Deitam sobre o tapete em frente ao box, e depois que eu saio, recebo da Marta lambidas nas pernas. Depois disso, eles entram no box, tomam a água quente que vai se esvaindo pelo ralo e procuram atentamente por mosquitinhos, para exercitarem seu lado predador.
Apesar de terem uma pancinha dependurada, em virtude de serem esterelizados, e apesar de o Marte ser um gato obeso com cara de deboche, eles mandam ver nas baratas que de vez em quando aparecem por aqui. A Marta, com seu porte mais delgado, e com a barriga mais cuti cuti que Deus já fez pra um gato, também é uma boa caçadora de insetos.
Aliás, a Martinha é uma gatinha doente. Ela tem leucemia, doença que eu não fazia ideia que poderia acometer felinos até descobrir que ela tinha essa tal coisa. Ficou sem comer, sem tomar água... - me lembrem que eles também têm fetiche pela água da privada, não para beber, mas adoram enfiar as patas lá dentro e sair pela casa fazendo arte molhada! - Achei que fosse perdê-la.
Em dois dias, ela estava anêmica. Foi internada, fez transfusão de sangue e tudo! Exames, comida especial. Chegou na clínica totalmente caidinha. Depois de ter um sanguinho novo no corpo, estava histérica! Quando viu a mim e à Ana, miava pedindo para que lhe tirassem daquele lugar.
Depois de dois dias fora de casa, depois de eu ter ficado mais de 700 reais mais pobre, depois de ter ido chorando para o trabalho, e de ver minha filha chorando compulsivamente, achando que a gatinha mais amiga dela, aquela que tanto a amava e demonstrava todo esse amor repousando calmamente sobre ela todas as vezes que ela assim queria, depois de achar que a criaturinha não resistiria, ela se recuperou. É certo que não sabemos por quanto tempo ela se manterá bem, mas faz quase três meses que ela está serelepe quebrando tudo por aqui com seu irmão meliante e dentuço.
Ia me esquecendo de contar que o Marte tem um fraco por bebidas alcoólicas. Ele toma cerveja, e eu não descobri isso oferecendo a ele, não. Foi pura casualidade. Lata aberta numa reunião de amigos por aqui, e lá foi o gato ver o que tinha na dentro. Adorou o líquido que ficava nas bordinhas... Ia atrás de outras para beber mais. Até queria vê-lo bêbado, mas poderia ser letal, então melhor não levá-lo para o mau caminho...
A última dos irmãos foi essa semana. Cedo, a Ana me acorda dizendo que há penas pela sala e cozinha. Abro a porta, vejo penas pretas, pluminhas... Muitas delas... Não tenho nada com penas em casa... Então imagino que tenham "brincado" com um passarinho... Mas não vejo passarinho algum. Temos que sair. Trabalho, escola, compromissos. A casa fica como está. À noite, o Marte dá a deixa, deitando no chão e enfiando a pata o máximo que pode embaixo de um móvel da sala. Quando eu chamo a atenção dele ele, no susto, tira a patinha, e junto com ela vem mais um pluminha, e eu penso: "Puta que pariu, achei o passarinho!". E não deu outra.
Puxei o móvel, e lá estava ele, pequeno, duro, meio depenado... Mistério resolvido. Embaixo do móvel também estavam umas quatro ou cinco embalagens de Halls... A brincadeira acaba para eles quando enfiam os "brinquedos" em lugares que suas patinhas não alcançam...
sexta-feira, 11 de março de 2011
Nel Mezzo del Camim
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
Olavo Bilac
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Solidão
O silêncio do mar é inebriante.
sábado, 19 de fevereiro de 2011
O tema preferido
A morte sempre foi uma inspiração à minha escrita. Falar sobre ela, sobre o apodrecimento da matéria é algo que me excita e, ao mesmo tempo, me mostra como somos frágeis diante de qualquer coisa.
Nosso corpo funciona magnificamente, até que ele padece. Basta cair de mau jeito e bater a cabeça, pronto, você pode ter um traumatismo craniano e sangrar até morrer. Se você tiver uma diarreia ou uma gripe muito forte e não se cuidar, pode acabar morrendo.
Somos tão frágeis quanto formigas. A qualquer momento podemos ser esmagados pela vida, pelo tempo, pelas nossas atitudes e escolhas.
Particularmente, gosto das mortes brutas. A ânsia ao ver um corpo transformado numa massa sangrenta é algo repulsivo, mas que traz enorme reflexão e vazio. Corpos mutilados, estripados, aniquilados, degolados mostram que não somos nada.
Por muito tempo tive um sonho repetitivo em que duas moças eram atropeladas por um carro e seus corpos não eram mais do que um amontoado de carne grudada ao asfalto. Via com detalhes as formas asquerosas de seus órgãos estourados , a carne vermelha; cabeças esmagadas, olhos saltados, cabelos junto a secreções e ossos esmigalhados. Perdi a conta de quantas vezes as vi. Havia repulsa, mas havia algo maior que eu não saberia descrever, mas que a morte delas queria me mostrar.
Depois desse sonho, tive um outro, igualmente incômodo, mas que envolvia muito mais gente. Sonhava que estava às voltas do hospital da cidade onde cresci, e quando lá entrava, nossa! Era como um açougue, pois havia corpos por todos os lados, que haviam sofrido as mais diversas dores. Havia sangue pelo chão, enfermeiros que pareciam não ligar para a situação, e os corpos amontoados em salas esparsas que eu podia ver, andando pelos corredores do lugar.
Sinto angústia por sonhar com isso, mas não tenho medo. Estão mortos. Apesar disso, quando via que o sonho ia se encaminhar novamente para o hospital que eu já vira outras vezes, me indagava por que estava sonhando com aquilo de novo. Não tenho respostas.
Às vezes me imagino morta da forma mais aterradora que eu possa... Tenho a impressão de que uma morte estúpida e grosseira é muito mais real do que aquela que acontece num leito de hospital. Pra ela ser de verdade, os bombeiros têm que catar você do asfalto com a ajuda de uma pá, e reclamar um pro outro: “Odeio meu trabalho”.
Morrer faz sujeira, pois somos imundos por dentro, somos apenas um monte de excremento ambulante, até que viremos novamente excremento embaixo da terra, ou de uma carro, ou de uma ponte.
Morrer parece ser um alívio tão grande... Mas só os torpes conseguem, só os covardes conseguem a morte gloriosa.
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
"Sagacidade aristofânica:
Em Arqueologia dos Prazeres, de Fernando Santoro
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
Sobre ser mãe
Imagine você, senhora da sua vida e do seu destino; agora, imagine-se com um filho. Pronto, você não tem mais controle, sua vida não é mais sua, sua vida agora é duas; a sua e a dele, sendo que sem ele, você não vive mais, não plenamente, não como antes, e um dia você não poderá mais dizer a ele o que fazer e como fazer. O filho vai viver a vida dele, e pode até se desligar de você, mas você... Você estará para sempre ligado a ele.
Durante nove meses eu fui o abrigo seguro e aconchegante que nutriu uma menina e fez com que ela se desenvolvesse perfeitamente. O que eu ganhei? Além dos seios caídos, das estrias por toda a parte e da barriga murcha e vazia, ganhei um título: o de mãe. Sonhava com ele só quando era criança, quando ter um bebê parecia encantador, parecia a mais nobre de todas as funções que uma mulher poderia ter.
Filhos são para a vida toda, mesmo quando se vão, mesmo quando somem, mesmo quando morrem.
Crianças demandam atenção, tempo, amor, disciplina, educação, afeto, colo, conforto, paciência, disposição; filhos exigem tesão! Tesão para acordar de três em três horas, e ouvir o choro da fome que não consegue ser expressado de outra forma, por enquanto. Tesão para parecer que você está de mudança cada vez que sai de casa carregando uma sacola enorme com fraldas, pomadas, lenços, paninhos, mudas de roupa, mamadeiras e chupetas, fora os brinquedinhos, ah, os brinquedinhos que acalmam...
Você tem que ter muito tesão para lavar as roupas de um bebezinho à mão, dar banhinhos gostosos, ninar, levar ao médico e quase morrer de dor no coração quando percebe que ele chora e que você já fez de tudo para que ele parasse, e ele não para, mas ele também não consegue dizer o que está errado, e depois de algumas horas de desespero ele cede, dorme nos seus braços de maneira angelical, e é só então que você consegue descansar.
Você tem que ser sábia e uma sábia com muito tesão para aprender a decifrar o pequeno ser, cheio de segredos, os quais você vai passar vida inteira tentando descobrir, sofrendo para descobrir, achando, com toda a sua arrogância de mãe, que já sabe de tudo. A gente sabe sim, mas é longe de ser tudo.
Nunca conseguiremos passar da porta da morada de nossos filhos, pois eles são muito mais do que nossa extensão, eles são o que são, são eles mesmos.
Minha filha me trouxe uma nova dimensão de vida, mesmo que eu não me dê conta disso muitas vezes. Ela ma traz todo o tipo de alegria; das únicas, como aprender a andar e a comer sozinha, até as mais prosaicas, como os desenhos lindos, o amor aos bichinhos, as risadas, os dentes que caem, e ainda há tantos por cair...
Minha filha ainda me deixará acordada durante a noite, morrendo de preocupação sem saber se ela está bem enquanto sai com os amigos; ela ainda vai me deixar de cabelos em pé pela rebeldia da adolescência; ainda vai me dar alegrias pelas suas conquistas, e vai chorar no meu colo pelas desilusões da vida que serão novidade para ela...
Pois ter um filho envolve muito mais do que ter alguém sob a sua égide, envolve você. E eu sou egoísta, sim, eu sou. Ter uma filha mudou tudo, mudou a minha vida, o meu corpo, o meu jeito de pensar e de agir, mudou os meus planos e minhas prioridades.
Não sou mais a mulher que era, porque hoje eu sou mãe. Antes dos meus desejos, eu sou mãe; antes de sair de casa, eu sou mãe, e preciso de alguém que tome conta da minha filha; antes de ser mulher, eu sou mãe, meu corpo não é como antes; sou mãe e sou imperfeita, sou mãe e não me sinto desejada, sou mãe.
No ventre, a cicatriz me diz que eu vivo fora de mim, o corpo flácido me diz todos os dias que eu sou mãe, mas ora ou outra ainda me surpreendo ao ouvi-la dizer a palavra “mãe”, sou eu. A mãe impaciente, brava, que acorda no meio da noite com o grito de desespero da menina que clama por ela, quando de súbito acordou e vomitou por todo o quarto. Eu sou a mãe, que orgulhosa, chora nas apresentações do colégio. Eu sou a mãe que, ouve contrariada, as reclamações que ela faz sobre mim. Eu sou a mãe que quer dormir até mais tarde nos finais de semana e espera não ser incomodada pelo seu pequeno “eu” que exige atenção aos seus novos feitos.
Eu sou a mãe que quer desistir de tudo às vezes, e que quando se sente muito sozinha, só tem vontade de abraçar, chorar e soluçar agarrada à pequena menina, que parece mais adulta do que eu mesma.
Eu sou a mãe que morre de medo de perdê-la e que jamais se perdoaria se alguma coisa ruim lhe acontecesse.
Ter um filho é viver um sem número de emoções boas e ruins, é ter vontade de colocá-lo de vez em quando no guarda-roupas e esquecê-lo lá por uma semana; ter um filho é sonhar com ele de saudade, é sentir o silêncio corroendo a casa vazia; é querer que eles não cresçam nunca, mas que cresçam logo.
Ter um filho é muito mais do que quem não tem um filho possa imaginar. E é por serem tão especiais que não devemos tê-los assim, a torto e a direito, de qualquer jeito, só para nos perpetuarmos, devemos tê-los conscientes de que nunca mais teremos paz, e de que da felicidade deles, depende a nossa.