sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Atrás da porta

Eu não sei o que ele tinha, mas seja lá o que fosse, tinha nascido com ele, acho que tinha nascido com ele. Um homem que já fora "normal" não aceitaria viver nas condições em que ele vivia. Mas o que eu sei da loucura dos outros? Se é que era loucura... Vou contar como era, mas antes preciso me inserir no meio disso, porque essa história não é minha, mas eu vi algo da história dele.

Minha mãe namorava o irmão desse homem, e tínhamos voltado praquela cidade depois de quase um ano fora. Recém-chegados, ficamos na casa da mãe deles. Lá, moravam muitas pessoas. A matriarca, que cuidava de uma loja de muambas junto com a filha única, que era separada de algum marido mau-caráter e carregava três filhos pequenos nas costas; o patriarca fora de atividades, um senhor acamado há algum tempo e que já vivera a glória que almejava sendo delegado na cidade; um filho mais novo, solteiro e também policial, mas com uma índole duvidosa; o outro irmão, namorado da minha mãe, desparafusado e professor de História, como ela, e ser essas duas coisas é quase um sinônimo; a empregada espevitada e o homem que mencionei no início.

A família inteira tinha algo fora do comum, não no bom sentido, mas no sentido de perturbações emocionais; tantas que formavam uma nuvem pesada no ambiente meio decrépito do lugar em que viviam. Estavam todos juntos, protegiam-se uns aos outros, mas sequer sabiam do que faziam parte.

Não sei ao certo se ele era o primogênito ou o caçula, sei que tinha o nome do pai, e que por sua cara, passaria tranquilamente pelo filho mais moço. Ele vivia quase que numa masmorra. Na cozinha, bem em frente à mesa de refeições, havia uma porta de ferro, com uma pequena janela de vidro vedada. Era como a porta de uma solitária em um hospício, mas lá dentro as paredes não eram acolchoadas e nem ele vivia com uma camisa-de-força branca. Ele morava lá, nu, num ambiente sem janelas, sem luz, sem móveis; havia apenas uma rede. A única claridade que entrava lá, era através do vidro.

Às vezes, quando a empregada abria a porta para lhe dar de comer, ele fugia. Corria pelado pela casa, indomável. Quando isso acontecia, chamavam sua mãe, que era a única capaz de apaziguá-lo. Deixava o filho manso, quase em transe. Quando ele ficava nervoso, gritava, e os seus gritos abafados pelas paredes, pareciam uivos desesperados. Ela lhe fazia a barba, quando já estava muito grande. E frequentemente o quarto era lavado, pois fedia à merda e comida estragada.

Ele não falava. Não sei se porque não sabia, ou se porque desaprendera, já que naquela casa ninguém estava disposto a ouvi-lo. Quando ficava manso, soltavam-no e até lhe vestiam uma cueca ou algo como uma fralda, não lembro ao certo, e ele dava um passeio pela casa. Tinha o olhar débil e lascivo, e constantemente tocava sua genitália. Babava, ria, comia com as mãos. As pessoas da casa faziam gracejos, aos quais ele respondia com um riso de deboche. Ele era franzino, mas tinha força física, e acredito que ele usava isso a seu favor. Se ele ficasse fora de controle, o que poderia acontecer? Ele não era tratado como um retardado, era tratado como um bicho, e eu tinha medo dele.

Não sei se ele é vivo ainda hoje, porque faz quinze anos que presenciei o que contei aqui, mas mesmo na loucura e na debilidade em que ele vivia, imagino que ainda tinha algum desejo de ser visto como gente, e não como o monstro escondido no quartinho da cozinha. Eu não o conheci de verdade, talvez a mãe dele o tenha conhecido ou talvez, ainda, ela apenas soubesse como amansá-lo para parecer que não havia nada de errado ou de diferente dentro daquela casa. Desprezo no cuidado, aquele homem simplesmente não existia.

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