terça-feira, 23 de agosto de 2011

Limpar ou não limpar?

Nunca gostei dos serviços domésticos, apesar de saber fazer tudo dentro de casa. Aliás, qualquer macaco sabe fazer o serviço da casa. Cresci com a minha mãe me botando pra trabalhar. Ela sempre disse que só podia mandar quem sabia fazer; e isso é certo. Se você gosta que a sua casa pareça um brinco, tem que saber como deixá-la assim.

(Aliás, mesmo não gostando do trabalho sem fim que demanda uma casa, é importante saber fazê-lo. Acho um absurdo gente que não sabe lavar um talher sem deixá-lo ensebado ou que não sabe fazer um feijão com arroz sem fazer drama de que não tem talento pra cozinhar. A gente aprende fazendo e isso serve pra mulheres e homens. "É de menino que se torce o pepino" já diria o ditado. Se você não aprende essas coisas quando pequeno, aos poucos, e a necessidade de fazê-las, é provável que você cresça sendo uma bela bosta. Não adianta ser bom na escola e não saber onde fica a vassoura; não adianta viajar pelo mundo e não saber lavar a porra da sua calcinha; não adianta ser lindo e sarado se você não sabe passar as suas roupas, mas enfim...)

Desse jeito eu aprendi, mas a minha mãe era bem esperta porque enquanto ela fazia coisas mais leves como estender a roupa, meu irmão e eu limpávamos a casa. Ela sempre foi boa em mandar, principalmente em mandar que os outros fizessem coisas que ela era perfeitamente capaz de fazer sozinha; isso me dava nos nervos.

Mas com ela também aprendi a cozinhar, depois de muito feijão e arroz queimados por esquecimento. Ela ia trabalhar, me deixava cuidando da comida que ficava no fogo, eu ia assistir a Xuxa e fodia tudo. Comida torrada, cheiro de comida torrada pela casa e me batia o desespero! A esculhambação ia me tomar inteira ao meio-dia; mas porra, eu tinha uns oito, nove anos... É muita responsabilidade pra uma fedelha uma panela de pressão! Enfim, hoje eu cozinho decentemente e quem já provou minha comida, sabe que ela é boa.

Mas voltando à arrumação... Eu achava que ela era neurótica porque podia estar tudo arrumado, mas se tivesse um copo na pia a tempestade estava feita: "Ninguém me ajuda, essa casa tá sempre uma zona!", e pensava eu que quando eu tivesse a minha casa as coisas seriam diferentes.

Pois então, hoje tenho a minha casa e também sou neurótica; as coisas são iguais. Mas é que, puta que pariu, essa porra de serviço não acaba nunca! Casas deveriam ser limpas e lacradas e deveríamos viver num quarto anexo que seria um chiqueiro.

Eu arrumo tudo, limpo tudo, tiro o pó, aspiro, passo o pano, lavo a louça, guardo a louça, levo o lixo pra fora, coloco a roupa pra lavar, estendo a roupa, recolho a roupa, dobro a roupa e a coloco no cesto pra passar, limpo a caixa de areia dos gatos, limpo privadas, pias, espelhos... Acontece que eu moro na minha casa e é isso que estraga tudo.

No mesmo dia aparece mais louça pra lavar e o chão já começa a ficar sujo de novo. É pelo de gato, meu cabelo que cai sem medida, os gatos que derrubam a tigela de água deles e fazem uma lambança diária na cozinha... É uma merda de trabalho ingrato... E tudo pra quê?

Se arrumo, tudo aparece de novo de qualquer jeito; se não arrumo, a cagada toda vai se acumulando de uma maneira que me deixa doida! Odeio arrumar a casa, mas adoro ter a casa arrumada. Às vezes baixa em mim o espírito da dona de casa perfeita e eu arrumo até as gavetas, jogo quilos de lixo fora, papelada de anos, arrumo o guarda-roupas; mas na maior parte do tempo, queria tacar fogo em tudo e sair correndo.


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Eu, escritora

Não sei quando foi que comecei a escrever, não me dei conta do que fazia. Já tive diários quando era menina, mas não era muito assídua na tarefa de falar sobre o meu cotidiano. Depois que cresci, a verdade é que nunca me imaginei em nenhuma profissão muito significativa. A primeira coisa que quis ser foi arqueóloga, não sei por que cargas d’água. Fui crescendo e passei por várias delas... Professora, médica, veterinária, vendedora, atriz, diplomata... Acabei me formando em Letras, e essa formação não me dá ao menos um nome; “No que você se formou mesmo?” – Me formei em Letras, sou letrada? Acho que não. Das aspirações profissionais da infância passei a algumas outras que me traziam frustração: ser dona de casa, desempregada, sem perspectivas porque puta que pariu (!) não sei o que me deleita! Não sei do que gosto!


Escrever, então, pensei, poderia ser uma boa... Mas sobre o que eu escreveria? Não sou imaginativa como os grandes escritores que criam personagens densos com histórias conflituosas e desfechos bem pensados. Achei que seria uma ideia escrever sobre mim, sobre as minhas vivências, sobre as minhas parcas impressões acerca do mundo, mas vendo agora que não sei sequer o que me excita na vida, descubro que sou uma farsa. Mas isso também é mentira porque já sei disso há tempos, e escrever realmente me faz feliz.

O problema é que nunca acreditei em mim, porque sempre tive os outros como referência, os outros que são melhores do que eu. Sempre que acreditei um pouco mais no meu potencial, bastava que olhasse pro lado pra ver que havia alguém acima, e isso me fazia cair. Caio todos os dias por não conseguir ver em mim mesma tudo o que tenho de único.

A autoajuda vem agora: ninguém é melhor do que eu posso ser; somos únicos em tudo. Eu busco referências ao lado que me desestabilizam, como se elas só servissem pra provar que não sou capaz de fazer o que quero. Esqueço, com isso, que eu também sou referência pra alguém. Alguém me lê, me acha boa e me visita todos os dias esperando que eu tenha escrito algo novo.

Alguém espera ouvir de mim algo que faça uma mínima diferença em sua vida. Eu posso tocar as pessoas; posso ser uma distração em meio ao trabalho, posso ser ridicularizada, posso me tornar uma lembrança agradável ou desconcertante, posso xingar e lavar a alma de alguém e posso também fazer alguém chorar, porque eu sou depravada, mas também sei ser dramática, melancólica, doce e adulta. Eu posso fazer com que você se veja através de mim.

A gente consegue fazer a diferença na vida de várias pessoas, todos os dias e, talvez, a graça de tudo esteja nisso. Estamos sempre marcando as pessoas que cruzam os nossos caminhos. Elas nos deixam marcas e deixamos impressões nelas também. É tudo muito óbvio, mas eu gosto de pensar nisso, e decidi que, mesmo que o meu alcance seja limitado, deixarei a minha marca escrevendo.

sábado, 6 de agosto de 2011

Infância IV

Naquela cidade, a menina conheceu sabores diferentes. Nunca simpatizou com o açaí, apesar de todos em sua casa terem gostado do fruto. As batedeiras ficavam espalhadas por todos os cantos, e na hora do almoço, havia filas para comprar aquele sumo, que era a base alimentar de grande parte da população. Do fino ou do grosso, colocado em sacos plásticos e comprado aos litros, tomavam acompanhado de charque, camarão, farinha demandioca, que lá era amarela e grossa - deliciosa-, com farinha de tapioca, tamuatá ou puro, aquele era o fruto que dava a leseira depois de comê-lo, melhor dizendo, depois de tomá-lo.

Os camarões do rio também eram gostosos, e vendidos pelas ruas em carrocinhas, a preços módicos. A menina não gostava muito do cheiro, mas o sabor... Ela aprendeu a gostar de peixe frito, de palmito de jussara, de macaxeira e de mingau de tapioca. Mas nunca conseguiu sentir nem o cheiro da maniçoba, tão apreciada por aquela gente; tacacá, também, não engolia.

Os sabores das comilanças eram geralmente realçados por uma pimentinha que a menina conhecia bem, mas não era porque gostava; conhecia o ardor da pimenta-de-cheiro desde os oito anos, quando uma vez, numa briga com o irmão, ele por vingança cruel de criança, esfregou-lhe uma dessas na boca da pequena. Naquele dia, de boca inchada e sem jeito de parar de arder, viu que nunca provaria seu molho amarelo.

Naquela cidade, a menina aprendeu a dançar carimbó, ouvindo Pinduca. Lá também aprendeu o que é brega, o ritmo musical, que tocava nos bares, nas rádios, nas casas dos vizinhos, a qualquer hora do dia ou da noite. Com esse som, os casais dançavam colados, rodopiavam e suavam de um jeito safado e, irremediavelmente, contagiante. Ela não gostava da música, mas não havia como não aprender ao menos as suas letras, visto que estavam por toda a parte.

Mas lá, naquele lugar, ela descobriu músicos talentosíssimos, que cantavam a região com todas as belezas que ela tinha, e ainda tem. Com nostalgia, a menina se despede do relato de hoje, com Osmar Júnior cantando o Norte.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sobre as pessoas que caem

Você anda distraído pela rua, não vê um pequeno buraco, pisa em falso, torce o pé e empacota no chão. Se ninguém o vê, dá graças; se há muitas pessoas por perto, é quase certo que não nenhuma delas vai ajudá-lo a se levantar, mas que elas rirão, apontarão para você e o acharão um idiota por ter caído, pode ter certeza.

Nunca achei engraçado ver alguém caindo, nem quando criança, e crianças podem ser bem escrotas ao verem alguém no chão, mas isso nada mais é do que o reflexo da educação que receberam de seus pais. A falta de educação e de solidariedade ficam claras quando o assunto é uma queda.

Fato é que todo mundo cai. Se você tem pernas, anda por aí, descalço ou de salto alto, pode cair. Você pode escorregar e cair de bunda; pode tropeçar nos seus próprios calcanhares e cair de joelhos. O cóccix sente o impacto e seu traseiro pode doer por semanas. Seus joelhos podem ficar ralados e com hematomas, e o mesmo acontece com as suas mãos, que o amparam. Suas mãos impedem que você caia de cara no chão e que quebre os dentes ou o nariz; suas mãos também impedem que se faça um corte no seu queixo.

São as suas mãos que o impulsionam para que você se levante do chão e para que, mais à frente, possa cair de novo. Pode ser que haja alguém do seu lado, em quem você possa se apoiar para não cair, mas também pode ser que você caia e leve essa pessoa para o chão consigo. Pode ser ainda que só você caia, e que ela o ajude a se levantar e a passar logo pela multidão, de cabeça erguida.

Você, em algum momento da sua vida, vai cair; é questão de tempo. As pessoas caem por diversas razões. Elas caem porque andam distraídas e a queda vem para despertá-las; elas caem por medo de cair e também por excesso de autoconfiança. Você pode cair andando em um terreno plano; subindo ou descendo um lance de escadas; pode cair do alto de você mesmo.

Caímos sempre, todos os dias, e cair no meio de uma rua movimentada nos remete a uma vergonha tão intensa, que só gostaríamos de ter caído em um buraco negro, que nos tragasse e nos levasse para longe do riso alheio, porque cair é mais do que apenas perder o equilíbrio; cair é ficar exposto, vulnerável. Cair é ficar pronto para ser chutado, pisado, levado por quem passa.

Melhor é quando caímos sozinhos e podemos rir de nós mesmos; podemos praguejar o chão, nossos sapatos, os degraus, os buracos, as poças que nos fazem escorregar ou mesmo os nossos pés, por não terem visto que o tombo era iminente.

Hoje choveu o dia todo. Ainda chove, na verdade. Saí de casa de botas com solado de borracha, mas eles não puderam me conter. No piso molhado, em algum milésimo de segundo aconteceu: senti meu pé torcer e quando vi, já estava no chão. O joelho direito ardia pelo atrito com o jeans. Xinguei tudo ao mesmo tempo e levantei. Fui andando, mas pelo rabo dos meus olhos, vi as caras maledicentes de quem tinha presenciado o meu tombo. Eu não olhei para trás.

Depois, analisei os estragos. Palmas das mãos doloridas e  pretas do chão sujo; joelhos ralados e instantaneamente roxos. Acontece. Amanhã caio de novo.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Infância III

Naquela cidade, a menina aprendeu sobre o amor e sobre as perdas. Lá, ela enterrou um irmão que esperou por nove meses pra nascer; que nasceu num dia e morreu no outro. Ela nunca viu seu rostinho pequeno, apesar dele ter tido um nome. Ela nunca o conheceu, mas sentiu todo o pesar de sua mãe por tê-lo perdido.

Por vários dias, depois de ter voltado do hospital, a menina viu sua mãe no choro sofrido de quem perdeu uma cria; com os seios empedrados e com febre por não poder alimentar seu bebê. Ela via aquilo e não entendia a dimensão da dor, da separação depois da longa espera por ficar juntos, por conhecer de fato quem se carregou no ventre, pela convivência e aprendizado que nunca viriam.

Naquela cidade, a menina acompanhou o sofrimento dela tantas outras vezes, como quando ela perdeu o amigo tão querido. Ele era bonito, tinha os olhos claros, e ela guardava uma foto 3x4 em que ele parecia um jesus borrado. Ele era tão novo pra morrer, mas se foi em um acidente brutal de motocicleta. Nas estradas do interior, cheias de cascalho, ele derrapou. Chegou a ser levado pro hospital com vida, mas tinha perdido um braço, e dizem, que pela enorme ferida do braço amputado, podiam ver seu coração.

Não é assim que se esperava ver o coração de um rapaz tão bom e católico. Ele não acreditava no além, e várias vezes depois de sua morte, a mãe da menina sonhou com ele; remoía-se de culpa por ele ter partido brigado com ela, mas essa foi só uma das muitas culpas que ela carregou pelo tempo em que viveu naquele lugar.

A menina também sentia culpa. A primeira grande culpa que sentiu foi pela morte do pequeno cachorro de pelo encardido que tinham. Ele era adorado pelas pessoas da casa, mas um dia, a menina esqueceu o portão aberto, até que um homem gordo bateu à sua porta perguntando-lhe se o cachorrinho de pelos encaracolados não era dela, ao que ela respondeu "sim", e foi quando o homem disse que ele estava na esquina, morto. Havia sido atropelado. Ela correu, chorando. Viu-o mole, o sangue tingiu seu pelo de tapete, seu pequeno focinho preto, molhado e sujo de areia, não fungaria mais nada.

Foi a primeira vez que perdeu alguém e sentiu enorme culpa por isso. Fora a responsável pela morte de um ser e isso era terrível. A menina não tinha nem dez anos ainda, e já era responsável por tirar do convívio dos seus um dos seus.

Naquela cidade, a menina tivera incontáveis gatos e cachorros, que tiveram incontáveis ninhadas de animaizinhos que foram amados e queridos por todos os cantos das muitas casas em que ela morou. Depois de um tempo, um de seus quintais tornou-se um verdadeiro cemitério de animais. Os bichinhos morriam, atropelados ou por doenças que os faziam cagar sangue. O cheiro daquela merda, era o cheiro da morte, da doença que não tem volta, que aniquila. E ela chorava sobre eles, e depois seu irmão mais velho os enterrava no fundo do quintal, em meio às árvores e folhas caídas.

Logo a menina percebeu que quando a morte aparecia, seres humanos e animais eram iguais. O cachorro do vizinho, atropelado por um caminhão caçamba, e deixado no asfalto com seu crânio esmagado e seus lindos olhos azuis saltados das órbitas, era igual à criança atropelada pelo ônibus na frente da escola; igual à mulher que andava de bicicleta e que também fora atropelada por um ônibus.

As doenças matavam os bichos, assim como matavam as pessoas, os amigos de sua mãe, com caras assustadoramente cadavéricas, dentro de caixões baratos. Amigos morriam afogados, com seus buchos inchados e línguas pra fora, olhos saltados como os de sapos-boi que quacham sob as casas de palafita daquela cidade.

domingo, 17 de julho de 2011

Infância II

Naquela cidade, a menina cresceu ouvindo histórias de rasgas mortalhas que eram prenúncio da morte de pessoas próximas. Ouvia isso da avó de um vizinho. A velha negra era muito boa com as lendas que envolviam a floresta, o rio e os seres bizarros. Ela falava sobre visagens e sobre a cobra Sofia, uma cobra gigante que engoliria uma ilha que ficava ali por perto, caso a estátua de São José fosse arrancada de onde estava. E a estátua estava fincada no chão do rio, sobre uma pilastra, ao lado do trapiche que ficava na beira do rio.

Maré alta, maré baixa, todo mundo conseguia ver São José. E quando a maré estava baixa, tão baixa que se podia andar naquele chão, garotos se juntavam para jogar o que eles chamavam de futelama. Havia pedaços de madeira cravados no solo que faziam as vezes de traves, e todo mundo que jogava, saía de lá coberto da lama meio marrom, meio cinza.

Naquela cidade, a menina morou duas vezes no mesmo cortiço, e o cortiço ficava perto da catedral, e atrás dessa catedral, havia um prédio enorme que fora muito anos atrás um hospital psiquiátrico, e depois uma escola. Ele estava fechado e era administrado pela Igreja. Seu irmão, arteiro que era, uma vez entrou lá pra explorar o que meninos de doze anos exploram. Entrou não sabia como, junto com um vizinho, e fazendo barulhos lá dentro entre carteiras velhas, acabou chamando a atenção do padre. "Quem está aí? Não gosto de assombrações!". Ele saíra de lá depois de assustar o pobre pároco.

Juntavam-se em bando, sob a luz do poste que ficava no meio-fio daquela travessa, para conversar e brincar com toda a molecada que circundava o lugar. "Ô, Giiiilson!!!", chamava a mãe de um deles, e logo todas as mães berravam em coro, porque já estava na hora ir pra casa.

Ali também, havia uma casa de dois pisos, que estava em construção eterna, com uma montanha de areia na sua frente. Durante a semana, a menina e seus vizinhos pulavam e rolavam sobre aquela areia como cachorros que gostam de deixar seu cheiro nos lugares por onde passam. Nos fins de semana, com a construção fechada, pegavam enormes caixas de papelão e levavam para dentro da casa. Instalavam-se nelas e faziam de conta que estavam em uma nave espacial ou em um avião. As conversas eram de "gente grande", porque pilotar uma nave não era coisa pra crianças.

Ali, naquele monte de areia, não havia só areia, e também não havia só cocô de cachorro. Havia tábuas, com pregos virados para cima, e num deles, no meio da brincadeira, a menina fincou-lhe o pé. Aiii, o prego entrou inteiro, bem ao lado do dedão! Atravessou o chinelo de borracha, e daí só se via dor, sangue e areia; aquela sujeira típica de machucados infantis. Naquela ocasião não precisou de pontos, mas a anti-tetânica foi indispensável; o prego estava enferrujado, claro.

Naquela cidade estupidamente quente, em épocas de chuva, apareciam baratas cascudas, mas não eram simples baratas. Eram baratas do tamanho de mãos adultas, com cascos que pisados, não eram destroçados como os das baratinhas domésticas que se vêem por aí. Pior de tudo é que elas voavam... Pior ainda é que elas surgiam aos montes. Quando a menina acordava de manhã para ir para a escola, no caminho via duas grandes variedades de coisas pelo chão. Mangas e caroços de mangas, porque lá havia inúmeras mangueiras, e as baratas. Podiam ser varridas, pisadas. Tinha-se que escolher onde pisar, porque elas estavam por toda a parte; e mortas. A menina nunca soube porque elas amanheciam mortas, mas era assim que amanheciam. À noite voavam, picavam, aterrorizavam-na e, de manhã, estavam mortas. Eram como um pesadelo de verdade, que durante o dia podia ser visto, mas não fazia mal a ninguém.

E não é porque só fazia parte da imaginação dela, que não poderia lhe fazer mal, ou bem.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Cheiro feliz de meninice

Hoje, quando fui buscar a Ana na escola, senti o cheiro mais doce de todos; o cheiro do qual já falei antes, o da minha infância pretensamente feliz. Ele apareceu do nada, entranhou-se no meu nariz e eu comecei a ver na calçada por onde eu andava, as boas lembranças do que já foi.

Fiquei tão distraída pensando que esse cheiro tinha aparecido para mim como o prenúncio de coisas boas, que quase fui atropelada por um carro vermelho. Eu não olhei para atravessar a rua, como não olhava quando era criança.

Quando o carro me tomou de sobressalto, dancei no ar, de susto. Mesmo assim, o cheiro permaneceu. Fui e voltei com ele, e amanhã é o último dia de aula dela. Teremos férias, como quando eu era pequena.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Infância I

Naquela cidade, havia muitas coisas diferentes pra uma menininha que morava antes em um ilha bonita.
Das praias de água azul, foi conhecer o rio, enorme, tão largo que quase não se via a outra margem. Aquele rio de águas escuras e ao mesmo tempo doces escondia toda a história daquele povo, daquele lugar onde ela foi morar.

Lá, as meninas andavam só de calcinhas pelas ruas sem asfalto. As casas eram de madeira e na cidade não havia prédios. A escola em que estudava também era de madeira, e ela não tinha muitos amigos, nenhum, na verdade, porque era vista como diferente da maioria. As pessoas de lá tinham traços caboclos, indígenas e a menina branca, de nariz fino, dentes separados e comportamento introvertido não era das mais agradáveis.

Naquela cidade, que era banhada pelo maior rio que existe, havia um lugar que chamavam de Beira-Rio, e ela era acostumada com a Beira-Mar. De salgada pra doce, de mar azul pra rio marrom. Lá na frente da cidade havia inúmeras carrocinhas com enorme panelas de óleo fumegante, onde os donos desses carrinhos fritavam batatas, e as batatas eram colocadas em copinhos descartáveis e vendidas com um pouco de queijo ralado e um palito. Ela as espetava e via o rio. Era a programação de todos da cidade nos fins de semana. Na época em que só os refrigerantes em garrafinhas de vidro eram populares, esses mesmos vendedores de batatas-fritas, viravam a garrafa de Coca-Cola em um pequeno saco plástico transparente, davam um nó e colocavam nele um canudinho. Era estranho. Bebidas em sacos, comidas em copos, mas era divertido.

Naquela cidade as pessoas também gostavam muito de redes, redes eram mais comuns do que camas e a menina gostava de se embalar nelas. Eram grandes e divertidos balanços quando ela estava acordada, e quando queria dormir, eram como o aconchego confortável de um colo de mãe.

Mas aquela cidade, tão no meio da floresta, também tinha muitos animais rastejantes, e qual foi a surpresa, então, quando um dia, enquanto a menina dormia na rede, uma cobra restejou em direção a ela, colocando-se bem embaixo de onde a pequena estava. Mal pior não aconteceu, porque um vizinho destemido e já acostumado com tais visitas, veio com um terçado dar fim ao animal.

Viveu ela em inúmeras casas com quintal e esgoto a céu aberto. Quando chegava da escola, gostava de parar em frente a sua casa para ver, por debaixo da camada verde de limo sujo, pequenos vermes e girinos que ali se criavam. Eram pequenas vidas asquerosas que se moviam aleatoriamente, como se se debatessem querendo sair dali.

Em um terreno baldio do lado de sua casa, havia também um enorme formigueiro marrom, onde moravam centenas de milhares de formigas de fogo. A menina gostava de perturbá-las. Pegava um pequeno graveto e desmoronava toda a cidade das pequenas raivosas. Várias vezes saíra de lá correndo, por ter sido mordida por várias delas nos pés, mas ela sempre voltava pra desarmonizar o micromundo.

Crescia assim, mudando de casa, de escola. E já não podia mais andar só de calcinhas pela rua, apesar do calor desumano daquela terra.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Ático

Subi lá em cima - pleonástico eu sei, mas é que não subi um ou dois andares, subi até láááá em cima, no topo.

Eu subi, e não tinha qualquer intenção de fazer besteira. Trabalhava naquele prédio, já havia cinco anos. Cinco anos indo quase todos os dias até o sétimo andar. Pegando o elevador com aquelas pessoas. Nunca simpatizei com nenhuma delas, mas dividíamos quase todos os dias a caixa claustrofóbica. Eu não ligo pra elevadores, já fiquei preso em alguns. Não dá tempo nem de peidar e o peido feder, porque o socorro sempre vem rápido.

Eu cheguei lá em cima depois de achar por alguns segundos que isso não aconteceria nunca. Quando você está acostumado a descer sempre no mesmo andar, e entra no elevador pra descer em um andar mais alto, parece que você não chega nunca.

Mas eu cheguei. Subi mais um lance de escadas até o ático. O vento batia forte, muito forte. O vento seco gelava meu rosto e me fazia sentir vontade de sair voando. Fui em direção ao parapeito, encostei nele e olhei pra baixo. Vinte e um andares de empresas, de pessoas, de insatisfação e de gente que se faz de louca. O ambiente de trabalho é sempre uma merda.

Olhei pra baixo e vi umas "formigas". Quis dar uma puta escarrada pra ver onde ia parar. Ninguém iria descobrir, mesmo assim confesso que esse clima de empresa, firma, serviço sempre me passou a impressão de que ainda estamos na escola, e que sempre vai haver dois tipos de filhos da puta querendo te foder: um superior pra te chamar a atenção e um "colega" pra te dedurar por qualquer coisa ou fazer fofoquinha.

Não sou sádico nem nada, mas só quem trabalha nesses lugares sabe o que é pensar em ir armado para a "companhia".

Que merda, acho que pior do que ter alguém mala é ter alguém que tem o desplante de se levantar da sua cadeira, ir até o banheiro e voltar de lá fedendo a desodorante barato. Fora o cheiro de desinfetante atalcado que emana do banheiro feminino.

Mas lá no ático, eu não era obrigado a passar por essas provações diárias. Eu, homem equilibrado, benquisto por todos, com o salário razoável e concernente com a função, olhei lá pra baixo de novo, repousei os braços no parapeito e a cabeça nos braços. Depois de mais um dia em que quase não tive tempo pra nada, depois de mais um dia repleto de atribuições, encheções e complicações, eu vi que mesmo tão cheio, meu dia era apenas vazio, vazio em toda a sua porra de rotina.

Eu chorei então. Chorei, solucei, sequei a salmoura das lágrimas na minha gravata. Chorei mais um pouco. Mentira, chorei tanto que nem o vento seco conseguia dar conta. Chorei compulsivamente.

Fiquei com a cara inchada, o nariz entupido. Então aproveitei e dei a escarrada que queria. Ela subiu quente e salgada pela minha goela. Me recompus e voltei ao sétimo andar.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

sonhos da semana

Sonhei que não ia ao trabalho duas vezes no mesmo dia, pois eu dormia, e quando o despertador tocava meu expediente já estava pela metade, então não podia chegar tão atrasada. Por isso, precisava de um atestado médico pra apresentar na agência, e pensei em dizer que estava com diarreia. Até me via mentindo para o médico em seu consultório.
Em algum momento do sonho, eu morava em uma casa com um chão de madeira apodrecida, no qual eu pisava e ele ia afundando.
Em outro momento, havia um homem, com uma cara de estivador pesada! Ele tinha barba e parecia mal encarado. Ficava atrás de um balcão pra atender alguém, não sei no quê. Mas atrás desse homem e desse balcão havia o mar, e o mar batia nele, de uma maneira calma, com uma água verde e corrente. De repente a água parava, e havia peixes mortos de vários tamanhos, e agora a água parecia suja e fétida. No meio dos peixes que boiavam, havia um enorme e feio, e depois eu via uma mulher morta, tinha umas feições meio indígenas. Me assustava e saia correndo e gritando.
Hoje, novamente sonhei com o chão de madeira podre. Eu morava em uma casa toda de madeira, e o assoalho parecia firme, mas andando pra lá e pra cá, eu percebia que uma parte dele estava mole. Uma mulher gorda e simpática, com cabelos encaracolados e mãe de meninas gêmeas que estava por lá, vinha em minha direção com um toco, para cutucar o chão. Mexendo nele, ela conseguiu puxar a madeira velha. Era um pedaço grosso, com o seu meio amarelado, e eu olhava pr'aquilo com certo nojo.
Esses sonhos recorrentes com água e madeira... Fico pensando o que querem me dizer...
Em outro pedaço do sonho, eu estava sentada no chão, encostada na parede de algum lugar, com um grupo de amigos que de fato conheço. Ao meu lado, estava sentado um colega, o qual eu carinhosamente afagava sua cabeça, e sentia seus cabelos finos em minhas mãos. Recostado em mim, eu sentia um calor aconchegante, era quase um flerte.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Conversa de namorados

- Tudo pronto?
- Tudo.
- Eu pego você aí?
- Tanto faz. Se você quiser, eu posso te pegar.
- Não sei se fica bem... Apesar de que mais tarde nos pegaremos de todos os jeitos possíveis...
- Você não presta, né? E por que não fica bem? Por acaso tem algo de errado nisso, em você me pegar?
- Não, nada de errado, mas é que da última vez, você sabe... Fiquei um pouco constrangido com o que aconteceu...
- Bobagem! Isso acontece nas melhores famílias...
- Na minha nunca tinha acontecido. Será um sinal?
- Sinal de quê? De chuva? Tá frio, mas acho que não chove mais hoje.
- Sei lá... Você entendeu... Pode ser um sinal de que as coisas estão indo rápido demais...
- Rápido demais? Ainda acho que isso não é um sinal de chuva...
- Não falo da chuva. Falo da gente.
- Ah, a gente... Não tinha pensado nisso... Sabe no que eu pensei hoje?
- Em quê?
- Pensei em matar.
- Em se matar??? Oh, meu Deus, não diga isso nem de brincadeira!
- Mas eu não disse me matar, eu disse que pensei EM matar. Você não acha que algumas pessoas deveriam morrer?
- Ah tá... Sim, acho que algumas delas... Mas por que isso agora?
- Sei lá, me ocorreu... Uma coisa meio lei da selva, sabe?
- Sei... Mas acho que estávamos falando sobre nós...
- Ah, claro! Desculpa.
- Tudo bem. Você acha que eu deveria levar meu casaco marrom?
- Aquele bem grosso? Sim, acho. O frio está mesmo implacável, não?
- Até que agora à noite, sinto que está mais quente do que estava mais cedo.
- Não sei. Não saí à rua hoje, mas como aqui dentro é sempre gelado...
- Você está distante...
- Sim, estou distante de você, meu amor. Mas nada que dez minutos de carro não resolvam.
- Eu moro há mais de dez minutos de carro da sua casa.
- Eu sei. Mas em dez minutos dentro do carro podemos ficar tão "unidos"...
- Hehehe. Você é pior do que eu pensava...
- Pior? Pensei que você gostasse disso. Que todos gostassem.
- Eu gosto, e você consegue ser ainda mais surpreendente no frio.
- Claro, meu amor! Não deixemos cair na rotina o que o mal começou...
- Mal começou ou começou mal?
- Já disse que essas coisas acontecem. Relaxa que eu vou cuidar de você.
- Vai mesmo?
- Melhor do que qualquer mulher já cuidou antes.
- Assim me sinto mais seguro...
- E você deve se sentir assim mesmo. Segurança é tudo em um relacionamento. Escuta, eu te pego!
- Ok. Estou te esperando então.
- Beijos!
- Beijos, te amo.
- Tchau.

Carreguei minha arma, coloquei-a no bolso do casaco e fui buscar meu amado. Eu vou cuidar dele, como nenhuma mulher cuidou antes.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

M & M

Dia dois de junho fará um ano que eles surgiram nas nossas vidas, no nosso pequeno apartamento. Queria que a Ana tivesse novamente o prazer da companhia de um bichinho de estimação, então entrei num site de adoção de animais, e foi lá que a vi pela primeira vez. Era rajada, um filhotinho, e chamava-se Fronha. Achei o nome uma graça, e ela tinha aqueles olhos enormes e o jeito serelepe que os pequenos sempre têm. Um mês de idade. Foi o primeiro filhote que vi na página e foi o que de imediato me chamou a atenção.

Mesmo assim, quis olhar os demais. Logo embaixo da sua foto, havia a de outro . Ele era pretinho, pequenino como ela, e chamava-se Espirro. Vendo mais fotos, vi que apareciam juntos. Eram da mesma ninhada, daí pensei que se fossem dois, um haveria de fazer companhia ao outro, e por isso, nunca estariam sozinhos.

Estava decidido. Adotaria os irmãos. Liguei para a moça que os acolhera e ela me contou a história deles. Disse que uma pessoa havia ligado para ela, avisando que se ela não ficasse com a ninhada, mataria todos. Ela apiedou-se dos pequenos e os acolheu.

Me disse todas as coisas que se diz para uma "mãe de primeira viagem", e ficou especialmente preocupada quando eu disse que morava em um apartamento sem redes de proteção. Deu o telefone e o endereço de uma clínica que os castraria por um preço camarada, e me deixou ciente de toda a responsabilidade que envolvia a adoção dos animaizinhos.

Eu consenti com tudo, disse que providenciaria as redes, que os levaria ao veterinário e que cuidaria deles com carinho.

No outro dia, à noite, ela chegou com eles. Vinham dentro de uma cestinha de vime e cheiravam a carro novo, por causa do banho a seco que haviam tomado. Eram tão pequenos que cabiam cada um em uma mão.

Assinei um termo, ouvi suas últimas recomendações, e naquele dia mesmo já tinha me preparado para recebê-los, comprando caixa de areia, areia, ração para filhotes, toca e tudo o mais.

Pronto, agora tínhamos um casal de gatinhos.



Eles eram graciosos, e a Ana caiu de amores pelos dois imediatamente, até o Bruno que não era muito de bichos, gostou deles.

Mostrei a eles a caixa de areia, com a qual tiveram instantânea identificação. Coisa de gato. E a primeira surpresa veio pela manhã. Quando acordamos, havia patinhas de cocô no sofá e em cima do meu notebook. Já batiazaram a casa e a caixa de areia com uma tremenda diarreia, resultado da troca de ração. Mas isso era de se esperar...

Decidido, então, que enquanto seus pequenos intestinos não estivessem acostumados à nova comida, eles domiriam na área de serviço para evitar maiores surpresas pela casa.

No terceiro dia, levamos os pequenos para que fossem esterelizados. Foram dentro de uma sacola de praia, sem grandes protestos. Entregamos as criaturinhas para o veterinário sob o olhar de "oh, eles são tão pequenos!" da secretária. Em menos de meia hora, estavam de volta na sacola, inconscientes, moles e com as linguinhas para fora, para evitar que sufocassem. Disse o veterinário que não deveríamos alimentá-los até o outro dia, e que dentro de algumas horas eles acordariam.

Fomos para casa, e os colocamos dentro da toca. Lá, eles ficaram, até o momento em que, como pequenos gatos zumbis, foram acordando. Arrastavam-se e tombavam. Caídos ficavam, até tentarem se levantar novamente, com enorme dificuldade e muitos tremiliques. Assistimos àquilo num misto de pena - por eles - com muito escárnio. Era muito engraçado vê-los daqueles jeito, como que embriagados. Até vídeos temos, para a posteridade.

No dia seguinte, já pulavam e sassaricavam pela casa, como se não tivessem pontinhos de nylon nos seus corpinhos frágeis.

Logo as redes foram instaladas em todas as janelas, e eles já estavam habituados à nova vida.

Esqueci de dizer que os re-batizamos. Chamavam-se, agora, Marte e Marta.

Como todos os gatos, eles só atendem pelo nome quando lhes convêm, ou seja, quase nunca.

O Marte, na verdade, tinha um nome muito adequado à sua condição - Espirro -, visto que eu acredito que ele seja um gato asmático, com desvio de septo ou algo do gênero! Pois vejam vocês que o animal dorme de língua pra fora, com a boca meio aberta, e volta e meia espirra. Deve ser alergia aos pelos!

Cada um tem suas peculiaridades, e elas já vinham me pedindo que escrevesse a respeito, há algum tempo.

Os dois têm uma tara por Halls, sim, aquele do "alívio refrescante". Eu tenho os pacotinhos sempre comigo, e eles não podem vê-los, que abocanham os ditos e saem brincando com eles pela casa. Várias vezes já acordei e me deparei com vários drops jogados  pelo chão da sala. As embalagens estão sempre cheias de furos de dentes. Eles são tão caras de pau que chegam a fuçar a minha bolsa para roubá-los.

Outra coisa curiosa é o fetiche que a Marta tem pela estátua de São Francisco de Assis, de cerâmica, que tenho no hall de entrada do meu apartamento. Sempre que a porta está aberta, ela vai lá, se esfrega generosamente no santo e o lambe. Lambe como se ele fosse feito de peixe, lambe com devoção! Nunca vou entender o porquê disso...

Seu irmão também tem algumas preferências exóticas: adora "comer" cotonetes. Não que eles os coma de fato, nada disso, mas adora arrancar o algodão das pontas da haste e brincar com ela até que a enfie embaixo de algum móvel inacessível. Se ele vê o copinho onde eu guardo os cotonetes, com prazer, vai lá e pega um com a boca e, se pudesse, destroçaria uma caixa inteira deles! A Marta, por sua vez, é uma gata que faz neve com o papel higiênico do banheiro. Sim, neve! Produzida por suas garrinhas afiadas  e seus dentinhos pontiagudos. Porta do banheiro aberta é sinônimo de espetáculo natalino aqui em casa!

E eu fico quase louca!

Porque, é claro, além dessas peripécias, eles já aprontaram muitas outras! Louças quebradas, papéis roídos - eles são como cabras -, bolas de pelo pela casa, meu sofá e as quinas das camas, que são box, destruídos! Se tenho vontade de jogá-los pela janela pelo menos três vezes por semana? Oh, sim, tenho muita!

Mas assim como eles são umas pragas, são também extremamente amorosos, e não é só por interesse!

A Marta já enfiou as unhas nas minhas costas a ponto de sangrar feio. O Marte já meteu as unhas no meu seio e pescoço de um jeito que fiquei com as cicatrizes dos pequenos buracos, e a última dele fez com que parecesse que eu era uma viciada em drogas injetáveis, pois ele enfiou a garrinha bem na junção do meu braço com o antebraço. Mas ok, coisas da vida.

A Ana também, volta e meia, é vítima de uma brincadeira selvagem deles, com direito a unhas e dentinhos, mas nada grave.

A compensação para a selvageria dos felinos vem em forma de amor ronronante, de olhares compreensivos de dois gatinhos que se esfregam na gente, deitam sobre o nosso peito, aninham-se na nossa barriga, esfregam suas cabecinhas no nosso rosto incansavelmente; esfregam todo o seu corpinho peludo contra o nosso, e se a gente permitir, esfregam, carinhosamente, até suas "bundinhas peludas" na nossa cara!

Eles são inteligentes, sacanas a adoram aprontar. Quando sabem que fizeram algo errado, saem derrapando de tanto que correm. Sua lutas e brincadeiras são uma atração à parte! Nem preciso dizer que a Marta quase sempre leva a pior e que, às vezes, eu preciso apartá-los. Eles não são muito de miar, mas se comunicam que é uma beleza. Estão quase sempre juntos, e quando não estão, um mia para chamar o outro. Um dá banho no outro, coisa, aliás, que fazem frequentemente. Dormem juntos e comem juntos e, obviamente, quando pode, o Marte rouba a comida da Marta, coisa de gordo.

São abusados e, se eu deixar, viram senhores da minha cama. Mas já andei cortando as asinhas deles...



Esses animais são um espetáculo! Destroem a casa durante a noite, se matam brincando na sala, mas todos os dias, quando eu abro a porta do meu quarto, eles estão ali, esperando... Por comida é claro!

Sempre ficam no banheiro comigo enquanto eu tomo banho. Deitam sobre o tapete em frente ao box, e depois que eu saio, recebo da Marta lambidas nas pernas. Depois disso, eles entram no box, tomam a água quente que vai se esvaindo pelo ralo e procuram atentamente por mosquitinhos, para exercitarem seu lado predador.

Apesar de terem uma pancinha dependurada, em virtude de serem esterelizados, e apesar de o Marte ser um gato obeso com cara de deboche, eles mandam ver nas baratas que de vez em quando aparecem por aqui. A Marta, com seu porte mais delgado, e com a barriga mais cuti cuti que Deus já fez pra um gato, também é uma boa caçadora de insetos.

Aliás, a Martinha é uma gatinha doente. Ela tem leucemia, doença que eu não fazia ideia que poderia acometer felinos até descobrir que ela tinha essa tal coisa. Ficou sem comer, sem tomar água... - me lembrem que eles também têm fetiche pela água da privada, não para beber, mas adoram enfiar as patas lá dentro e sair pela casa fazendo arte molhada! - Achei que fosse perdê-la.

Em dois dias, ela estava anêmica. Foi internada, fez transfusão de sangue e tudo! Exames, comida especial. Chegou na clínica totalmente caidinha. Depois de ter um sanguinho novo no corpo, estava histérica! Quando viu a mim e à Ana, miava pedindo para que lhe tirassem daquele lugar.

Depois de dois dias fora de casa, depois de eu ter ficado mais de 700 reais mais pobre, depois de ter ido chorando para o trabalho, e de ver minha filha chorando compulsivamente, achando que a gatinha mais amiga dela, aquela que tanto a amava e demonstrava todo esse amor repousando calmamente sobre ela todas as vezes que ela assim queria, depois de achar que a criaturinha não resistiria, ela se recuperou. É certo que não sabemos por quanto tempo ela se manterá bem, mas faz quase três meses que ela está serelepe quebrando tudo por aqui com seu irmão meliante e dentuço.

Ia me esquecendo de contar que o Marte tem um fraco por bebidas alcoólicas. Ele toma cerveja, e eu não descobri isso oferecendo a ele, não. Foi pura casualidade. Lata aberta numa reunião de amigos por aqui, e lá foi o gato ver o que tinha na dentro. Adorou o líquido que ficava nas bordinhas... Ia atrás de outras para beber mais. Até queria vê-lo bêbado, mas poderia ser letal, então melhor não levá-lo para o mau caminho...

A última dos irmãos foi essa semana. Cedo, a Ana me acorda dizendo que há penas pela sala e cozinha. Abro a porta, vejo penas pretas, pluminhas... Muitas delas... Não tenho nada com penas em casa... Então imagino que tenham "brincado" com um passarinho... Mas não vejo passarinho algum. Temos que sair. Trabalho, escola, compromissos. A casa fica como está. À  noite, o Marte dá a deixa, deitando no chão e enfiando a pata o máximo que pode embaixo de um móvel da sala. Quando eu chamo a atenção dele ele, no susto, tira a patinha, e junto com ela vem mais um pluminha, e eu penso: "Puta que pariu, achei o passarinho!". E não deu outra.

Puxei o móvel, e lá estava ele, pequeno, duro, meio depenado... Mistério resolvido. Embaixo do móvel também estavam umas quatro ou cinco embalagens de Halls... A brincadeira acaba para eles quando enfiam os "brinquedos" em lugares que suas patinhas não alcançam...

sexta-feira, 11 de março de 2011

Nel Mezzo del Camim

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.


Olavo Bilac


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Solidão

Pensei na praia, na forte claridade; o céu azul, o vento fresco que vinha como um pequeno sussurro... Deitada na areia, com o chapéu sobre o meu rosto, sentia os minúsculos grãos dando leves batidinhas contra minha pele. Pelas frestas da palha, conseguia vê-la brincando no riozinho que passava em frente a mim.
O silêncio do mar é inebriante.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O tema preferido

A morte sempre foi uma inspiração à minha escrita. Falar sobre ela, sobre o apodrecimento da matéria é algo que me excita e, ao mesmo tempo, me mostra como somos frágeis diante de qualquer coisa.
Nosso corpo funciona magnificamente, até que ele padece. Basta cair de mau jeito e bater a cabeça, pronto, você pode ter um traumatismo craniano e sangrar até morrer. Se você tiver uma diarreia ou uma gripe muito forte e não se cuidar, pode acabar morrendo.
Somos tão frágeis quanto formigas. A qualquer momento podemos ser esmagados pela vida, pelo tempo, pelas nossas atitudes e escolhas.
Particularmente, gosto das mortes brutas. A ânsia ao ver um corpo transformado numa massa sangrenta é algo repulsivo, mas que traz enorme reflexão e vazio. Corpos mutilados, estripados, aniquilados, degolados mostram que não somos nada.
Por muito tempo tive um sonho repetitivo em que duas moças eram atropeladas por um carro e seus corpos não eram mais do que um amontoado de carne grudada ao asfalto. Via com detalhes as formas asquerosas de seus órgãos estourados , a carne vermelha; cabeças esmagadas, olhos saltados, cabelos junto a secreções e ossos esmigalhados. Perdi a conta de quantas vezes as vi. Havia repulsa, mas havia algo maior que eu não saberia descrever, mas que a morte delas queria me mostrar.

Depois desse sonho, tive um outro, igualmente incômodo, mas que envolvia muito mais gente. Sonhava que estava às voltas do hospital da cidade onde cresci, e quando lá entrava, nossa! Era como um açougue, pois havia corpos por todos os lados, que haviam sofrido as mais diversas dores. Havia sangue pelo chão, enfermeiros que pareciam não ligar para a situação, e os corpos amontoados em salas esparsas que eu podia ver, andando pelos corredores do lugar.
Sinto angústia por sonhar com isso, mas não tenho medo. Estão mortos. Apesar disso, quando via que o sonho ia se encaminhar novamente para o hospital que eu já vira outras vezes, me indagava por que estava sonhando com aquilo de novo. Não tenho respostas.
Às vezes me imagino morta da forma mais aterradora que eu possa... Tenho a impressão de que uma morte estúpida e grosseira é muito mais real do que aquela que acontece num leito de hospital. Pra ela ser de verdade, os bombeiros têm que catar você do asfalto com a ajuda de uma pá, e reclamar um pro outro: “Odeio meu trabalho”.
Morrer faz sujeira, pois somos imundos por dentro, somos apenas um monte de excremento ambulante, até que viremos novamente excremento embaixo da terra, ou de uma carro, ou de uma ponte.
Morrer parece ser um alívio tão grande... Mas só os torpes conseguem, só os covardes conseguem a morte gloriosa.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

"Sagacidade aristofânica:

o prazer não é o que atrai os amantes, mas aquilo que permite que, saciados, possam separar-se! O prazer não é um fim como meta, um fim teleológico da atividade amorosa. O prazer é um fim como extremo, que consuma e encerra o movimento do desejo, é o fim escatológico do desejo. De modo que não é o gozo o que determina o amor, mas apenas o que permite a calma desse ardor e assim tempera os ânimos da natureza humana. Assim, o amor portador do gozo é o que lhe cura a indigência da cisão primordial e ao mesmo tempo o que permite uma vida harmoniosa a cada uma das caras-metades humanas."



Em Arqueologia dos Prazeres, de Fernando Santoro

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sobre ser mãe

Ter um filho é algo que muda as perspectivas da nossa vida. É bom? Sim. É mágico? Muito. Se eu teria outro filho? Não. Não, porque um filho envolve muito mais do que a visão de um pequeno e indefeso ser com cheirinho gostoso. Um filho envolve muito mais do que as condições necessárias para criá-lo; um filho envolve muito mais do que o desejo de ser mãe, muito mais do que desafiar a sua sanidade mental e colocar o controle da sua vida fora de você mesmo.

Imagine você, senhora da sua vida e do seu destino; agora, imagine-se com um filho. Pronto, você não tem mais controle, sua vida não é mais sua, sua vida agora é duas; a sua e a dele, sendo que sem ele, você não vive mais, não plenamente, não como antes, e um dia você não poderá mais dizer a ele o que fazer e como fazer. O filho vai viver a vida dele, e pode até se desligar de você, mas você... Você estará para sempre ligado a ele.

Durante nove meses eu fui o abrigo seguro e aconchegante que nutriu uma menina e fez com que ela se desenvolvesse perfeitamente. O que eu ganhei? Além dos seios caídos, das estrias por toda a parte e da barriga murcha e vazia, ganhei um título: o de mãe. Sonhava com ele só quando era criança, quando ter um bebê parecia encantador, parecia a mais nobre de todas as funções que uma mulher poderia ter.

Filhos são para a vida toda, mesmo quando se vão, mesmo quando somem, mesmo quando morrem.

Crianças demandam atenção, tempo, amor, disciplina, educação, afeto, colo, conforto, paciência, disposição; filhos exigem tesão! Tesão para acordar de três em três horas, e ouvir o choro da fome que não consegue ser expressado de outra forma, por enquanto. Tesão para parecer que você está de mudança cada vez que sai de casa carregando uma sacola enorme com fraldas, pomadas, lenços, paninhos, mudas de roupa, mamadeiras e chupetas, fora os brinquedinhos, ah, os brinquedinhos que acalmam...

Você tem que ter muito tesão para lavar as roupas de um bebezinho à mão, dar banhinhos gostosos, ninar, levar ao médico e quase morrer de dor no coração quando percebe que ele chora e que você já fez de tudo para que ele parasse, e ele não para, mas ele também não consegue dizer o que está errado, e depois de algumas horas de desespero ele cede, dorme nos seus braços de maneira angelical, e é só então que você consegue descansar.

Você tem que ser sábia e uma sábia com muito tesão para aprender a decifrar o pequeno ser, cheio de segredos, os quais você vai passar vida inteira tentando descobrir, sofrendo para descobrir, achando, com toda a sua arrogância de mãe, que já sabe de tudo. A gente sabe sim, mas é longe de ser tudo.

Nunca conseguiremos passar da porta da morada de nossos filhos, pois eles são muito mais do que nossa extensão, eles são o que são, são eles mesmos.

Minha filha me trouxe uma nova dimensão de vida, mesmo que eu não me dê conta disso muitas vezes. Ela ma traz todo o tipo de alegria; das únicas, como aprender a andar e a comer sozinha, até as mais prosaicas, como os desenhos lindos, o amor aos bichinhos, as risadas, os dentes que caem, e ainda há tantos por cair...

Minha filha ainda me deixará acordada durante a noite, morrendo de preocupação sem saber se ela está bem enquanto sai com os amigos; ela ainda vai me deixar de cabelos em pé pela rebeldia da adolescência; ainda vai me dar alegrias pelas suas conquistas, e vai chorar no meu colo pelas desilusões da vida que serão novidade para ela...

Pois ter um filho envolve muito mais do que ter alguém sob a sua égide, envolve você. E eu sou egoísta, sim, eu sou. Ter uma filha mudou tudo, mudou a minha vida, o meu corpo, o meu jeito de pensar e de agir, mudou os meus planos e minhas prioridades.

Não sou mais a mulher que era, porque hoje eu sou mãe. Antes dos meus desejos, eu sou mãe; antes de sair de casa, eu sou mãe, e preciso de alguém que tome conta da minha filha; antes de ser mulher, eu sou mãe, meu corpo não é como antes; sou mãe e sou imperfeita, sou mãe e não me sinto desejada, sou mãe.

No ventre, a cicatriz me diz que eu vivo fora de mim, o corpo flácido me diz todos os dias que eu sou mãe, mas ora ou outra ainda me surpreendo ao ouvi-la dizer a palavra “mãe”, sou eu. A mãe impaciente, brava, que acorda no meio da noite com o grito de desespero da menina que clama por ela, quando de súbito acordou e vomitou por todo o quarto. Eu sou a mãe, que orgulhosa, chora nas apresentações do colégio. Eu sou a mãe que, ouve contrariada, as reclamações que ela faz sobre mim. Eu sou a mãe que quer dormir até mais tarde nos finais de semana e espera não ser incomodada pelo seu pequeno “eu” que exige atenção aos seus novos feitos.

Eu sou a mãe que quer desistir de tudo às vezes, e que quando se sente muito sozinha, só tem vontade de abraçar, chorar e soluçar agarrada à pequena menina, que parece mais adulta do que eu mesma.

Eu sou a mãe que morre de medo de perdê-la e que jamais se perdoaria se alguma coisa ruim lhe acontecesse.

Ter um filho é viver um sem número de emoções boas e ruins, é ter vontade de colocá-lo de vez em quando no guarda-roupas e esquecê-lo lá por uma semana; ter um filho é sonhar com ele de saudade, é sentir o silêncio corroendo a casa vazia; é querer que eles não cresçam nunca, mas que cresçam logo.

Ter um filho é muito mais do que quem não tem um filho possa imaginar. E é por serem tão especiais que não devemos tê-los assim, a torto e a direito, de qualquer jeito, só para nos perpetuarmos, devemos tê-los conscientes de que nunca mais teremos paz, e de que da felicidade deles, depende a nossa.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Nove anos

Não tardou a vir o peso na alma, porque hoje faz nove anos; faz nove anos que eu não sei dele, faz nove anos que ele resolveu desequilibrar as nossas vidas para tentar encontrar paz na dele. No caminho do cemitério Ana me disse: “Mãe, acho que teu pai deve estar orgulhoso de ti”, e eu disse: “Será? Será que ele tem alguma razão para isso? Será que ele sequer consegue pensar em ter orgulho de alguém?”, eu pensei.


Lembrei que quatro anos atrás, eu estava realmente de saco cheio da minha vida, e dos meus problemas, e num dia frio, muito frio e com chuva torrencial, eu resolvi ir até o cemitério brigar com ele. A pé, andando desarvorada, eu ia chorando, e quando cheguei lá, coloquei toda a minha revolta para fora, porque ele não poderia sumir assim, não para sempre, não sem me dizer pelo menos que alguma vez na vida dele ele se importou.

Eu ouvi um pouco mais dos dois lados da história, e o problema é que nenhum deles me favorece, nenhum deles me faz sentir mais sossegada diante da vida, e espero que essa covardia toda que eu vi, tanto dele quando dela, não me faça seguir seus passos de fuga. Não quero fugir da vida como eles, mesmo que me dê enorme vontade de fazê-lo às vezes, é preciso que eu pense em uma pequena criatura que descia pulando o largo parapeito do cemitério sem pensar ainda no que é a morte.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O cavalo morto

Ele estava entre as duas pistas de asfalto, numa larga faixa de terra batida, alaranjada. Havia poças de lama e muito lixo espalhado. Ali estava o cavalo morto - um pobre pangaré, daqueles que trabalham à exaustão puxando uma carroça - caído de lado, teso como se fosse um boneco, um boneco podre. À sua volta, ao longo dos dias, ia se formando um lodo de chorume que se soltava da carne que ia estragando e estragando. O animal inchado como um balão, tinha coberto o corpo de larvas de moscas, que depositavam ali seu pequeno legado de imundície. O pelo marrom já era ralo, e tinha a língua para fora, empretecida. O cheiro de carniça me fazia imaginar como estavam as tripas do bicho naquele instante, se é que ainda havia tripas, se é que o corpo morto não tinha se autodigerido para no fim de todo o processo virar nada. Eu vi sua cara vidrada, os olhos sem brilho, opacos, os dentes amarelados e a gengiva apodrecida. Parecia ter morrido de susto, e qual seria o susto de se ver morrer e jazer na rua? Como indigente a céu aberto, carne podre para ser cuspida, o cheiro da morte vermelha.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A morte

Morreu. Ninguém sabe para onde pode ter ido, se céu, inferno ou algo que o valha. Mas foi, foi assim de repente. Num dia estava bem, bebendo com os amigos depois do trabalho, no outro dia, nem acordou, ou “acordou morto”, muito chato.
No funeral os mais próximos choravam, questionavam a brevidade da vida, sem perceber que eles, figurinhas com data de validade expirada, já deveriam ter dado adeus à existência se a vida fosse tão breve quanto diziam.

Uns choravam mais e outros só se faziam presentes por gentileza. Quem não conhece o morto pode até achar meio exagerado o misto de lágrimas e auto-piedade que surgem nos velórios, enterros e afins. Assim é a vida, não? E olhando bem o sujeito no caixão, não parecia mesmo alguém muito notável, que vá fazer falta, pelo menos para mim – assim pensa quem não conhecia o que já partiu.

Morreu. E daí que deixou contas, que fez prestações, que tinha o nome sujo? E daí que traiu, embebedou-se, mentiu e adoeceu? E daí que sofreu, amou sem medida e fez mais inimigos do que amigos? E daí que atropelou um animalzinho logo que tirou a carta de motorista, e que por isso não conseguiu dormir durante dias? E daí que até o dia de sua morte, ainda não achava justa a surra que o pai lhe dera na adolescência? E daí que não se conformara com o grande amor perdido anos antes, ou que fumou mais baseados do que deveria ter fumado?

E daí que não plantou uma árvore, não escreveu um livro e não teve nenhum filho? – pelo menos até onde era de seu conhecimento.

Morreu. Nada mais importava. A promoção do emprego, a consulta médica marcada, a final do campeonato, a comida dos peixes, a visita aos pais... Tudo planejado, tudo certo. Nada importava.

As roupas na lavanderia, o novo tênis de corrida, a troca das pastilhas de freio, a grande viagem de aniversário, os filmes para devolver à locadora... Tudo por fazer. Nada importava.

As guerras pelo mundo, as catástrofes naturais, os animais em extinção, a nanotecnologia e a existência de Deus... A oposição ou o partido de situação? Tudo por refletir, agir, entender, mudar. Nada importava.

As pazes com os desafetos, as palavras de ira, de alento, de amor e desabafo que deveria dizer a tantas pessoas... Perderam-se no corpo que feneceu, falhou, encerrou atividades e deixou tudo bagunçado.

Um morto não deixa só saudades e tristeza para quem fica. O morto também deixa medos, remorso, pavor de que você tenha seu pézinho puxado na madrugada fria por aquele fantasma que agora que morreu, sabe tudo o que você pensava sobre ele. Pior! Sabe tudo o que você fez para ele! Caso de vingança póstuma na certa!

Pessoas mortas também deixam dívidas e dúvidas, sim, porque a pessoa morre, mas a dívida permanece, portanto pense duas vezes no discurso suicida “estou fazendo isso pela minha família”, porque a sua família pode ter que pagar as suas contas, e isso não é legal. Dúvidas, porque se quando a pessoa morreu vocês estavam brigados, você nunca saberá se aquela pessoa te odiava de verdade ou só da boca para fora, mas agora isso não importa porque você reza para elas todos os dias antes de dormir, e assim, tenta se redimir de alguma maneira.

A morte não é só uma passagem transcendental para debaixo da terra ou para outra dimensão, isso no caso do morto; a morte é também mudança profunda, ou nem tanto, para quem aqui permanece, e nem precisa ser de alguém que conhecia efetivamente o falecido.

Se o falecido era funcionário público, por exemplo, e uma pessoa bem viva e concurseira já estava rezando pela morte de alguém do setor em que ela deveria ser chamada pra trabalhar... Bingo! Essa pessoa se beneficia da morte. Mudança profunda na vida dela, porque o concurso estava em vias de expirar, e agora ela pode respirar aliviada porque mamar nas tetas do governo e ainda ter plano de saúde é muita sorte!

Pode ser também uma herança, o que não subentende apenas dinheiro, que pode trazer boas mudanças profundas, ou boas dores de cabeça judiciais tão profundas quanto o oceano. Quando morre alguém dentro da nossa casa, se é alguém realmente muito próximo, queremos ficar com tudo o que era dela, mas depois a gente percebe que a quinquilharia toda começa a cheirar à morte, daí ninguém mais quer nada, excetuando-se jóias, dólares, quadros e arte, em geral, de valor significativo no mercado.

A pessoa que morre, não pode cobrar mais nada, de mais ninguém. Nem satisfação, nem discrição, nem amizade, nem dívidas, nem amor, nem respeito. Acabou para ela. Fim da linha. C’est fini. Não importa quanto tempo ela tenha passado no leito de um hospital, naquele “vai não vai” para o além, porque quando ela vai de fato, nossa! É chocante, arrepiante, tocante, marcante, mas não é crocante e gostoso como um pacote de Dorito’s.

Não sei se morrer dói, fisicamente falando, independente de machucados e traumas, mas para quem fica, a morte de quem nos importa dói. Tudo para, sangra imensamente, parece que nunca vai fechar, formar ferida, aquela casquinha fina, que com qualquer coisa faz a crosta abrir de novo e sangrar mais um pouco. Antes de cicatrizar por completo, quando a ferida abre novamente, já não sai mais tanto sangue “vivo”, sai mais plasma, aquela aguinha, sabe? Que não deixa mais você tão apavorado consigo mesmo de ver uma chaga exposta, para que qualquer um a enxergue.

Morrer é coisa séria. Coisa que dói, lacera, deixa a dor fantasma do membro que não existe mais, morrer é tão sério, que a gente só tem chance de morrer uma vez nessa vida! E antes que a morte chegue até nós, prematura ou já vindo com alguns anos de atraso, que aproveitemos melhor nossas pequenas conquistas, vinganças, contas, sofrimentozinhos baratos que temos e que não têm qualquer peso diante da morte.

Nem amor, nem dinheiro, nem desejo, nem amizade. Nada sobrevive a ela, que é a única certeza, que é o clichê que mais gosto de usar, e tirando todo o sofrimento que todos sabemos que ela causa, mas que não deveria, adoro fazer graça dela.