terça-feira, 19 de novembro de 2019

sobre ser ridículo

o ridículo é aquele que é risível, mas não porque é engraçado; por escárnio. mais ridículo que o próprio é quem o julga. o ridículo não o teme ser. ele não consegue entrar nas gavetas da norma, da regra, da convenção. a própria vida nos leva a ser ridículos. os amantes são ridículos, assim como o amor que os origina. a exacerbação, o espalhafato, o sentimentalismo e o excesso de maneiras, de cores, a liberdade assim o tornam. gosto de ser ridícula porque choca, porque não esperam, porque quem cabe em caixas não quer sair de dentro delas e aponta dedos, lança olhares. o ridículo enxerga além, vê beleza na loucura, no ponto cego, no que está perdido... perdido, aquilo que não tem direção, que não sabe pra onde ir e só vai (ou estanca), vai sem receio, levado pela brisa leve da incerteza. ser ridículo é não ter medo de errar, é fazer mesmo sabendo que tudo pode se desfazer, que a dor pode chegar, que o encantamento pode acabar, que os quereres podem se transformar, que os caminhos podem se distanciar, que a vida pode ter outros planos. às vezes não quero; ser ridículo é uma merda. bancar o ridículo, fazer o papel ridículo. às vezes me envergonho; outras me regozijo. às vezes, num surto, é só o quero ser: RI-DÍ-CU-LA.


terça-feira, 5 de novembro de 2019

faz três dias que meu corpo dói. sinto como se tivessem me ateado fogo. minha pele dói, minha espinha urra, minha cabeça dilacera, minha nuca arde. as vontades se desfazem todas em suor durante a noite, quando me reviro, me reviro, me viro. a coberta me esquenta e me agonia, mas não consigo ficar sem ela. a dor se intensifica ou é amenizada pela posição fetal em que me encontro. vai passar, não vai? quando fecho os olhos, as palavras vêm como em um teleprompter acelerado. não dou conta de lê-las, de interpretá-las, de entendê-las. elas vêm me atropelando, marcadas em negrito e eu sequer consigo... me tonteiam, e seguem sem parar, noite adentro, me enojando, me fazendo sentir maluca, como se o sonho metalinguístico não fosse acabar nunca. por favor, tira-me daqui. acorda-me porque não quero mais dormir.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

sobre desamparo e desamor

eu era pequena, não sei quão pequena, mas estava sentada no colo dela, na sala de estar. eu ouvia sua voz e a sentia falar abafado, pois minha cabecinha estava encostada em seu peito. ela me abraçava e eu via as várias jóias que usava nos pulsos, os anéis de ouro nos dedos, as unhas pintadas de vermelho reluzente. eu estava acolhida no colo de minha mãe. um colo. é o único colo de que me lembro na infância, só aquela vez. hoje, eu sentei no chão da minha sala, sobre o tapete, com as pernas cruzadas e esperei que aquela menina entrasse pela porta. ela vinha um pouco maior, com os cabelos mais escuros e uma franja curta. ela vestia as roupas de moleque que eu vestia na meninice. entrou, veio em minha direção e logo enroscou os braços no meu pescoço. eu a abracei e a coloquei no meu colo. aquela menina franzina, meio tímida, queria meu aconchego. eu dei a ela. coloquei sua cabeça em meu peito como minha mãe fizera comigo - me lembrei de alguns cafunés que recebia; o som das unhas passando pelos cabelos, o relaxamento e os olhos cerrando na segurança da presença materna.

Fiquei com aquela menina ali, meio a embalando em meus braços, dizendo a ela que apesar de ela não ter recebido todo o afeto que lhe cabia, ainda assim ela o merecia; merecia amor, carinho e cuidado. não era culpa dela. nunca foi. ela só estava ali e por ali estar, apenas por existir ela merecia ser amada. então a abracei forte, me abracei e chorei até soluçar porque nunca tinha me ocorrido que em 35 anos eu havia recebido colo de tão poucas pessoas. colo de verdade, sem julgamentos, sem perguntas, sem moral. colo onde eu pudesse me esvair em lágrimas até me sentir seca e melhor. me senti desamparada de perceber que foram tão escassos. senti: caramba! que vida sozinha! quantas vezes sofri sozinha e não tive um colo pra me acalentar... eles demoraram pra surgir e os tenho garantidos, tenho certeza, apesar de poucos. eles me acalentaram e eu sei que também estive ali por eles.

ainda assim, me senti pequena, diante de um grande vazio, como se todas as pessoas que tivessem passado pela minha vida tivessem sumido e eu estivesse diante de um vácuo branco, sozinha, criança, perdida, deixada, infeliz. foi horrível. quisera não ter sentido, mas agora está registrado, mesmo que eu me esqueça, está aqui, em palavras, e está em mim, na minha mente.

em uma tarde febril de primavera, eu encontrei a minha menina a quem disse coisas amorosas em meio à vergonha, porque proferir palavras de amor a mim mesma, com sinceridade, ainda soa como algo... errado? não sei... preciso me convencer de que merecemos e dói, dói tanto que não seja natural, que não seja fluido; eu travo um tanto, um abraço de amor não é fácil, de compaixão genuína. me vejo, a vejo e esperamos ser enxergadas com o mesmo olhar; esperamos ser colocadas no colo e acarinhadas. um pescoço para enroscar os braços é o que queremos, mas primeiro precisamos entender que temos direito a isso.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

sobre o controle

controlar. segurar firme nas mãos e não deixar escapar. por medo do abandono, por medo de falhar, por medo. queremos sempre controlar o que não temos controle, o que está fora de nosso alcance, além de nós. o que está em nós, o que somos, o que apenas nos cabe e compete, deixamos de lado. eu deixo de lado; só por mim posso falar. meu modo de agir, de ser e de pensar. é sobre isso que tenho controle, mas os modos parecem fugidios e escapam à minha percepção. agem à revelia. me sabotam, como se eu não fosse capaz de domá-los, sendo eles eu mesma. foco no externo, fugindo de mim, tentando com isso tampar meus buracos, preenchê-los. e o faço com sucesso, mas ao contrário, enchendo-os de desassossego, de aflição, de ânsias idealizadas que me reviram o estômago e me cansam a mente. não basta perceber o todo, é preciso atuar sobre ele. é preciso se moderar, se modelar, se forjar para caber em si mesmo e ali ficar. dentro da minha forma, atuando em mim é o que posso fazer.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

sobre as casas que sou

voltei a sonhar com casas. cada sonho, uma casa diferente. às vezes elas são pequenas, de madeira, realmente necessitadas de uma reforma, mas gosto tanto delas... mudo os móveis de lugar, analiso os cômodos, vejo o que pode ser feito, transformado. tenho animais de estimação. às vezes cães, às vezes gatos. meus gatos nos sonhos são filhotes. minha filha nos sonhos não é uma adolescente; ela é pequena, minha. às vezes um bebê, que mama em meu seio. às vezes estou grávida e excitada com a expectativa de um novo ser. às vezes, meu marido e meus amigos estão comigo. às vezes estou sozinha em uma enorme casa, com grandes escadarias em caracol. eu e os fantasmas, meus fantasmas. eles não me assustam. cuidam da casa e cuidam de mim porque eu sou a casa. com grandes vitrais, largos corredores, muitas salas, móveis antigos, quartos espaçosos, cozinha acolhedora, muitos andares, telas, pinturas rebuscadas, tapetes peludos. concluo que estou grávida de mim mesma há 35 anos e ainda não me pari. que beleza é perder-se em si mesmo sabendo o caminho de volta. que tristeza é perder-se em si mesmo e só se perder, sem nunca encontrar nada além de um caminho tão longo e tortuoso que não se sabe mais como voltar, nem como se foi parar ali. que inferno é ser sua própria casa, lugar de aconchego e aprisionamento; gozo e dor. pra sempre um preso no outro, intercalando entre quem está dentro e quem está fora, sem nunca poder fugir dessa dinâmica. entre a visão de tudo o que se quer, o que se pode e o que se consegue. quero me parir, quero poder sair de mim sem ter medo de voltar.


quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Sobre o resgate diário

às vezes eu tento pensar em como seria minha vida sem você; não consigo. acho que teria me perdido em alguma das curvas do caminho, tenho como quase certo. nessa lida até aqui, segurei muitas barras, fui esteio dos outros, a equilibrada, enquanto piravam à minha volta. nunca me permiti endoidar como os via fazendo. fraquejei, me entreguei, fiquei na cama, quis desaparecer, mas não pude enlouquecer, por sua causa. hoje é você que me deixa à beira de um ataque de nervos, que me desvaria, que me enche o saco, que me perturba, mas tô aqui pra você. sempre te amando, mesmo chateada com a efervescência do que eu também já vivi. quero proteger, controlar, mas não posso mais, acho que desde que você entendeu que era gente, uma pessoa. não é minha extensão, mas é minha carne, que eu tento fazer entender os percalços pelos quais ainda vai passar, mas somos duas mentes, dois universos que nunca serão um só, como todos os outros. te amo mais do que qualquer pessoa na face da terra, e é por isso que dói. é por isso que me remoo. é porque te quero tanto bem que sofro pela falta de desapego. você ainda vai voar muito alto, tenho certeza, junto com todas as minhas certezas de mãe, mas queria que fosse mais fácil. todos os dias vejo você se aproximar de um buraco, eu grito, te puxo de volta. é exaustivo. às vezes são pequenos buracos, às vezes eles são maiores do que a água parada lá dentro permite enxergar; te puxo sempre e continuarei jogando a boia para que você se segure. a boia sou eu. e às vezes você é a minha boia. vamos trocando a boia para que nenhuma de nós afunde. mas eu nado melhor do que você, acredite. tenho mais ferramentas para não perecer. no jogo da confiança, por favor, se apoie em mim, eu te seguro, vou sempre segurar.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

sobre o que está dentro e que buscamos no que está fora

entre sentir demais e não sentir nada, o que você prefere? você acha que sente o outro ou é só você sentindo a si mesmo? se não podemos sentir o outro, não é melhor se tocar sozinho e sentir tudo? você fode com alguém ou você só fode a si mesmo com a ajuda do outro? duas pessoas transando são duas pessoas transando, uma com a outra, ou apenas transando consigo mesmas? você busca o gozo do outro ou só usa o outro pra gozar? o que você sente pelo outro, acha que sente por ele ou por si mesmo? pelo gozo de ser gostado, pela satisfação que tiramos do afeto do outro em relação a nós, porque o outro nos gosta é que gostamos do outro. não há desinteresse; ao contrário, tudo é autocentrado. eu te dou porque você me dá. se não me dá, se não me faz gozar, se não atua na minha potência, não quero. se não me come, não me consome, não me vomita e não me come de novo, pra quê? se não me devora, se não me agita, se não me deixa sem ar, pra quê? sinto demais, inferno! quisera não sentir nada, mas é mentira, porque sentir é sempre - ou quase - melhor do que não. 

sábado, 10 de agosto de 2019

sobre amores leoninos

Quando eu tinha 12 anos de idade, conheci meu amor mais duradouro até hoje. Ela é a pessoa a quem quero contar meus problemas e minhas alegrias; a pessoa que escolhi na vida pra ter assim, pra sempre, e essas pessoas existem. Temos pais, temos irmãos, temos filhos, temos amores e temos amigos. Meus verdadeiros amigos estão comigo há bons anos e sei, como ela diz, que me ajudaria até a esconder um corpo, que me confiaria sua vida e a quem eu confio, também, meu bem mais precioso. Eles surgem em algum momento, bom ou ruim, mas estão sempre ali, como ela, apesar de não atender sempre o telefone. No meio de músicas felizes e tristes, no meio do turbilhão diário, sendo madrinha de casamento, confidente, colo e consolo, ela está ali. Minha Thaz, a quem eu tanto devo, a quem eu tanto amo que nem sei dizer. Novas, velhas, doentes ou sãs, sempre estaremos juntas, meu amor. A todos os outros que amo e por quem tenho carinho, só desejo que um dia possam encontrar alguém tão especial e luminosa quanto ela. Para além de todas as riquezas, quem tem uma amizade como a nossa, tem tudo nessa vida que se poderia querer. Logo seu ano recomeça e eu espero do fundo da minha alma que seja tão maravilhoso quanto você é. Que seja de riquezas infinitas, beleza plantar, de contemplação feliz, e que você possa ser muito muito muito mais do que já é. Te amo até o fim, pra sempre.

sábado, 3 de agosto de 2019

sobre familiaridade

Tenho dormido demais, de novo. Todos os dias sonho que minha mãe volta a morar comigo ou que eu vou morar com ela. A convivência é caótica nas casas diferentes de cada sonho; o drama está sempre presente, ainda assim, vejo essa mulher mais jovem, viva, querendo fazer parte da minha vida novamente. Acho que sou eu querendo a familiaridade do instável, do colo torto, os joguetes emocionais dos quais nunca gostei, mas com que convivi por tempo demais. Meu inconsciente está buscando o familiar, o que deveria ser porto-seguro, a mãe, que preciso aprender a re-conhecer, mesmo diante de todas as faltas, teve sua presença: me acalentou e esteve comigo, mesmo que depois tenha me cobrado um preço alto de sanidade por isso. Importa que agora a filha cuida de uma filha. Com as faltas e erros, ainda me considero um sucesso no percurso todo. Ela será muito melhor do que nós duas fomos uma com a outra. Espero ter rompido dinâmicas viciadas de dor e dependência. Espero que apesar da simbiose, ela consiga se descolar de mim e ir para o mundo, livre, sem sonhar que voltamos a conviver na busca por um vínculo doente.


segunda-feira, 29 de julho de 2019

Sobre cair para o centro do mundo

Será que a vida é uma queda livre sem fim e enquanto caímos vemos as outras pessoas caindo também? algumas estão caindo perto de nós e as agarramos pra ter a sensação de estancar o corpo em queda e assim seguimos. Nos segurando em uns e deixando os outros irem. Não quero ser refém de ninguém na minha queda. Quero cair sozinha, sentir o ar mais forte ou como uma brisa, dependendo dos dias. Sentir o vento mais frio ou mais quente, dependendo da estação, me enroscando em braços e pernas e abraços torpes e cálidos, duvidando da minha capacidade de flanar sozinha. Será que imponho a presença de outros por medo do chão se aproximar ou porque a queda é muito longa e preciso de alguém para me frear no meio do caminho vertical? Quando é que me sentirei como um pássaro independente, que bate as asas para onde quer ir? Quando?

sábado, 20 de julho de 2019

sobre o que vem depois da quadra 30

Os choques continuam, na minha boca e agora nos meus pés. Ando e reverbero. Abri uma meia-calça nova; é preta e me aperta na barriga. Me maquiei pra mim, eu pensei. Pensei que estaria feliz hoje porque eu terminei o que deveria ter terminado. Entreguei. me livrei. Agora falta pouco e eu deveria estar feliz por isso. Não acabou ainda e eu dou choradinhas ao longo do dia pensando na vida, como a que estou dando agora. Só umedeço os olhos e deixo qualquer coisa me levar. Eu queria água com gás e fui dar uma volta no cemitério, que nem sabia ficava aberto madrugada adentro, com o risco de quem já morreu fugir do paraíso. Há anos não fazia isso. O que será que me espera depois da quadra 30? O que será, agora que já cheguei na metade disso? Semana que vem é meu aniversário e eu não tenho nenhuma vontade de comemorar os 35.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Sobre a névoa do embotamento

Quando ainda não totalmente acordada, quando ainda meio dormindo, entre o sono de sonho e o sono de elocubrações, tive várias visões das palavras, dos sentimentos, das avalanches e bolos embolados, dos nós misturados com coisas, com dor, com coisas loucas que iam simplesmente aparecendo na medida em que o pensamento ia mais adiante. Eu quase não conseguia acompanhar tudo o que via e sentia tudo junto, ao mesmo tempo em que cada célula sentia diferente e individualmente o jorro do que eu via.

Me senti capaz, potente, como no gozo ofegante que estremece, que faz pensar se eu poderia morrer agora, se a morte se sente assim, se o suspiro último é tão condensador de toda a vida e a faz valer a pena por todo o resto? Será?

Senti falta, mas senti liberdade, senti medo, mas senti coragem, senti vontade de ser uma menina de laço vermelho nos cabelos, carregando toda a bagagem do que sei agora. Louca, louca, louca, como nunca pude ser, sempre me aparando, me contendo, e é assim que acabo com a minha potência. Quanto mais penso, menos escrevo. Mente idiota, quer sempre racionalizar o que está tão bonito na tela dos meus olhos. Estraga tudo.

Calma, eu volto. Vamos brincar mais de ir para longe, lançar mais longe a linha; veremos até onde consigo ir. Te levo comigo, sem peso. Vem!

terça-feira, 9 de julho de 2019

Sobre o agora

O mais difícil é olhar pro agora, olhar para o espelho. A sala faz um eco vazio e eu ando pelas calçadas de forma cambaleante, desviando das pessoas e olhando para o chão, nauseada, aziática. O inverno me faz bem, mas me faz mal. Mesmo não lançando meu olhar melancólico sobre os outros, a brisa gelada me faz feliz, até que eu sue. Minha boca seca puxa o ar e o peito não se enche. Há um gato sobre mim, mas ele não está ali de verdade. Mais de um ano depois, volto. Sempre volto. Sempre com a mesma angústia fodida querendo saber o que a vida espera de mim? O que eu espero da minha vida? Meu inferno astral está acabando comigo. Sinto como se não tivesse tomado meu remédio. Tome seu remédio, vai lhe fazer bem, eu disse a mim mesma, mas agora sinto como se não o tivesse engolido. O céu da minha boca pulsa, minha mandíbula vibra e minha cabeça me dá choquinhos no meio da marcha. E eu continuo não conseguindo olhar as pessoas, continuo não conseguindo enxergá-las porque não me vejo. Mas estou aqui; os olhos amarelos me fitam com fome e eu já me suguei o quanto podia; não. Eu posso mais, eu posso agora e vou poder depois. Apago mais um cigarro e o peito chia. Descanso as mãos no teclado e penso; não sei no que penso. Tremo de leve lembrando do outro dia, um pé quente e outro frio e não durmo direito pensando na hora de me levantar e de ser uma pessoa melhor.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Sobre perder um animalzinho de estimação (in memoriam de Raquete)

Desde muito pequena, tenho a lembrança de termos bichinhos de estimação em casa. Enquanto meus pais ainda eram casados, lembro de uma cadelinha vira-latas, a Chiquita, que prenhe, deu à luz vários cachorrinhos, os quais batizamos todos com nomes de paquitas da Xuxa. Sim, a Xuxa estava bem presente em nossas vidas naquela época. Não me lembro ao certo, mas os nomes eram algo como Miúcha, Pituxa, Catuxa... coisas do gênero. Também me lembro com carinho de um gatinho siamês que encontramos na praia e trouxemos para casa. Achávamos que era fêmea; o nome que lhe demos? Xuxa, óbvio. Quando, depois, descobrimos que era um macho, não foi difícil mudar o nome para Xuxo.

O fim da Chiquita, não me lembro com certeza, mas acho que foi atropelada. Os filhotinhos todos devem ter sido adotados. O Xuxo ficou com meu pai, mesmo depois da separação dele e da minha mãe. Olha, o bichano era bem tratado. Ainda consigo vê-lo se esfregando pelas pernas do meu pai, enquanto ele colocava um pires cor de âmbar, cheio de atum, sobre o tapete da cozinha. Às vezes Xuxo saía, ficava dias sem aparecer e, quando voltava para casa, estava todo estropiado. Meu pai inventava histórias; dizia que ele tinha ido namorar, azarar as gatinhas, e sempre acabava brigando com os outros machos. Claro que ele fazia isso mesmo, mas as histórias humanizavam o gato de um jeito que os passeios com as gatinhas eram feitos em carros dirigidos pelo Xuxo, e eu imaginava as cenas todas...

Quando meus pais se separaram e fomos morar em um apartamento, tivemos um hamster. O que ele tinha de pequeno, tinha de arteiro. Fugia da gaiola com frequência e uma vez chegou a roer o fio do telefone que passava por trás da estante da sala. Seu fim foi triste, pois, em uma de suas escapulidas, ele caiu no fosso da escada, três andares abaixo. Soubemos quando chegamos em casa e o zelador do prédio perguntou à nossa mãe se tínhamos um hamster. Ao menos, ele teve um velório muito legal, com direito a passeio no helicóptero de brinquedo do meu irmão, içado em um saco de lixo preto.

Mas para além desses bichinhos, a esmagadora maioria deles veio para as nossas vidas quando nos mudamos para Macapá. Lá, tivemos tantos gatos, tantos cachorros, tantos outros bichos que não consigo contar. Naquela época (anos 90), muito diferente de hoje, em que se pensa em castração, em alimentar os animais apenas com ração adequada, em mantê-los em casa... os tempos eram muito outros.

Seguramente, tivemos uns vinte cachorros e mais de trinta gatos enquanto moramos lá. Tivemos mais gatos porque as fêmeas reproduziam a cada passeio na rua. Lembro da Fofa, uma siamesa sem-vergonha, que emprenhou umas três vezes enquanto estava conosco. Os filhotinhos vinham sempre pretinhos e, no fim das contas, acabávamos ficando com a maioria deles. Sempre tínhamos gatinhos em casa. Os gatos dificilmente morriam diante dos nossos olhos. Eles sumiam. Presumíamos que morriam porque não voltavam mais. Como sempre moramos em casas e os bichanos não eram castrados, esse fim era meio evidente, mas talvez não fosse para nós naquele tempo.

Os cachorros, muitas vezes morriam ainda filhotes, com parvovirose. Os pobrezinhos se esvaiam em merda sanguinolenta, daquela que cheira à ceifadora. Eles definhavam em poucos dias e, geralmente, era envoltos à essa poça de fezes, que eles não conseguiam conter, que davam seu último suspiro canino, sob os nossos olhares cheios de lágrimas. Ainda assim, a morte era mais natural, porque eram tantos bichos, que amávamos tanto, mas aos quais não nos apegávamos como hoje.

Claro, nessa estrada havia alguns favoritos, mais marcantes, como o Benji, que era um poodle de cor encardida que compramos em Curitiba em uma viagem que fizemos em 1994. O cachorro foi nosso xodó pelo tempo em que esteve conosco. Era meigo, querido, parecia uma ovelhinha. Mas um dia, eu não fechei o portão da nossa casa direito e ele fugiu. Um homem que passava lá pela frente, perguntou se eu tinha um cachorro bege e eu disse que sim. Então ele me disse que o cachorro tinha sido atropelado na esquina. Eu saí correndo, desesperada, chorando... E quando cheguei ali, ele estava todo molinho, com o focinho preto cheio de terra, sujinho... e morto. Foi a primeira vez que me senti responsável por tirar a vida de alguém, não por tê-lo atropelado, mas por não fechar o portão direito, por não ter sido cautelosa, por não tê-lo visto fugir. Que dor pra uma menina de dez anos. À noite, eu chorava chamando por ele, num misto de culpa e saudade.

Tantos foram os animaizinhos que tínhamos, que os que iam morrendo, íamos enterrando no quintal de uma das casas em que moramos. Era um verdadeiro Pet Cemetery, e acabei de perceber que talvez a minha simpatia por cemitérios tenha surgido pelo que tínhamos em casa mesmo. Eu gostava muito de ir no quintal, pisar sobre as folhas secas, sentir o sol passando pelos galhos das árvores... e ver que sob algumas pedras e cruzes de madeira improvisadas, estavam nossos falecidos bichinhos. Tinha a mesma sensação de paz que tenho nos cemitérios de pessoas.

Muitos foram os animaizinhos que passaram pela minha vida. A gata Laica, uma frajola corpulenta que acabamos doando para o depósito das lojas Brasileiras da cidade, porque ela era ótima em caçar ratos. Sempre podíamos visitá-la e ela era muito bem tratada. A cadela vira-latas, Susi, que frustrada por nunca ter sido mãe, adotava os gatinhos bebês da nossa gata e deixava que eles mamassem nela até que ela produziu leite. A cadela era um verdadeiro doce de carência e afetividade. O ganso cinza, Mutley, que dormia na cama junto o meu irmão, que vinha quando o chamávamos, como um cachorrinho, mas que um dia sumiu... acreditamos que ele tenha sido usado em algum ritual. O huskie siberiano, Zowie, que meu irmão encontrou perambulando pela rua e que trouxe para casa. O cachorro era demais; o único problema é que ele odiava nossos gatos, o que vale uma história à parte só para contar o causo em que ele tentou matar um de nossos gatinhos. A cadela Laica, uma pastor alemão traumatizada, que passou a vida toda apanhando com cabo de vassoura enquanto vivia acorrentada. Ela veio para nossa casa já adulta e era bastante violenta, menos com o meu irmão e, aos poucos foi ficando nossa amiguinha, só precisava de carinho, mas nem ela sabia disso. Em um ataque de raiva, ela matou uma cadelinha muito meiguinha e amorosa que sempre dormia na cabeça da minha mãe, em seu travesseiro, a Minnie. A pequenina pretinha fora ingenuamente mexer na tigela de comida da Laica... Um bichano do qual não me recordo o nome, mas que supomos que havia morrido por conta de seu desaparecimento, até que depois de uns três meses, ele resolveu aparecer no forro da nossa casa. O saudosíssimo Bethoven, um vira-latas baixinho, comprido, amarelo, de saco reluzente e simpatissímo. O fofo Puggle, um cachorro desses que vemos em vídeos de bichinhos muito maltratados, mas que são recuperados, sabe? O Puggle era só pele, ossos e unhas. Ele não tinha pelos no corpinho; era coberto de feridas das patas à cabeça e andava todo arcado, magro como se tivesse sido chupado. Ele começou a dormir no pátio da casa em que morávamos e eu me aproximei dele, vi que era manso e consegui com um primo um remédio injetável, subcutâneo, que eu mesma aplicava nele. As feridas aos poucos secaram, caíram e o pelinho começou a crescer. Nós o adotamos, o alimentamos e só depois que ele estava refeito, foi que vimos se tratar de um poodle. O amadinho nos foi roubado em uma de suas fugidinhas de casa. O gato Baby, um maravilhoso angorá tigrado e branco que, muito territorialista, mijava nos móveis da casa, em jatos, quando ficava puto conosco.

Enfim, entre tantos e tantos outros bichinhos que tive; entre a alegria de suas chegadas e a tristeza com suas partidas, fazia muitos anos que eu não perdia um amiguinho, aliás, mais do que isso, um filho de patas. Animais de estimação são seres que estimamos, que amamos, a quem damos valor, a quem nos afeiçoamos e que nos despertam muitos sentimentos, mas essencialmente o amor. Se você é capaz de criar laços com um bichinho, acredite, você é capaz de amar. Quando destroem, bagunçam ou fazem muito barulho, sim, odiamos, praguejamos, brigamos, ficamos com raiva; é normal. A gente trata como filhos e daí queremos que eles se comportem como humanos, mas não são. Ainda assim, a cada cabeçada de amor, a cada piscadinha de carinho, a cada motorzinho ligado, a cada ninho feito sobre nós na cama, nos derretemos, desculpamos tudo, pedimos desculpas pelas broncas e ficamos prontos para a próxima aprontação. Quando ficam doentes, ficamos loucos de preocupação e quando estão bem, tudo bem, estamos todos em paz.

No dia 31 de maio, depois de muito meditar sobre o assunto, eu fui encontrar com uma moça que tinha três filhotes de gata para adotar um deles. Quando chegamos lá, Ana, Nathalia e eu, achamos os três fofos, lindos, uma graça e eu cheguei a pensar em adotar os dois machinhos e deixar a fêmea porque a intenção inicial era de levar um machinho. Indecisão total, e as duas me dizem: por que não levar os três? Naquele ímpeto, impulso louco, carregamos os três, cada uma levando um no colo. No carro, aquele coral louco e viemos para casa.

Quando chegamos, os colocamos de frente com os três residentes adultos, Marte, Marta e Pretinha. Aquele pandemônio. Marte, o rei da casa, rosnava de um jeito que parecia querer falar em protesto contra os novos moradores. Rosnava tanto que até se engasgava. Pretinha vazou para o escritório e Marta também fazia aquele cara de poucos amigos jogando as orelhas para trás. Okay, me arrependi. Péssima ideia. Eles estavam aqui, mas ainda não eram parte da família, sabe? E nem eu queria que a família já consolidada se estressasse desnecessariamente. Mas o Danilo não demorou nadinha pra se apaixonar por eles, pela peraltice e por eles verem um brinquedo em tudo que encontravam pelo caminho. No outro dia, iríamos passar o feriado fora, então separamos os chanos entre bebês e adultos, enchemos várias tigelas de comida, água e caixas de areia limpas e fomos. Na volta, estavam todos bem, ufa!

Os bebês ainda não tinham nomes oficiais, mas a Ana já chamava um dos meninos de Juninho, nome que eu achava horroroso. Juninho mais tarde se tornou Raquete, porque era o maior dos irmãos, com patas enormes, como raquetes. O outro menino é o Presto. Sabe o mago do desenho Caverna do Dragão? Aquele que se vestia de verde e era todo atrapalhado, então, é o chaninho. Mais tímido, na dele, meio bocozinho, mas um doce. A menina virou Paleta, pela profusão de cores, branca, cinza e laranja; ela é a menorzinha, a mais queridinha.

Os três eram imparáveis! Em duas semanas, quebraram um copo, três caveiras de resina da nossa coleção, uma tigela de cerâmica, cheia de sementes de abóbora; comeram um bolo de chocolate roubado - que lhes rendeu uma bela diarreia -, roubavam ovos das caixas, jogavam no chão e os comiam crus! Bebiam muitíssima água o tempo todo, desfiaram nossas calças, nossas mantas, nossos sofás e nossas camas e só sossegavam enquanto comiam e quando dormiam aninhados uns nos outros. Nos outros intervalos, eram miados, muita arte e fofura junta!

O Raquete era um furacão. Na hora da comida, era ele quem puxava o coral do desespero da fome, com um miado de sirene que no início me agoniava, mas que eu fui achando engraçado. Ele era a fome em forma de gato, um verdadeiro aspirador de comida, não importa o que fosse. Se a gente se aproximasse da ilha da cozinha, ele escalava nossas pernas, fincando as unhinhas de agulha na nossa pele até sangrar. Um dia, em menos de uma hora, em subiu pelas minhas pernas cinco vezes. Sangrei  em todas elas. Fiquei puta! Ainda tenho as feridas dos arranhões que ele nunca mais vai me dar.

Ele era o mais vivaz, o mais esperto, o mais arteiro, era o mais genuíno espírito livre que essa casa já viu nos últimos tempos. Raquete, meu filhinho lindo, eu queria muito muito muito poder voltar no tempo, ou pelo menos queria poder te enterrar em um cemitério indígena pra que você voltasse pra gente como um gatinho zumbi, eu juro que não me importaria. Eu sinto muito, muitíssimo pela sua passagem ter sido tão curta entre a gente. Eu queria muito te ver crescer e virar um gatão peludo e lindo que eu tenho certeza que você seria.

Enquanto eu estava escrevendo isso, o moço do crematório trouxe as suas cinzas. Elas estão aqui do meu lado agora, como eu gostaria que você estivesse. Me perdoe por ser humana e falha. Eu fiz meu melhor e tenho certeza de que você, mesmo brevemente, foi tão feliz com os seus irmãozinhos, quanto qualquer gatinho seria. Vou plantar suas cinzas em um vaso bem bonito, junto com sementinhas de boca de leão e você ainda vai florescer para nós, para deixar a nossa vida mais bonita.

O nomezinho está errado, mas este era o Raquetinho, para sempre em nossos corações =~~

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Sobre ser/estar viciada em um telefone

Não sei bem quando foi que o telefone, que hoje é muito mais do que isso, se tornou uma praga na minha vida. Antes dele ser um smartphone, o legal era ter um super plano para poder falar com todo mundo e mandar muitos sms. Eu era mais feliz nessa época... Quando comprei meu primeiro smartphone foi pra não ficar pra trás, vejam só. Na transição entre os telefones que não faziam mais do que ligações e mandavam mensagens para os que tinham tantos recursos que não permitiam que as baterias durassem mais do que um dia, eu me perdi.

A obsolescência programada bombou na minha vida naquele tempo. Se por acaso, você não souber o que é isso, eu explico: a obsolescência programada é uma ferramenta que o sistema capitalista desenvolveu para garantir que as pessoas nunca parem de consumir. Para isso, a indústria produz produtos que duram cada vez menos e, com a ajuda da propaganda, criam a ilusão de que você precisa de um novo telefone (ou qualquer outra coisa) porque o novo modelo tem mais recursos do que o anterior e a tela do seu telefone quebrou mesmo, e você sabe que só uma tela nova é quase o preço de um aparelho novo, então é melhor trocar... daí você vê as pessoas mais descoladas do instagramzzz usando alguma coisa nova e você também quer aquela coisa nova porque, né? Ter é poder! Mas isso é assunto para outro post. Pra encerrar isso, apenas recomendo que assistam a este vídeo sobre o assunto: A história secreta da obsolescência programada.

Ainda assim, o mercado está aí pra nos fazer querer o objeto e isso já é bem ruim, considerando as consequências do nosso consumo desenfreado para o planeta, mas a cagada não para nisso. Ela é muito maior, porque não basta ter o smartphone, você tem que participar de todas as redes sociais que mantêm você com a cara na tela 24/7.

Antes, eu tinha o facebookson, o twitterson e o instagramzzz no meu telefone. Era viciada nessas porras todas; passava o dia todo malhando o dedo no feed. Lia um livro? Não. Dava uma faxinada na casa? Não. Meditava? Não. Caminhadinha no final da tarde? Porra nenhuma! Era só em função dessas merdas. Lendo gente que só falava besteira, vendo foto de felicidade de mentira e eu também estava no meio disso, querendo mostrar um pouquinho do quanto eu era feliz e de como a minha vida era boa; só tinha um detalhe: eu não estava vivendo a minha vida. Tava na porra do telefone!

Tirei do meu telefone o facebookson, o twitterson - que me divertia muito por causa dos baphões - e o instagramzzz. Mas de vez em quando ainda espio coisas nessas redes, o que me faz pensar que a adicção é mesmo uma parada sem cura. Principalmente porque você não deixa de ter um vício, você apenas o troca por outro. No meu caso, Youtubz e portais de notícias. E eu continuo na merda!!! Não tenho controle da minha vida. Acesso os portais de notícias - globo e uol - pelo menos três ou quatro vezes por dia -, faço vários quizzes do buzzfeed - sim, eu sou essa pessoa que sustenta aquele bando de gente que cria um "conteúdo" de merda... e o Youtubz... nossa! Minha vida é assistir vídeos enquanto lavo a louça, enquanto vou ao banheiro, enquanto faço qualquer coisa.

Eu não consigo mais ficar sozinha comigo mesma sem ter o telefone do meu lado pra me "preencher", sendo que eu só me sinto cada vez mais vazia. Fico ansiosa quando não estou vendo algum vídeo ou lendo alguma notícia. Mas me pergunta se eu tento aplacar a ansiedade fazendo alguma coisa útil? Não. Sabe o que eu faço? Eu como. Eu penso nas coisas que eu deveria fazer por compromisso ou obrigação e daí eu como. Eu penso nas coisas que poderia fazer por prazer e daí eu como. Comer me dá um prazer que já vem instantaneamente acompanhado de culpa, de arrependimento, de vontade de desaparecer da face da terra.

Perdi o controle da minha vida. Perdi minha capacidade de discernimento quando permiti que um aparelho eletrônico virasse a válvula de escape pra eu fugir da minha vida e das minhas responsabilidades e é tão claro o mal que isso me faz que eu sequer consigo curtir plenamente os momentos em que eu estou anestesiada. Claro que não é só isso, claro que a tecnologia é também maravilhosa e facilitadora da nossa vida, mas se por acaso, você tem se sentido como eu, com uma agitação no peito, uma angústia que não passa, uma ansiedade que só para quando a tela é ligada e quando ela é desligada você procrastina suas tarefas para ligá-la de novo, então, meu amigo, você está fodido como eu.

Somos adictos da tecnologia e isso não é nenhum mérito. Por que é que é sempre mais fácil gostar do que nos faz mal do que das coisas que nos fazem bem? Não sei. Vou tentar descobrir e depois eu volto pra contar. Talvez eu ache a resposta no Goooooogle, vai saber.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Sobre o natal

Desde que me conheço por gente, amo o natal; a atmosfera das luzes coloridas, das bolinhas de vidro brilhantes, a sensação de união e acolhimento que essa data representa, mesmo hoje, sendo ateia, pois nunca houve a conotação religiosa para mim, e sim, de reunião familiar. Não era o aniversário de Jesus, era a família junta, nessa época tão distante e feliz.

Acho que a lembrança mais remota que tenho desse feriado é de quando era bem pequena, com uns cinco anos de idade, e saímos de Florianópolis - minha mãe, meu irmão e eu -, em direção a Ponta Grossa, no Gol branco movido a álcool que ficava estacionado no posto de gasolina da esquina do nosso prédio. Pra fazer o carro pegar, você precisava dar a partida várias vezes e deixar o motor aquecer, então minha mãe ligava o carro e deixava ele lá por um tempo, até que pudéssemos ir.

Meu irmão e eu tínhamos, cada um, uma cobertor quente, quadriculado, de lã com franjas; o dele era marrom e, o meu, rosa. Quando não estávamos brigando para ver quem sentaria no banco da frente - o que era uma prova de ser "grande" -, nos cobríamos com elas no banco de trás do carro, enquanto um chutava o outro por mais espaço. Ninguém usava cinto de segurança e foi nas franjas da minha coberta que, mais tarde, aprendi a fazer tranças. Coisa besta de criança... Nisso pegamos a estrada.

Eu não me lembro com certeza, aliás do que nos lembramos se não daquilo que nos é conveniente (?), mas meu avô morava em um prédio que ficava em frente ao terminal de ônibus da cidade. Talvez não seja isso, mas tenho a lembrança de uma movimentação constante naquela rua. A porta de entrada era de vidro aramado, disso tenho certeza, e sempre que vejo esse tipo de vidro me lembro do antigo prédio. O chão do hall de entrada era de granitina, e o piso do apartamento era de tacos de madeira. O chão da cozinha era de vinil, com grandes quadrados brancos e pretos ou brancos e azuis, posso estar mentindo de novo; mas de fato era de vinil.

O banheiro tinha uma grande - pelo menos para mim, naquela altura da vida - banheira, do estilo vitoriano, porque tinhas pés, e um suporte para a cortina de plástico acima dela. Lembro dela no meio do banheiro e dos bancos plásticos azuis e laranjas, que eram redondos e tinham o formato de uma ampulheta e ficavam nos cantos do banheiro; me lembro do piso branco de pequenas pastilhas hexagonais de cerâmica... O apartamento dos meus avós era o retrato perfeito dos anos 80, do mesmo jeito que deveria ser a casa de qualquer pessoa naquela época; ainda assim, era a casa dos meus avós: a mais legal de todas, com os melhores cheiros de comida e com as melhores lembranças. Se os detalhes eram como me lembro ou não, não sei, mas o que ficou registrado foi isso.

Minha mãe tinha quatro irmãs; ela era a mais velha. Minha tia, nascida depois dela, também estava na casa do meu avô para o natal, junto com as duas filhas, minhas primas, primas-irmãs. As outras três filhas viviam na casa do meu avô. A terceira era super estudiosa e fazia o estilo "nerd" da época; ela dividia o quarto com a quarta filha, que estudava em colégio interno de freiras, em outra cidade, e nas férias voltava para casa e nos aterrorizava contando histórias de fantasmas da escola. Rolava uma muito boa, de alguém que caia em um poço; mas os detalhes se perderam no poço das minhas memórias.

A quinta filha era a única filha do meu avô com a única pessoa que conheci como avó, mas que na verdade era a minha "avódrasta". Essa tia era uma filha temporã, apenas um ou dois anos mais velha do que o meu irmão,  que fora o primeiro neto e, quatro anos mais velho do que eu. Minha mãe e as outras tias eram filhas do primeiro casamento do meu avô. Minha vó, Cristina, morreu muito nova, quando minha mãe tinha só 14 anos de idade. Depois de alguns anos, meu avô se casou com a vó que eu conheço, com a única que conheci e que sempre foi o perfeito modelo de vó.

Ela fazia as comidas mais gostosas. Engraçado é que apesar de saber que eram muito boas, não me lembro de nenhuma específica. Lembro só da sobremesa, sorvete de coco, que era a preferida do meu irmão. Ele era o neto predileto do meu avô, visto que era o único menino numa família cheia de mulheres. A casa tinha os cheiros mais gostosos da minha infância, uma mistura de porco assado, alho frito e vinho. Minhas primeiras memórias olfativas se fizeram nessa época - acabei de constatar, e como são boas! Graças à minha vó, a típica, que não sossegava até que todos estivessem estufados de tanta comida; a que sempre dizia: "coma só mais um pouquinho; você não comeu nada..." e a gente já estava colocando arroz pelo nariz! Ah, tempo bom...

A árvore de natal da casa dos meus avós ficava no canto da sala e o topo dela encostava no teto. Vô João tinha um sítio em Itaiacoca e era de lá que ele trazia o pinheiro, de verdade, com o tronco de cascas ásperas e com as folhas pontudas. A árvore era decorada com bolinhas de fino vidro, brilhantes e coloridas, que tilintavam quando encostavam umas nas outras, e com fitas de guirlandas coloridas e de brilho metálico. As luzes do pisca-pisca colorido na sala escura ficarão para sempre na minha memória. Aquelas luzinhas brilhavam dentro de mim me enchendo de esperança, de fascínio, e me fazendo acreditar que a vida toda estava ali dentro e que ela era muito bonita.

Entre todas essas lembranças, estávamos nós, quatro primos e uma tia de mesma idade, assistindo ao Xou da Xuxa, vendo clipes dos Menudos e do New Kids on the Block - por quem minha tia mais nova pirava muito. A gente brincava de Barbie e meu irmão irmão brincava com bonecos do He-Man, dos Comandos em Ação e dos Galaxy Rangers.

Na noite de natal, as meninas ansiavam por aumentar a coleção de bonecas da Moranguinho ou do Meu Pequeno Pônei. A esperança pelos presentes até amenizou o trauma de ver um primo de segundo grau, mais velho, vestido de Papai Noel e com uma máscara horrorosa de borracha, que me fez ter uma crise de histeria e choro. Que diabo de Papai Noel bizarro do inferno! Eu não queria sentar no colo dele de jeito e maneira!

Acho que foi naquele natal que roubei toda a coleção de borrachas perfumadas e coloridas da minha tia - delinquente desde sempre - que tinham formatos diversos, de estrelas, corações, e glitter, purpurina! Tudo que tinha brilho e cor eu queria pra mim. Ficava encantada, abestada com a delicadeza das formas, do reflexo, da mistura de cores.

Acho que esse foi o melhor natal de que me lembro, pois apesar de poder ter sido completamente diferente do que eu falei, com versões idealizadas dos adultos, foi o natal visto e sentido por uma criança, na época da vida em que tudo é maior, mais fantástico, mais bonito e mais significativo pra gente. Aquele natal da infância é o que eu gostaria de reproduzir todos os anos da minha vida, com toda a segurança de ter uma família por perto, com as pessoas que importam, com quem a gente ama e que nos quer bem.

Toda a agitação dos preparativos para a ceia, todas as conversas tarde da noite, todas as discussões apartadas, todos os abraços de perdão, todas as risadas das lembranças engraçadas e todo o clima, os cheiros, os sabores. Tudo isso é Natal para mim.

Para mim, as luzes de natal são o símbolo da centelha de vida que carregamos com a gente e que nessa época brilham mais, pois quando estamos perto de quem amamos, é que a vida mais faz sentido.

Feliz Natal! 🌲

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Sobre ser mestra de mim mesma

Faz muitos anos desde que comecei a me perguntar qual era o sentido de tudo isso; quem eu era; o que eu estava fazendo aqui e por que me sentia do jeito que me sentia. A grande resposta para tudo isso é que eu precisava me conhecer, preciso ainda, e devo continuar precisando até o último dia. A diferença, agora, é que sei como fazer isso.

Pulando dentro de mim mesma, bem no fundo, tão fundo que ainda não faço ideia de quão longe posso ir. Sabe, grandes dimensões, enormes espaços, largos caminhos, tudo dentro de você mesmo. Mais ainda: dentro de toda a nossa limitação física, todo um universo infinito e coberto por uma mantinha de plush, quentinha, em que a gente se agarra quando sente medo, que a gente usa pra cobrir os olhos quando não quer ver alguma coisa nossa, guardada no armário escuro em que guardamos tudo o que não conhecemos; e a gente não conhece é a gente mesmo.

É a gente que fica guardado nesse lugar. A gente se guarda da gente.

A gente não quer se ver de verdade. A gente se esconde pela necessidade criada de atender às expectativas que o mundo coloca sobre os nossos ombros, que vão afundando as nossas verdadeiras habilidades, o nosso verdadeiro ser.

Tô só começando, mas não estou com medo. Serei mestra de mim mesma, mas também o serei academicamente, porque contrariando toda a minha falta de confiança, passei no mestrado.

Se eu achava antes que o mestrado era só para alguns poucos iluminados, então, estou eu, também, no caminho de Buda.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Sobre andar de bicicleta

Estou indo para o trabalho de bicicleta, porque agora moro perto da universidade; menos de 1km. Vou porque, em mais ou menos metade do caminho, tem ciclovia e, na outra metade, eu ando pela calçada e atravesso poucas e curtas ruas. Vejam: não sou uma pessoa super confiante na bike. Eu não ando de bicicleta como se ela fosse um meio de transporte que pudesse me levar a qualquer lugar, não. Eu ando nela como um meio de transporte para o meu trabalho e distâncias similares, desde que não precise atravessar rodovias, subir elevados, andar por onde não haja calçadas... coisa simples e tudo isso por alguns motivos básicos: andar de bicicleta cansa, me faz suar, não tenho a melhor coordenação motora do mundo, nem o melhor preparo físico; além disso, tenho medo de ser atropelada; minha bicicleta não tem o freio direito e o esquerdo é ruim; os pneus estão carecas e não tenho um retrovisor... todos esses fatores me levam a andar bem na manha, mas eu juro que estou me planejando pra levar a bike pro conserto; só que como ele fica a uma distância superior a qual me sinto capaz de ir e passa por obstáculos que eu não me sinto segura para transpor, ainda não a levei, pois o farei de carro: vamos eu e ela no carro, em algum dia da semana que vem.

Agora, um pequeno balanço dessa nova rotina: antes, eu demorava uns 25 minutos pra chegar no trabalho porque tenho andado muito lenta ultimamente, e já chegava lá vermelha feito um camarão e fedida, suada, cansada, uó!

No primeiro dia de bicicleta, quando éramos ainda menos íntimas, eu subi nela e desembestei pedalando com os caralhos sei lá por quê; cheguei no trabalho em cinco minutos. C-I-N-C-O minutos! Foi muito rápido! Vento no rosto, fresquinho gostoso, mas as pernas já quase desistindo de pedalar, porque uma falta de preparo é uma falta de preparo! Deu uma canseira nas coxas e senti como se tivesse feito uma sessão de agachamento com a Gracyanne Barbosa, mas okay, foi gostoso, quase não molhei os sovacos de suor, então tava tudo certo. Fiquei bem felizinha!

No segundo ou terceiro dia, não lembro bem, voltando pra casa, tive que parar pra atravessar uma ruazinha dessas que eu disse antes que atravessava, mas então eu vi o carro, fui freando muitos metros antes porque a minha amiga não para em cima das coisas, ela vai parando, mas não para efetivamente, sabe?! Daí, além do carro, havia um pessoa pelo caminho e eu me embananei toda e, pra parar e desviar, acabei me segurando em um totem de metal que arrancou uma lasca do meu dedo, que começou a sangrar na hora. Nossa, doeu demais! Puta merda! Cheguei em casa com o dedo latejando e um pouquinho traumatizada. Não tava felizinha.

Com o passar dos dias, eu fui ganhando um pouco de confiança pra subir a rampinha que dá acesso ao prédio em que eu trabalho. Não é uma rampa reta, você precisa fazer uma curva bem fechada com a bicicleta pra subi-la. Na primeira vez, quando chegou na curva, eu desci da bike. Na segunda vez, eu dei uma virada no guidão e ela pareceu o suficiente para conseguir fazer a curva! U-huuu! Me achei a super profissional - a mesma que por anos só conseguia andar em linha reta. Na terceira vez, u-a-u, parecia que eu estava me aperfeiçoando no negócio! Impressionante! Parabéns, Karla!

Daí, na quarta, me fodi. Virei o guidão, só que de mais, a bicicleta caiu e eu caí por cima dela. Ralei o joelho, meti o guidão na coxa, que ficou instantaneamente roxa, bati o outro joelho, que ficou preto no outro dia, e mais uma vez, fiquei triste, tristinha, xinguei um monte e um carinha tirou a bicicleta do meio do caminho enquanto eu praguejava a bicicleta e a mim mesma. Essa foi a queda mais dolorida até agora - espero que não haja outras.

Agora a parte mais nojenta e asquerosa. Só de lembrar já começo a tremer toda, uix! Quando eu chego no estacionamento do prédio aqui da universidade, passo por um caminho com seixos e uns matinhos e talz. Venho eu, toda de boa, de sandália por causa do calor, pedalando lá lá lá, quando sinto uma coisa gelada no meu pé esquerdo. No primeiro momento, imaginei que fosse algum mato molhado que tivesse grudado no meu pé e, então, eu olho pro meu pé e realmente parecia, um mato comprido, seco, marrom escuro, grudado nele, mas eu não vi perfeitamente porque não tenho a habilidade de conseguir andar em linha reta olhando pra baixo, daí olhei de novo e vi que tava se mexendo ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, coisa mais nojenta!!!! Parei a bicicleta na hora e vi que era um verme, com uns 15 cm, brilhante, tipo uma sanguessuga magra e comprida grudada e se mexendo na porra do meu pééééé! Ah, caralho! Que nojo! Me tremia toda, gritava histericamente até que tirei aquele bicho de mim com o controle do portão, que eu segurava na hora. Foi  H-O-R-R-Í-V-E-L!!! Pior história de bicicleta ever!

Mas então, sobre andar de bicicleta, tenho a dizer que este último mês, no qual vivi todas essas experiências felizinhas e essa última traumática - fora cair em cima da bicicleta na garagem algumas vezes -, me fazem perceber que eu realmente odeio com todas as minhas forças ficar suada quando esse não é o objetivo da atividade, mas que a bike quase não me faz suar, além de servir como uma capa mágica que me impulsiona pra frente com velocidade fazendo o ar correr tão rápido quanto eu, me refrescando, me cansando, mas também me deixando feliz, melhorando a minha coordenação, meus reflexos, minha visão de rabo-de-olho e o aumentando o bronze nos meus braços.

Andar de bicicleta tem sido uma ótima experiência e me faz lembrar de quando eu era pequena e nem conseguia ficar em cima de uma sem cair. Não tinha qualquer equilíbrio... ainda bem que o tempo passa e junto com as quedas e os roxões vem a habilidade de conseguir se manter em cima, apesar das ruas para atravessar, apesar dos vermes que grudam nos nossos pés, ai ai.




quarta-feira, 13 de julho de 2016

Sobre viver pelas beiradas

Eu nunca pensei em suicídio; não a sério. Bom, talvez tenha pensado quando era adolescente, naquela ânsia de querer tudo; mas depois de adulta, não. É até engraçado, porque já me imaginei morrendo de diversas maneiras, mas nenhuma delas era por minha própria obra. E no que mais penso em todas essas situações de visualizar a morte é o momento exato da passagem: o fechar os olhos pra existência; isso me assusta muito!

O gosto que tenho pelos temas suicídio/morte é em virtude de tentar entendê-los; tentar compreender o que leva alguém a isso, mas nunca seria capaz de descobrir completamente e, na verdade, nem interessa. O que interessa a mim é que tenho muito, muitíssimo medo da morte e, eis a razão: não acredito em deus. Não acredito em céu, inferno, paraíso, purgatório, reencarnação e nem nada. Daí que, não acreditando em nada disso, acredito muito é que esta é a única vida que tenho, a única oportunidade que possuo de viver e de fazer qualquer coisa que eu queira e que eu não queira também. Gostaria de acreditar que quando morremos, a nossa consciência permanece, vai pra algum lugar, um outro plano, queria que eu fosse pra sempre, mas o máximo que consigo é pensar que vou me decompor e voltarei a fazer parte de um todo maior, vou estar espalhada pelo universo, e enquanto alguém lembrar de mim, estarei viva.

Sempre que eu estava mal, sempre que rolava alguma merda na minha vida, eu ficava tristíssima, mas não pensava que a solução fosse a morte. Eu sempre queria dormir (porque dormir sempre foi, e ainda é, a minha fuga) e acordar sem os meus problemas. Queria dormir e acordar me sentindo melhor, feliz, disposta, de boa. Eu queria dormir, só isso. Nunca quis morrer; eu queria ficar bem; só queria ser capaz de aproveitar a minha vida da melhor forma que eu acho possível. E olha, nem é algo de outro mundo, o que não quer dizer que seja fácil, mas são coisas que dependem exclusivamente de mim. Sabe aquela coisa de tarefa diária? A vida é uma porra de uma tarefa diária. Ela é safada!

Na minha vida perfeita, eu teria total controle das minhas emoções, seria equilibrada, serena, leria muitos livrinhos, faria meditação, estaria bem com todas as pessoas que me rodeiam e viajaria de vez em quando. É singelinho, né? Na minha vida perfeita, eu me conheceria profundamente e não deixaria que nada, nem ninguém - inclusive eu mesma -, me tirasse a sensatez.

Tem coisas que são muitos fáceis pra mim e muito difíceis pra você, e vice-versa. Okay. Sendo assim, a gente tem que SEMPRE estar exercitando as nossas debilidades, as nossas falhas. Em algum momento, se a gente tiver bastante paciência, a coisa depois de tanto pegar no tranco, pode virar automática, sabe? Eu não cheguei ainda nesse patamar...

Ninguém é totalmente fodido cem por cento do tempo. Eu gosto muito dos preceitos budistas. Acho que eles trazem a gente pro aqui e agora. Dão uma chacoalhada na gente. Não sou seguidora, mas deveria, de fato, levar à risca algumas coisas e uma delas, talvez a mais importante pra mim nesses tempos, seja a consciência da impermanência. A gente não dura pra sempre; nada dura pra sempre, e isso quer dizer que nem a nossa dor e o nosso sofrimento são eternos.

Viver é muito punk, mas também é muito bom, porque depois que uma dor qualquer passa ou diminui, na maioria das vezes é que a gente percebe que não deveria ter se afetado tanto com aquilo. É claro que há dores e dores, mas eu acredito muito que as coisas passam, mesmo que nos momentos de desespero a gente tenha a impressão de que aquilo vai ser pra sempre, não vai; nada é. Quando a gente termina com um namorado filho-da-puta, por exemplo? Na hora é aquele sofrimento, a dor, o fundo poço; depois que passa um tempo, a gente vê que rolou mesmo foi uma limpa na nossa vida! Claro que quando a gente perde alguém muito querido, a dor nunca vai embora, mas quem sabe não é o caso de mudar a perspectiva um pouco, e pensar que foi um privilégio poder conviver com aquela pessoa por x tempo? Claro, isso depois de curtir bem o luto, o que é muito importante. Botar pra fora mesmo, chorar, se descabelar, ficar com raiva, com culpa, com tudo o que tem direito, porque a morte é uma coisa doida que deixa a gente sem saber como agir mesmo.

Estou escrevendo isso aqui porque escrever o texto sobre o meu pai e sobre a minha própria depressão, fez com que eu recebesse diversas mensagens e eu vi, na verdade só comprovei o que eu já sabia, que é: todo mundo sofre, por mais que pareça que vivamos felizes o tempo todo no Facebook, todos nós sofremos perdas, temos ataques, nos frustramos, nos medicamos, nos sentimos sozinhos; todos temos problemas. Eu não julgo o meu pai pela escolha que ele fez, mas se eu soubesse, na época, da situação dele, eu teria feito todo o possível pra que ele pudesse enxergar que a vida vale a pena. Sinto muita falta dele aqui, hoje. Gostaria muito de tê-lo conhecido melhor, de poder ter dito a ele que eu o amava e que eu entendia a sua doença; mas eu nunca pude.

Esse buraco que a morte dele deixou em mim, é um buraco que eu não gostaria de deixar na vida da minha filha, porque eu sei o quanto de dúvidas e inseguranças isso poderia trazer a ela. Eu sei o quanto a morte por si só nos abala, mais ainda quando se trata de um suicídio. Pensando nela, eu procuro pensar mais em mim, e me tratar melhor, me cuidar, porque a única coisa que posso deixar a ela, além da educação e dos valores blá blá blá é que ela tenha em mente que viver é uma luta, que nem sempre a gente está bem, que a felicidade são realmente alguns momentos no meio de tantos outros, mas que nem por isso a gente deve desistir.

A questão é: se você tem um diagnóstico, busque ajuda médica, faça terapia, tome seus remédios, não desista do tratamento. Procure sempre alguém pra conversar, isso pode fazer uma diferença enorme. Se você tem um crença que te traz conforto e paz, agarre-se nela. Reze, medite, faça a sua parte. Quando a gente tá na merda, a cabeça fica confusa, cheia de cocô. Às vezes, a gente só precisa ser ouvido e ter a sensação de que a gente importa, de que a gente faz alguma diferença, e a gente faz.
Eu sempre digo que sou habitada por vários eus, recomendo a leitura de um texto que escrevi chamado Legião. Nele, dou voz a dois desses eus: o Torpe e o Razoável. O Torpe é aquele espírito-de-porco que não quer nada com nada; funciona na lei do menor esforço e tá sempre pronto pra me levar pro buraco. O Razoável é como o nome já diz; ele tenta me mostrar o lado certo e bom das coisas; me coloca pra cima e diz que eu sou capaz.

Nos momentos ruins, o Torpe tá sempre lá me avacalhando e berrando muito mais alto do que qualquer outra parte de mim. Minhas outras criaturas ficam quietinhas, de cabeça baixa, concordando com o que o escrotão diz. Quem fica mal com isso? Eu, Karla. Mas percebo também que quando meus lados mais racionais conseguem se impor, me sinto melhor, capaz, viva! É como se o Torpe tivesse saído pra comprar cigarros e não fosse voltar mais. É ótimo! Mas, é algo que eu preciso trabalhar todos os dias. Preciso continuamente regar a minha vontade, a minha força, a minha potência de existir.

No fim das contas, acho que dá certo. Compensa a gente sofrer, porque quando a gente é capaz de olhar o sofrimento de fora, a gente percebe que está vivendo de verdade, que está dando a cara a tapa; que está lutando pra viver. Não quero viver pelas beiradas da vida, quero me enfiar nela com tudo o que tenho direito. Quero ter a certeza de que quando a minha hora chegar, eu terei feito tudo o que pude pra fazê-la valer a pena.