segunda-feira, 10 de março de 2025

sobre a musculação

eu disse que tinha que fazer musculação, né? isso quereria dizer que eu precisaria frequentar uma academia. a questão é que eu era avessa a esse tipo de ambiente. eu abracei tanto a fase da autoaceitação que achava que movimentos que fizessem meu corpo mudar eram uma traição a todo esse trabalho. a academia era o lugar para os superficiais, para as pessoas que só se importavam com o espelho – eu sempre amei olhar para o meu reflexo –, e não percebia que o fato de as pessoas estarem tão ensimesmadas poderia ser um ponto favorável, uma vez que ninguém prestaria atenção em mim. o primeiro passo foi aceitar que eu precisaria educar meu corpo, a mente precisaria colocar o corpo pra trabalhar e isso era uma decisão consciente.

ocorre que a mente é safada e ela sempre acaba inventando desculpas para que qualquer atividade incômoda seja procrastinada, adiada, postergada. se eu me inscrevesse em uma academia na qual eu pudesse ir a qualquer hora, a hora em que eu fosse seria assim: num dia a contragosto, eu iria com cara de cu, faria os exercícios prescritos por quem estivesse lá e iria embora; depois de 24 horas o ácido lático começaria a agir no meu corpo e eu sentiria dores musculares que fariam parecer que eu fui atropelada por um patinete elétrico e eu nunca mais voltaria, apesar de já ter pago o mês inteiro.

para evitar esse tipo de situação, decidi por me inscrever em uma pequena academia que, de tão pequena, não permite que todos os seus inscritos a frequentem quando bem entendem; você vai no horário marcado, em que o professor vai atender você e mais quatro pessoas ao mesmo tempo. como eu não tinha dinheiro para pagar um personal trainer, essa me pareceu uma excelente opção. se eu não fosse no horário combinado, perderia aquele dia. a academia também oferecia pilates, que era algo que eu gostava de já ter feito antes. consegui agendar a musculação três dias por semana – segunda, quarta e sexta-feira – e um dia o pilates, às quintas. decidi começar dia sim, dia não na musculação, para que não tivesse o ímpeto de desistir de cara, caso me aloprasse com exercícios todos os dias, já que essa nunca havia sido a minha realidade.

no primeiro dia, conheci meu professor, que perguntou qual era o meu objetivo. ele anotou lá no caderno dele: ficar dura (gostosa) – já adianto que passado um ano, não fiquei dura, mas gostosa eu continuo. no primeiro dia, cheguei com cara de poucos amigos, meu habitual, e olhava pras pessoas que estavam lá com raiva, num misto de vocês são uns otários com o que que eu tô fazendo aqui?! minha mente vociferava críticas direcionadas a todos que estavam lá. logo eu, que não queria ser julgada por ninguém, tinha dentro da cabeça uma língua que chibatava qualquer um que passasse na minha frente e as pessoas só estavam ali, existindo. alguns tinham o desplante de parecerem estar se divertindo, conversando... como assim? como vocês podem estar aqui sem sofrer? sem achar esse o pior lugar do mundo para se estar? eu projetava naquelas pessoas a minha chateação por ter sido negligente com meu corpo por tanto tempo. não estava com raiva delas, estava era com raiva de mim, por ter demorado a perceber que meu corpo também precisava daquilo, de esforço.

eu queria entrar, fazer o que tinha de ser feito e sair. não ia lá pra fazer amizade, nem pra dar risadinhas, nem pra ficar de conversa, eu chegava pensando em ir embora. a primeira semana doeu; fisicamente. mas eu fui todos os dias. em casa, calçando os tênis, pensava em desistir, pensava que estava com o corpo dolorido, pensava que isso não ia dar em nada, que era uma grande perda de tempo; mas eu me mandava calar a boca e ia. logo percebi que, por mais dolorido que você esteja, quando o corpo começa a se aquecer, a dor passa e você faz os exercícios que precisa sem sentir nada. depois ela volta, e depois de mais uns dias, o corpo se acostuma e você para de sentir.

quando esse desconforto físico não é mais uma desculpa para você não querer ir para a academia, a mente vai tentar inventar outras. durante um bom tempo eu me senti sobrecarregada, como se estivesse fazendo muita coisa, como se cuidar e educar o meu corpo fosse algum tipo de punição que me impedia de aproveitar melhor meu tempo, sendo uma grande vagabunda. pensava puta que pariu, eu vou ter que fazer isso pra sempre?! é isso mesmo?! quando a gente percebe que o processo não termina nunca, a gente consegue parar de olhar pro futuro “resultado”. é dia a dia. é tentar manter o ritmo mesmo que ele saia do compasso às vezes.

tentando pensar assim, o resultado não é exatamente a bunda dura, o resultado passa a ser a constância. fui uma semana na academia e não senti diferença nenhuma no meu corpo. beleza, o que importa é que você foi uma semana. o corpo vai sentir a diferença quando você tiver ido muitos dias, semanas, meses... aí é que você vai notar alguma coisa. um grande estímulo é saber que eu fui. me sinto dona de mim mesma, mesmo sabendo que há tantas aqui dentro e que algumas delas não gostam nada disso. nunca me arrependo de ter ido. é sempre um alento, me dou uma estrelinha, penso parabéns, você poderia ter sido sedentária o dia inteiro, mas durante uma hora e pouquinho, você fez força, estimulou seu corpo a se mover, foi adulta e fez algo que não gosta, mas que faz bem. eu ainda não gostava de estar lá, mas eu escolhia estar lá. eu não queria ir, mas ia mesmo assim. do mesmo jeito que faço com o trabalho. não é segredo que não gosto de trabalhar, mas preciso do dinheiro que recebo por ele, então eu vou. eu não gostava de ir para a academia, mas já tinha entendido que, com quase 40 anos, a gente faz um monte de coisas que não gosta porque precisa.

durante sete meses eu fui para a academia quase todos os dias em que me propus a ir. faltei apenas duas ou três vezes. nesse ínterim, consegui deixar de ser tão defensiva em relação às pessoas que frequentavam aquele lugar. comecei a gostar de ver que conseguia levantar um pouquinho mais de peso do que na semana passada. comecei eu a esboçar sorrisos e a me sentir mais solta. depois de um tempo, eu já sabia os nomes de muitas daquelas pessoas, comecei a seguir algumas na rede social e conversava animadamente com o meu professor e não tão animadamente quando meus joelhos começaram a doer e eu precisei aliviar os exercícios que os envolviam.

dois meses depois que eu havia começado na academia, procurei por um médico vascular para ver minhas varizes, daí o homem olhou as minhas pernas e disse ah, você tem lipedema. eu fiquei indignada com ele. que porra de lipedema? todo mundo tem essa merda agora? a negação brotou das minhas coxas e panturrilhas na hora, mas depois o diagnóstico fez muito sentido. lipedema e síndrome de hipermobilidade são doenças correlacionadas. não quer dizer que só existam juntas, mas é comum que as duas coincidam. fez sentido pra mim. a região em que mais tenho flacidez no corpo é nos culotes e coxas. a pele é ultra-estirada. o acúmulo de gordura que tenho ali não é como celulite normal, assim como o acúmulo de gordura sobre os joelhos e na própria panturrilha. tenho essa merda em algum grau nos braços também.

foi frustrante saber disso no começo. fui vendo que por mais que eu fizesse força na academia, aquela gordura se mantinha ali, assim como tem se mantido. foi frustrante, mas foi também um belo ah que se foda, tô fazendo o que dá e é isso aí. não tive antes, não terei vergonha do meu corpo agora que sei o que é isso. ter começado a academia depois de fazer uma cirurgia plástica foi, por um lado, fácil, porque me sentia mais segura. aquela coisa de achar que só quem já é magro e sarado faz academia, sendo que eu não era nem magra e nem sarada, mas estava mais dentro do padrão do que jamais estivera em toda a minha vida.

ainda assim, tava eu lá, com o tônus de um flan de caramelo e cheia de “celulite”. que se foda, agora minha bunda é grande – antes ela era inexistente. e quando alguma colega fazia algum elogio ao meu corpo, eu falava logo que era plástica, porque assim me sentia menos falsa. eu contava a verdade de que o meu corpo, esse que eu carregava comigo, não era assim naturalmente; havia sido feito, comprado, cortado, retalhado, cicatrizado. sobrei eu, com a bunda grande, o peito pequeno, barriga amarrada, cheia de flacidez incorrigível, lipedema nos membros e sovaco cabeludo.

eu gosto de mostrar minhas pernas peludas, molengas e cheias buracos disformes nos shorts curtos que eu visto quando vou pra academia. eu gosto de mostrar meus sovacos cabeludos cada vez que levanto os braços por lá e por onde eu vou. hoje eu sou mais padrão do que jamais fui, pero no mucho. porque o padrão, aquele de influencer com filtro, ele não existe, mas existo eu, me achando linda e gostosa mesmo que eu cause desconforto nos outros, ou até repulsa porque, sei lá, tem gente que acha que mulher peluda é nojento, porque tem gente que acha que se você tem celulite, você deveria poupar os olhos alheios e só usar calças.

mas eu acho que é importante saber lidar com o incômodo que o outro pode causar na gente e com as diferenças. do mesmo jeito que eu cheguei à academia destilando julgamentos aos outros que só estavam ali, cuidando cada um da sua vida, acho que se alguém me olhava torto porque uso short curto e top em que meus sovacos peludos aparecem, já se acostumou e provavelmente não vai achar nada demais quando vir outras mulheres que tenham características semelhantes às minhas. mas eu sequer posso dizer que percebi alguém me olhando esquisito. eu entrei em um ambiente do qual não fazia parte e até considero que fui bem recebida. quem estava armada era eu.

naturalizar o que é diferente também é um processo. me exercitar era estranho para mim, não era nada natural, mas a constância tornou o que me era anormal, o padrão. virei minha própria norma, sigo a minha regra, criei meu próprio padrão, cujo estandarte sou eu mesma. eu me carrego para onde quero ir e caminho comigo mesma até chegar lá. sei nem onde vai dar o lá, mas sigo caminhando.

nesse decorrer de ano, meus joelhos começaram a me incomodar depois que eu tive a brilhante ideia de dar uma trotada de leve num domingo aí. no outro dia, meus joelhos pareciam inflamados, doloridos. doíam pra sentar, pra andar, pra agachar. de repente, me vi triste porque não conseguia mais fazer os exercícios a que tinha me acostumado. me senti retrocedendo, com medo de voltar a ficar parada. eu virei a pessoa que queria continuar se movimentando! olha só isso! daí fui em médico de joelho, fiz exame caro do inferno e parti pra fisioterapia lá na academia mesmo, o que era uma grande comodidade porque depois de uma sessão, eu já fazia a musculação.

nessa brincadeira aí descobri que meus joelhos sofriam porque os quadris são fracos. a bunda é mole porque esse raio não é uma coisa só, os bonitos dos músculos que formam as nádegas são três e parece que todos os três precisam ser trabalhados, pois vejam! tem que fortalecer a porra toda! dá-lhe fisioterapia pra ensinar a bunda como ela deve trabalhar. até instituímos que as últimas sessões seriam voltadas para me preparar pra correr. não porque tenho ambições maratonistas, mas porque gostaria de ser capaz de “correr” depois dos 40, depois de 21 anos sendo fumante, asmática e sedentária. cheguei a correr um quilômetro na esteira um dia. pode parecer pouco pra você, mas pra mim é uma enorme conquista.

apesar das dores, desde setembro do ano passado, consegui instituir a musculação de segunda a sexta-feira, mais a aula de pilates às quintas, sendo uma aluna muitíssimo aplicada e dando a chance de meu corpo mostrar o que ele é capaz de fazer. durante a tpm, suspeito que ele não possa muito, mas seguimos firmes, mesmo menstruada, mesmo com cólicas. mesmo quando chove ou quando o sol está causticante. para as duas situações, tenho usado meu maravilhoso guarda-chuva/sombrinha. em dias de muita chuva, a vadiagem fala mais alto e vou de carro; o ponto é que o clima – que poderia ser uma grande desculpa para eu não ir –, nunca foi um impeditivo.

frequentar uma academia me trouxe mais rotina, expandiu minha percepção de mim mesma e dos outros. cheguei lá na defensiva, tensa, mas permiti me enxergar com mais compaixão, e daí pude ser mais compassiva e até simpática com os demais. me sinto parte de uma pequena comunidade. conheci mulheres da minha idade e mais velhas do que eu com quem troco figurinhas e falo de amenidades. isso faz meu dia melhor. estar na academia me ajuda a desacelerar a cabeça, que é quase um mingau de tanto rolar o feed do instagram. eu não levo o telefone pra academia porque esse é o único momento em que consigo ficar longe dessa merda e pensar só em mim. levei alguns dias pra tentar ouvir música, mas achei que perco parte da experiência de estar ali, interagindo com as pessoas.

do mesmo jeito que interajo todos os dias com um senhor barbudo – se bem que ele tirou a barba recentemente –, dono do boteco que atende as casas funerárias pelas quais passo no meu trajeto a pé até a academia. uma manhã, ele me deu bom dia e eu respondi bom dia e, desde então, nos cumprimentamos sempre que o botequim está aberto. às vezes ele diz bom dia, meu anjo, e às vezes ele comenta do calor e da minha boa vontade de me exercitar. esse senhor, cujo nome não sei, também faz parte da minha rotina.

fazer o caminho para a academia todos os dias passando pelos fundos das casas funerárias e pela frente do cemitério me faz lembrar da morte, não que eu já não pensasse nela diariamente, mas um dia senti o cheiro de formol saindo de lá de dentro. um dia vi um carro chegando e um corpo sendo desembarcado. um dia vi um carregamento de caixões chegando. fazer o caminho da busca pela saúde, pela beleza, pela vida passando por detrás dali me faz pensar que uma hora serei eu.

e uma hora será, mas enquanto a hora não chega, dedico algum tempo do meu dia para a casa que me leva pra todos os lugares, conseguindo contemplar o trajeto entre lá e aqui. fazendo da academia um espaço de aprendizado para o corpo e para a cabeça também, de exercício, de aperfeiçoamento. é como se o bichinho não tivesse tido a oportunidade de ir à escola quando criança e não tivesse sido alfabetizado. aí ele aceita, perto dos 40 anos, que o movimento é a melhor forma de ele se comunicar, é a língua que ele entende, e ele pula direto pra academia!

no ano passado, me exercitei 195 dias, mais do que em toda a minha vida e este ano será ainda mais ativo. acho que peguei o jeito, agora é só continuar até que um dia seja o meu dia.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

sobre o caminho da mudança

 

no dia 16 de fevereiro, mais conhecido como amanhã tomando por base hoje, fará um ano que comecei a frequentar a academia. o lugar da maromba, do “treino”, de pessoas superficiais que só se importam com a aparência. odeio esse lugar! esse foi meu pensamento por uma vida toda. então, como posso ter ido parar lá? virei eu a pessoa superficial que só se importa com a aparência? vamos chegar lá, peraí.

eu fui a criança asmática. tive minha primeira crise com uns nove ou dez anos de idade. pensando agora nos fatores emocionais, talvez fizesse bastante sentido eu perder o ar naquela época e em outras em que eu tinha graves crises que me faziam parar no hospital para fazer umas nebulizações calibradas com berotec, que me deixavam tremilicante, mas com o peitinho respirando aliviado.

o ponto é que a asma foi um grande pretexto para que eu me afastasse de qualquer atividade que fizesse meu coração bater mais forte, que exigisse do meu fôlego, e eu parei de brincar de pega-pega, de queimada e de encenações em que eu era uma vítima do Jason Vorhees e corria em volta do prédio da escola tentando fugir dele, enquanto um amigo, o Robson, interpretava o monstro do filme de terror atrás de mim, querendo me matar. essas brincadeiras eram muito divertidas – juro!

daí, já não participava mais das aulas de educação física. na época, o mais comum era que fôssemos poupados de qualquer esforço, por isso eu era dispensada dessas atividades. o recomendado era natação, mas a modalidade era completamente fora de questão por razões financeiras. eu ficava no banco. gostava de não estar ali onde eu via os outros. pensando agora, não sei se não gostava de qualquer tipo de esporte porque achava que não podia praticá-lo ou por não praticar nada, não pude descobrir que gostava de algum deles... olhando hoje, em retrospecto, acho que não gosto de nenhum mesmo porque não gosto de competir. não gosto de disputas. não gosto de ganhar ou perder. gostava de estar fora.

nos períodos em que eu não fazia as aulas de educação física, arranjava outras coisas para fazer. gostava de ler romances espíritas. gostava de acreditar que eu já tinha vivido vidas diferentes da minha, e que só não me lembrava disso – a puberdade é um tempo bonito da vida da gente. na sexta série, época em que eu lia romances espíritas na escola de freiras em que estudei até setembro de 1996, terminei esse mesmo ano em outro estado, em outra escola, em um contexto completamente diverso. como era dispensada das aulas, eu atravessava a rua e ia para o cemitério que ficava ao lado do colégio. às vezes, passava tardes inteiras lá, passeando pelas lápides, bisbilhotando os mausoléus, lendo os nomes das pessoas nos jazigos – e sendo destemida e imbecil o suficiente para fazer brincadeiras do compasso sobre os túmulos com alguns colegas que se aventuravam comigo na empreitada.

já no ensino médio, eu não participava das aulas e passava a manhã toda transando com carinhas por quem eu era apaixonada, achando que eles me amariam se eu transasse com eles – a adolescência é um período difícil e doloroso de descobertas, das quais só nos damos conta chorando num divã muitos anos depois.

desenhado esse breve cenário, o fato é que cresci sedentária. achava meus genes meio estragados; a parte caçadora-coletora da minha pessoa parece que não havia se desenvolvido. eu não gostava de nenhuma atividade. não gostava de nenhum esporte. depois de adulta, já tinha tentado natação, caminhada, academia, yoga, zumba, jiu-jitsu, pilates e simplesmente odiava qualquer coisa que fizesse meu corpo doer. a academia era paga adiantado só pra que eu pudesse me sentir um lixo de pagar e não frequentar e me envergonhar por não ir e, ainda assim, não conseguir ter uma atitude diferente. yoga era legal, mas as pessoas no estúdio eram um tanto bitoladas e era caro. eu tinha medo de fazer alguns movimentos e me quebrar toda. fui desenvolvendo um receio de me mover. zumba foi só experimental; me senti ridícula demais para estar em uma humilhação pública. no jiu-jitsu não conseguia me imaginar usando aquelas roupas quentes e com cheiro de murrinha. o pilates era ótimo, mas também muito caro para apenas duas vezes por semana. andar de bicicleta sempre foi difícil porque eu mal conseguia me manter sobre ela sem cair. só fui aprender a andar mesmo depois de adulta e morro de medo de ser atropelada porque não me considero uma ciclista que consegue andar na rua em meio aos carros; só em ciclovia e olhe lá! não engrenava em nada por muito tempo. as caminhadas ainda eram mais frequentes, mas o sentimento, ao mesmo tempo que era bom, também era de perda de tempo, de derrota, de pra quê todo esse esforço?

me sentia uma massa amorfa e resignada em relação a atividades físicas. ah, não é pra mim essa merda toda. introjetei o modo aceitação e foi maravilhoso por uns bons anos. exercícios? não, sou contra. faz aí você, eu tô bem sem fazer nada. tô bem na minha posição favorita, a horizontal. na minha cabeça eu tava bem mesmo. achava que poderia viver assim pra sempre.

mas como tudo na vida, a atividade física não impacta simplesmente no aspecto de ser ativo ou não. impacta também no nosso corpo. e o meu corpo foi durante muitos anos reflexo também dessa falta de movimento, reflexo dessa indulgência desmedida. eu faço só o que tenho vontade. não tenho vontade de me mexer, fico aqui. eu como só o que tenho vontade. uma pizza inteira? claro que eu quero! eu mereço. a vida é uma merda, deixa eu me recompensar pelo dia difícil. eu vivi assim por muito tempo e aquilo funcionava pra mim. foi bom. a gente tem períodos e fases em que se cobra muito, em que se pune muito, outros em que se aceita como está, em que abraça a realidade do jeito que ela está se apresentando porque é o que dá pra fazer no momento.

e por mais que a gente pense que não muda, que não quer ou que não consegue; por mais que a gente se veja preso numa engrenagem de repetição, quando a gente consegue se olhar com o mínimo de distanciamento, consegue perceber pequenas mudanças na repetição; pequenos desconfortos. sabe quando você está calçando um tênis muito confortável, mas tem uma pedrinha muito inha na palmilha, em contato com seu pé? ela é ridiculamente diminuta e ainda assim, ela deixa seu andar incômodo. a gente vai andando meio chacoalhando o pé pra ver se ela se acomoda em algum canto que não perturbe e às vezes ela até se move, mas daí vai parar lá na ponta do dedinho, puta que pariu! em algum momento a gente tem que tirar o tênis. a inquietação é tão grande que você tem que tirar a porra do tênis!

depois de fases desconfortáveis com meu corpo, vivi momentos de muito amor e aceitação comigo mesma, me sentindo gostosa e linda como eu estava no momento. até estava satisfeita, feliz do modo que estava. mas isso era a minha cabeça em relação ao meu corpo, só que o corpo, aquele que é parte de mim, mas não sou eu toda, assim como a minha mente, estava bastante descontente com a minha postura com ele. o bichinho estava somatizando as coisas que estavam resolvidas na minha cabeça, sendo que ele não foi consultado sobre nada disso. tava ali, no modo máquina que faz o que a cabeça manda e quer. acontece que ele mandava sinais para mim, sinais que eu não relacionava uns com os outros.

achei que era só meu jeitinho vagabunda de ser. achava que era só porque eu era uma vadia que não gostava de se mexer. um dia, li alguém falando sobre frouxidão ligamentar e pensei: tenho esse negócio! quando fui pesquisar a respeito, parecia fazer bastante sentido. marquei uma consulta com uma fisioterapeuta especializada e com um reumatologista. fiz exames que descartassem qualquer doença autoimune e tive o diagnóstico de síndrome de hipermobilidade articular generalizada. a princípio pode parecer qualquer coisa como ah, você é bastante flexível, que legal! mas não é nada legal. tem pessoas que só são flexíveis mesmo, mas eu tenho facilidade pra me luxar, deslocar. as articulações são muito móveis, daí que meus joelhos, por exemplo, têm condropatia grau 3 porque vivem em hiperextensão. meu colágeno não é bem sintetizado e isso se reflete em todo o meu corpo, uma vez que o colágeno está na superfície de todos os nossos órgãos e não só na pele.

pessoas com hipermobilidade podem ter resistência à atividade física porque o esforço que o nosso corpo faz é maior do que um corpo que não tem essa merda. e isso corrobora a minha tendência de anos de não fazer nada para além de ser uma vagabunda simplesmente. a gente sente muito cansaço, quase uma fadiga crônica, dores nas articulações, além de sentir tonturas quando a gente faz movimentos muito bruscos, especialmente se levantando rápido. a pele é elástica, mas é também flácida. é uma grande bosta ter isso resumindo.

a fisioterapeuta disse que apesar de tudo, meu problema era muito mais no âmbito do desconforto do que da gravidade; se meu caso fosse grave, eu teria a síndrome de Ehlers Danlos, que é uma parada muito mais tensa, envolvendo até mesmo a paralisia de órgãos internos dada a severidade da condição, que se divide em vários subtipos. mas foi o que ela me disse depois que me moveu em todos os aspectos da minha vida: essa síndrome não tem cura, mas a “cura” dela está no movimento.

e eu descobri isso beirando os quarenta. pensando: tô precisando cuidar melhor da minha casa. tô aqui, cheia de dor, sedentária, comendo feito um animal enjaulado, me sentindo cada vez mais cansada, indisposta. como eu vou estar daqui a dez anos nesse ritmo? pela caralhonésima vez, decidi tentar me mexer, mas não como uma obrigação, como um gesto de carinho comigo mesma, como uma garantia de que o movimento faria eu me sentir melhor. e eu recomecei. fazia exercícios em casa, assistindo vídeos no YouTube e pensando em como eu me sentia descondicionada, fraca, dolorida, encurtada. depois, comecei a pagar uma plataforma de exercícios em casa que tinha uma grande variedade de atividades e cada dia eu inventava de fazer algum. não conseguia acompanhar tudo, não tinha fôlego; meus joelhos gritavam. eu parava, ficava uns dias sem fazer ou fazia outra coisa que não exigisse tanto deles.

a parte boa disso tudo é que eu me namorava. fazia os exercícios na frente de espelhos e, com a mesma voracidade que eu me recriminava em frente a eles, tirava fotos, fazia vídeos e me desejava. me amava e me odiava com a mesma violência. ficava eu ali, de caso comigo mesma, me fazendo promessas e me xingando quando as descumpria. foi um período intenso em que me permiti saber que eu conseguiria fazer o que quisesse, dentro dos meus limites, que fui descobrindo aos poucos.

depois que aceitei o movimento como um passo fundamental para a melhoria dos meus sintomas, retomei o desejo de modificar meu corpo e isso foi um tabu para mim mesma durante a fase de aceitação em que estive. veja, eu era obesa. veja, eu me sentia bem na minha pele. eu já escrevi sobre isso aqui sobre o corpo , porque esse texto é sempre uma oportunidade de eu me mostrar pelada porque eu me acho bonita. me achava naquela época e continuo me achando agora. eu não sentia vergonha do meu corpo porque nunca achei que tivesse uma razão pra me envergonhar dele e eu estava óquei com isso.

acontece que quando eu vi que me mexer estava, mesmo que muito lentamente, começando a mudar as minhas formas, eu pensei que poderia finalmente fazer uma cirurgia plástica. “A” cirurgia. a “minha” cirurgia. a cirurgia que eu pensava em fazer desde o dia em que, grávida, apareceu a primeira estria na minha barriga. falei sobre isso nos textos sobre parir, nascer e morrer para nascer de novo e em sobre o leite, o peito e a barriga também. minha filha tinha quase vinte anos e esse foi o tempo pelo qual pensei em fazer uma cirurgia plástica. cheguei a marcar a data uns 14 anos atrás, mas desisti porque a vida me chamou e era urgente. daí meio que larguei a ideia; adormeceu a vontade dentro de mim, soterrada por questionamentos: e se eu quiser mais filhos? – a melhor decisão foi de não ter mais nenhum –, e se eu morrer? é claro que uma gracinha dessas de fazer cirurgia por vaidade pode resultar em morte. certamente eu morreria ou, no mínimo, ficaria sequelada pela escolha estúpida de querer ser quem eu não era. e se ficar uma merda? e se eu não gostar? e se a cicatriz ficar feia? e se?

e se eu permanecesse exatamente do jeito que estava porque já era familiarizada com ele e só aceitasse que era isso mesmo? bom, foi assim durante um tempo, mas daí eu percebi que era possível mudar e que a agente de mudança era eu mesma! a sedentária imutável! não é que essa árvore de raízes bem fincadas no chão começou a se mover pelos recônditos da terra fofa sem que a superfície se apercebesse disso?

mas aconteceu comigo. eu tava lá! juro que foi assim que se deu! eu entendi que conseguia mudar e, então, eu quis ser capaz de mudar um pouco mais. claro que a velocidade da minha mudança era como eu, meio marcha lenta, mas resolvi procurar um médico que não só fazia a cirurgia, como usava um tipo de equipamento que era uma tecnologia muito eficiente para a retração de pele e eu pensei: bom, minha pele é toda cagada, já sei que, se fizer, o resultado não vai ser lá grandes coisas, mas se é o que tem de mais moderno, quero tentar, alguma melhoria há de haver.

e lá fui eu. ele ouviu minhas demandas e disse: aham, a gente consegue melhorar bastante as tuas formas, mas pra fazer a cirurgia você precisa emagrecer 15 quilos. eu olhava pra cara dele e pensava: mas que audácia desse filho da puta! emagrecer 15 quilos pra me operar? pra quê? não é sustentável, vou engordar tudo de novo depois. isso é ridículo! nunca mais volto nesse lugar! enquanto eu praguejava ele mentalmente e mostrava os dentes meio rindo, meio rosnando, ele me dizia que eu precisaria fazer duas cirurgias em vez de uma só. isso por questões de tempo de anestesia, segurança, bem como essa coisa de emagrecer seria mais uma garantia para evitar qualquer tipo de intercorrência nos procedimentos. hahahaah. esse cara quer eu emagreça 15 quilos e ainda não vai me operar de uma vez só?! que palhaçada!

e ele continuou. disse que se eu quisesse, poderia fazer um acompanhamento nutricional e com uma endocrinologista da clínica para chegar no peso que ele achava seguro para mim. logo eu, que já tinha me emboletado com remédios para emagrecer, feito a dieta dos pontos, da sopa, da lua, da casa do caralho e que já tinha recebido vários planos alimentares de várias nutricionistas e nunca seguido nenhum?! ele sugeriu que eu fizesse esse acompanhamento.

em anos anteriores, quando sazonalmente despertava em mim a vontade de mudar, eu já havia ido a outros médicos e os valores das cirurgias só iam aumentando. quando fui a esse médico, o valor dessa mudança era ainda maior do que os anteriores. muita grana mesmo, mas eu senti nele uma confiança que não senti com outros. eu tinha como arcar com os custos e fui chamada de doida porque eu poderia gastar esse dinheiro fazendo viagens. acontece que nessa altura, eu já estava decidida, mas ainda não sabia disso. eu poderia ir pra China, e seria legal, mas meu corpo, que está comigo o tempo todo, ainda estaria do mesmo jeito e eu não queria mais ele do jeito que estava. eu queria que ele mudasse. eu poderia fazê-lo mudar sozinha, mas essa mudança só iria até a parte em que a minha barriga murcharia e a pele ficaria pendurada, bem como os meus peitos, que já eram murchos e caídos. eu gostava deles assim, mas queria saber como eles poderiam ser se fossem diferentes.

eu fui feliz com o corpo como estava antes, mas agora não era mais e queria ele diferente. eu entendi que eu fiquei na mesma posição por muito tempo porque eu quis, porque eu precisei, até que eu não quis mais e precisei fazer diferente. achei que querer mudar me tornava uma mulher superficial. como se me preocupar com a minha aparência desvalorizasse tudo em que acredito. mas daí fiquei quieta. aceitei a proposta do médico, aceitei o plano que a nutricionista passou – e que foi diferente de tudo o que eu já tinha feito antes – e só fui indo.

em seis meses, consegui dar prioridade pra alimentação, que era o que me fazia emagrecer de verdade naquele momento. eu me machuquei nas atividades em casa e acabei fazendo fisioterapia pra tentar deixar os joelhos melhores. emagrecer foi um processo muito bacana pra mim. de me sentir no controle, de saber dosar as coisas, de adotar um café da manhã que mantenho há quase dois anos com grande prazer. eu como frutas todos os dias hoje. e eu nunca fui de comer frutas, só com leite condensado, só com algo por cima pra camuflar os sabores. eu era uma cretina! eu era infantil no que se refere à alimentação e não me refiro a paladar infantil porque sei que existem pessoas que sofrem muito com essa questão de seletividade, mas era infantil no sentido de que não me oportunizava novos sabores, queria me manter engessada e agindo como uma criança que só quer prazer e satisfação e toma todo o resto como um grande sacrifício.

eu entendi que se mover, em todos os aspectos, acarreta desconfortos e a gente precisa aprender a lidar com os desconfortos porque viver é desconfortável e não dá pra achar que é possível viver só como a gente quer e acha que é gostoso. viver é uma merda e eu sequer pedi pra chegar aqui, mas já que aqui estamos, vamos rolar a pedra morro acima, cada dia um pouco melhor, vamos?

em seis meses eu emagreci 13 quilos. quando eu emagreci nove quilos, eu voltei a caber em um vestido que não usava havia mais de dez anos. eu me senti tão incrivelmente feliz! me senti feliz porque me senti capaz, porque eu tinha conseguido mudar! porque eu não era a porra do código de Hamurabi, talhado em pedra. eu podia mudar e eu queria mudar e eu tava me esforçando pra mudar e eu tava vendo que era tangível.

também me senti frustrada em alguns momentos em que empaquei na perda de peso, porque eu queria continuar mudando, mas o corpo também vai brecando a gente. hei, calma lá, gatinha, que a gente já mudou muito. segura o tcham aí. ele também tem o tempo dele. fato é que eu consegui fazer as duas cirurgias sem morrer – vide este texto escrito por mim mesma viva –, mas as recuperações foram bem escrotas pra mim. senti muitas dores e passado pouco mais de um ano das duas, não sinto que meu corpo é como antes – porque, afinal de contas, não é mesmo –, mas me refiro às sensações do corpo, sabe? partes dele estão dormentes ainda, formigando ainda. sinto minha barriga amarrada, ainda me sinto limitada nos meus movimentos e tive todo um trabalho para me re-conhecer e aceitar novamente quem me tornei por enquanto.

eu quis muito mudar; e mudar, e ainda assim, continuar sendo a mesma pessoa dá trabalho, mas é bom porque quer dizer que eu, como unidade de pessoa, continuo aqui, ocupando o mesmo espaço no mundo, com a diferença que agora, minha mente e meu corpo já não são como antes. dá pra entender? somos e não somos os mesmos. tudo junto e ao mesmo tempo.

bom, depois de todo esse preâmbulo, fevereiro do ano passado, meu médico me liberou para me exercitar. pensei agora é a hora da verdade. preciso encarar a academia. emagreci, me reformei toda, agora tenho que garantir os músculos. tenho que ser capaz de limpar minha bunda na velhice. tenho que estar apta e a cair e não quebrar a bacia e daí ficar acamada. tenho que conseguir amarrar meus sapatos, carregar sacolas, ser uma velha independente e autônoma. tenho que fazer m-u-s-c-u-l-ação!

(continua...)

sábado, 18 de janeiro de 2025

sobre por que as pessoas ficam juntas

por que as pessoas ficam juntas, te perguntei ontem quando você chegou aqui. as pessoas ficam juntas porque escolhem ficar. você trouxe um drinque que eu gosto, enquanto tomava uma cerveja. a noite estava quente e eu brindei mentalmente a ela quando batemos nossas bebidas uma contra a outra. tomei um gole e mexi a carne que selava na frigideira. as pessoas ficam juntas enquanto uma que não come carne olha a outra preparando a carne que vai comer. você brinca dizendo que parecem camarões, mas estou fazendo carne de porco. 

as pessoas ficam juntas quando perguntam uma para a outra como passou o dia, como está a cidade depois de uma inundação. daí a gente fala de política, fala dos bichos de casa, fala dos outros e fala da gente. daí você me diz que tem fome e pergunta se já jantei, se vou comer o que estou preparando; digo que não, que o que estou preparando é para juntar às marmitas já congeladas da semana. você me pergunta brincando se pode pedir um burrito por delivery e eu respondo, brincando, que não.

as pessoas ficam juntas porque enquanto você pede a comida, eu me refresco na pia lavando a louça da noite anterior. continuamos conversando e eu reclamo do calor. as pessoas ficam juntas porque quando chegam os burritos, enquanto eu como sentada no banco, você come de pé, do meu lado e mais rápido do que eu.

as pessoas ficam juntas porque por mais que a recomendação médica seja de se movimentar minimamente depois de uma refeição, o que a gente sempre faz é ficar na horizontal. quando as pessoas que ficam juntas somos nós, é o que fazemos. comemos e deitamos.

as pessoas ficam juntas porque em noites muito quentes de verão, ligo dois ventiladores no quarto e levanto a camiseta sem calcinha pra que a virilha pare de suar. você deita do meu lado e elogia a cor dos meus pentelhos que, à meia luz do quarto, parecem estar mais escuros, parecem cor acaju, você diz enquanto ri. daí rio eu dizendo que estão grisalhos. te abraço, passo a mão nas tuas costas e devagar, com a unha do dedo médio direito, tiro um cravinho safado e fácil. deslizando melhor a mão, sinto que há mais e peço que fiques de bruços.

as pessoas ficam juntas porque subo nas tuas costas, puxo a luminária em direção a elas e começo a inspecionar os poros dilatados e as espremê-los, enquanto te pergunto se tá doendo e você diz que não. a experiência é boa, mas dura pouco, porque tuas costas são muito mais macias do que têm cravos a serem tirados. 

as pessoas ficam juntas porque tu me dizes que, se tenho calor, tenho que tirar a camiseta e não só levantá-la. eu tiro, me levanto, fecho a janela, tranco a porta de entrada, apago a luz da cozinha, volto e me deito novamente. tu levantas e tiras toda a roupa que vestias. deita do meu lado pelado e gracejante. nossos pés namoram se roçando demoradamente.

as pessoas ficam juntas porque depois de nos comportarmos como dois primatas que conversam, comem, catam piolhos um do outro, fazem uma macaquice num momento e jogam um encanto em outro, a gente se come e se come até cansar. depois se lava, se beija e dorme.

as pessoas ficam juntas porque quando dormem juntas elas correm alguns riscos. quando é você junto comigo, o risco é de acordar no meio da noite com um som que pode ser um ronco, um peido ou uma risada. eu acordo assustada com meu próprio ronco, com meu próprio peido, e mais recentemente, com a minha própria risada que reverberou pra fora de um sonho engraçado que tive, mas do qual não me lembro.  

as pessoas ficam juntas porque a manhã seguinte se mostra pela claridade na janela do banheiro que entra no quarto escuro. o teu despertador toca, mas o meu - a Cora, no dia de hoje - já está tocando há mais tempo, miando na porta. eu me levanto, dou comida a todos eles e volto pra cama. tu me olhas, me namora, depois coloca a cabeça no meu peito e diz: teu coração tá batendo; eu respondo: ainda bem.

sábado, 5 de outubro de 2024

sobre perder contornos

no meio do tanto de alienação em que me enfio, na mesma medida que sinto, me entorpeço com o irrelevante. acontece que ainda assim, sinto bastante. talvez fuja do sentir correndo pra rolar os dedos na tela, mas as sessões de análise não me deixam mentir que sinto e choro até pelo bem-estar da tartaruga. sinto porque acho que não lhe dei a melhor vida, a melhor escolha, o melhor espaço e me sinto um deus tirânico por determinar como ela deve viver sem ter certeza absoluta nem do que é mais adequado pra mim mesma. sinto porque o mundo é injusto e comandado por poucos filhos da puta que tomam as decisões mais cruéis e sinto porque parece que a tendência é sempre piorar. sinto e vou dando meu jeito de sentir de outro jeito, de sentir de leve, de sentir distraída, de sentir meio tentando deixar pra lá.

já tem tanto acontecendo e ainda vou sentir a dor alheia? sim, porque sentimento a gente não racionaliza, a gente sente. quando fiquei sabendo da notícia, um pouquinho do chão da cozinha se abriu porque é assim que acontece quando é com a gente, só que o buraco é bem grande e a gente cai inteira dentro dele. o chão da minha cozinha abriu só um pouquinho e eu pude me ver lá dentro, quando tinha 16 anos e recebi essa notícia pra mim. mas na terça-feira a notícia não era pra mim, eu era só uma espectadora da dor alheia, mas uma espectadora familiar (a minha notícia veio em uma segunda-feira).

me dói porque eu pensei primeiro nela, que ficou, porque eu também fiquei quando ele decidiu ir embora. nossos pais fazem escolhas difíceis todos os dias porque ser pai/mãe é por muito tempo decidir pelos filhos, para o bem e para o mal, e mesmo que a escolha seja deles para eles, ah, eles não se lembraram de que a morte escolhida sempre recai sobre quem fica como se o corpo suicidado caísse sobre as nossas cabeças e respingasse seus pedaços em tudo à sua volta? eu senti primeiro por ela porque eu já fui ela, porque eu poderia ser a mãe dela e porque ela poderia ser a minha filha. eu senti primeiro por ela porque ela ficou, porque é ela quem tem que lidar com a vida adiante sem contorno. por um tempo a gente fica sem contorno.

quando a gente tem a certeza de que eles ainda são carne viva, essa certeza gera um contorno invisível em volta de nós. a gente sabe um pouco quem é porque eles estão por aí no mundo. quando a perda se dá, seja da forma que for, esse contorno some por um tempo. é como andar descoberto por aí quando todos os dias são de ventania e você está pelada pela rua. quando a gente tem acolhimento, se sente um pouco coberta, contornada, quentinha. mas logo que a gente se percebe sozinha de novo, vê que está sem contorno. é como ter o abismo na ponta dos pés o tempo todo. é como a sensação de frio na boca do estômago quando você percebe que nunca mais vai ver aquela pessoa. é como um peso no coração que faz ele bater devagar de tanta dor e de tristeza por tudo o que não foi dito e nem nunca será.

a gente perde a fina película da segurança de que há alguém no mundo por nós, e até houve e até há outras pessoas, mas essa borda nunca mais será como antes. a dor faz com que nossos novos contornos se deem na gente mesmo, na altura da pele; me rasgam, me remendo de mim mesma e me bordo diferente. margeio um bordado estranho pra enfeitar minha cicatriz. crio uma nova fibra, por cima do que havia antes, por cima do vazio que é preenchido com o estofo de tudo o que sinto.

o vazio é fugidio e fica entre mim e o contorno, como a fáscia que recobre tudo por dentro dos nossos tecidos. sou preenchida pelo vazio. sou esvaziada pela perda. leva tempo e não vai passar; a gente só aprende a lidar com a dor e se distrai dela lavando a louça e sentindo a dor dos outros de vez em quando.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

sobre o eterno retorno

 

Na quarta-feira volto ao trabalho. Eu não gosto de trabalhar; nunca gostei de fato. Em princípio, achei que trabalhar era algo que me dava propósito, porque era o que eu ouvia as pessoas dizerem. Mas que raio de propósito é esse? Não tenho interesse em ser reconhecida pelo trabalho que exerço; tenho interesse apenas em fazê-lo direito e receber pelo que executo. Meu trabalho é só meu meio de vida e ponto.

No meu mundo ideal, as pessoas todas seriam obrigadas a trabalhar, mas só um pouquinho, de maneira que se todos trabalhassem em prol do necessário para o bem-estar coletivo, haveria tempo de sobra para “trabalhar” com o que nos dá prazer, com o que nos move, com o que cria sentido de existência plena e de felicidade.

Bem, isso lá no mundo que não existe. Neste aqui, no sistema capetalista, sim, é do cão mesmo, nele eu tenho um emprego que me garante uma vida digna e tenho que ser grata por isso porque milhões de pessoas não têm a mesma “oportunidade”. Não quero discutir direitos básicos que não são respeitados na engrenagem que mói gente diariamente. Quero só falar de mim, pra variar.

Nos idos de 2013, eu escrevi aqui sobre abandonar o facebook. Aquela merda tinha me viciado e eu decidi sair de lá. Ocorre que como boa e desavisada adicta, um vício não se extingue, ele é apenas substituído por outro e, vejamos, o instagram é uma merda ainda mais malcheirosa. Cá estamos desde sei lá quando, acabando com qualquer vestígio de ação consciente que eu possa protagonizar em minha vida.

Sempre que entro no instagram, meu dia é consumido por gatinhos lindos (a quem eu amo muito), e isso não seria um problema, se o feed não fosse infinito e eu não fosse acossada por milhares de propagandas de coisas que não preciso (mas que ainda assim acabo comprando), com um toque de notícias desgraçadas de todas as atrocidades que acontecem a todo momento no mundo inteiro e às quais acabo ficando dessensibilizada, já que as vejo com tanta frequência quanto assisto aos vídeos engraçadinhos de cachorros sendo mimados seus donos.

Veja, não é que eu não sinta, talvez o problema seja sentir e não ter tempo de elaborar o que vejo e como eu sinto. Sempre vem algo depois, algo que me joga pra cima e que depois me faz sentir vontade de morrer. Algo que me faz sentir fome e algo que me faz sentir uma fodida na vida. Algo que me faz querer ser melhor e algo que me faz querer comprar, ter, acumular. Algo que me faz acreditar com todas as forças que a raça humana é a escória do mundo e algo que me faz ter alguma fé nessa merda toda.

É dopamina, cortisol, palpitação e angústia. É busca, falta, desejo e tédio. Essa porra toda misturada o tempo todo. Isso não é viver; assim como trabalhar não deveria ser o sentido da vida. Tá todo mundo vendendo alguma coisa aqui nessa merda, vendendo desejo e promessa. Decidi que vou vender também. Vou criar meu conteúdo para além do que crio uma vez por dia (em média) no vaso sanitário.

Eu vou desinstalar o instagram do meu telefone. Só o acessarei pelo computador. Isso já é uma redução de danos para o meu problema. Eu criei dois perfis em sites de conteúdo adulto: onlyfansprivacy, mas deixa eu explicar e esclarecer: não, o tipo de “conteúdo” que eu vou postar lá não é exatamente o que se poderia esperar. Não vou postar fotos ou vídeos explícitos, pelo menos não explícitos da forma que a pornografia nos acostumou a consumir.

O que eu postar lá será experimental (para mim). Não tenho interesse em saber o que você espera, nem o que você acha. Vou fazer isso por autoafirmação, por curiosidade, e porque quero ver se consigo ganhar uns quinze pila pra comprar um picolé. Se não me render nem isso, faço de conta que nunca aconteceu.

É isso, virei produto. Só gostaria de lembrar que medíocre é o papel no qual me sinto melhor. Nem muito, nem pouco; na medida do ordinário. Não quero me esforçar demais porque me canso rapidamente e o esforço de estar viva já me enche a porra do saco.

O único esforço que quero fazer, porque a angústia está me obrigando ao movimento, é escrever. Escrever e mostrar uma fuleragem de respeito para quem quiser pagar pra ver. Nas duas plataformas, o conteúdo será igual. Quero descobrir qual será a mais legal pra mim, se é que alguma será.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

sobre produzir conteúdos

enquanto cago, escrevo. espera, deixa eu reformular: enquanto escrevo, produzo um conteúdo. "produzir conteúdo" foi como comecei a me referir às minhas idas ao banheiro. meu pai trabalhava em um escritório cheio de pessoas e quando eu ligava pra lá e pedia pra falar com ele, às vezes me respondiam: "seu Cacai tá fazendo um pacote, não pode atender"; isso era a maneira burocrática de dizerem que ele estava cagando. o banheiro era um brinco. a época era da naftalina pelos cantos das paredes e o papel higiênico era aquele cor-de-rosa, que não só limpava, como esfoliava o cu. ele fazia pacotes; eu produzo conteúdos. 

não é isso o que a internet entrega hoje? as pessoas produzem "conteúdos". basicamente, qualquer merda pode ser considerada um conteúdo, então estou produzindo o meu enquanto, literalmente, faço merda.

um breve resumo: fiquei mais de um mês sem o instagram, mas bastou eu voltar praquela bosta que já voltei a ficar completamente alienada da vida. fico vidrada no telefone. meu punho direito estala e dói; acho que está inflamado, meu cotovelo direito também. essa porra de telefone está acabando até com meus ossos. quase não consigo evitar o tanto de tempo que perco segurando o telefone enquanto deixo de viver as singelezas da vida.

sabe aquelas coisinhas bobas como lavar roupa, passar pano, ser escrava das tarefas domésticas como qualquer adulto funcional deveria? sabe aquela coisa de ler um livro e dormir cedo? pois é, eu também não sei. li dois livros enquanto me mantive afastada. me sentia menos agitada. minha cozinha está virada de cabeça pra baixo, mas pelo menos me alimentei direito hoje. falta eu dar a sopa dos gatos. sim, é quase uma sopa; no começo, eles achavam aguada, mas hoje bebem toda a água que eu misturo com o sachê e o sachê em si fica lá nos potes, porque os buchinhos ficam cheios de água. chaninhos todos muito hidratados. a vagabunda da Francisco já está tão acostumada que faz o terrorismo diário com o papel higiênico como uma forma de chamar minha atenção, mas perá lá, porra! tô cagando!

tô contando minha divertidíssima rotina pra quem não me perguntou nada! 

abre-se um parêntese porque enquanto eu escrevia tudo isso aí em cima, diga-se de passagem lá pelas 20h30, vi que meu analista havia me mandado um áudio; estranhei, ouvi. ele dizia que a gatinha dele estava doente e precisando de uma transfusão de sangue. perguntou se eu conhecia alguém que tinha um gato com as especificações necessárias para a doação, ou se um dos meus gatos poderia ser o doador. eu logo pensei na Francisco. idade boa, peso dentro do requerido, saudável etc.; onde vocês estão? na clínica x. beleza, estamos indo.

jamais poderia me negar. a Marta já foi salva por uma transfusão de sangue. quem é mãe de pet sabe que a gente faz de tudo por esses arrombadinhos. lá fomos nós duas. Francisco e eu; ela embrulhada numa manta, no meu colo dentro do carro enquanto eu dirigia. a bichinha não deu um pio; não fez uma menção de rebeldia. parecia que sabia que estava em missão especial.

chegamos lá e a veterinária disse que ela precisaria ser sedada para a coleta de sangue; aí o coração de mãe se apertou porque ela já tinha tido uma reação alérgica à anestesia quando foi para a castração. apesar de umas picadas para exames preliminares, achamos melhor que ela não passasse por isso. pensei imediatamente no Presto; gato grande, forte, saudável e que já foi doador antes. ligo pra mãe nova dele; ela liga pro ex-marido que tá na Grécia? Cracóvia? Turcomenistão? tá por aí turistando antes que o mundo acabe; o ex-marido me liga com voz de madrugada pra saber exatamente do que se trata, pede que não tirem muito sangue do filhinho dele, permite a boa ação. todo esse movimento em sei lá, dez minutos, e logo eu tô voltando pra casa com a Chico tão comportada quanto na ida, mas agora com as almofadinhas das patas molhadas de nervoso. despacho a gatinha em casa, jogo uns petiscos no chão e ela rapidamente se esquece do perrengue pelo qual acabara de passar.

mando mensagem pra nova mãe; aviso que estou chegando. subo. cria-se uma pequena situação para colocarmos o gatão dentro da caixinha de transporte; ele não é nada otário e não quer entrar de jeito nenhum. entrou de ré até fácil, depois de umas tentativas frustradas de outras maneiras. gritou o caminho todo, imagino que me xingando ou pensando o que tinha feito para merecer ser arrancado de casa já tarde. eu explicava que ele estava indo ajudar uma amiguinha, que era um herói e esse papo que não funciona nem com criança pequena, imagina então com gato? a gente humaniza os bichos porque admitir que eles não nos entendem é muito frustrante pro nosso ego.

chegamos! logo a veterinária leva o chano lá pra dentro pra fazer os primeiros exames; daí vem lá do consultório pedindo ajuda para segurar a jaguatirica. éramos três mulheres segurando uma bola de pelo de seis quilos e pouco que parecia ter a força de, ai, nem sei qual bicho usar. acho que jaguatirica já tá de bom tamanho. fosse uma onça tinha acabado com a nossa raça rapidinho. 

resumindo a história porque meus suvacos estão chorando e preciso tomar banho (tudo isso aconteceu ontem; hoje já é hoje, dia dos namorados e eu quero me embonecar pra ficar fedendo a tempero frito com o jantar pro date que ainda vou começar a fazer): Presto foi o herói do dia. ficou lá, doou seu precioso sanguinho, ajudou a gatinha que já está melhor, apesar de ainda não ter um diagnóstico fechado. meu analista e sua esposa ficam muito agradecidos pela vidinha da filha peluda.

nisso se fecha o resumo do que ninguém me perguntou. a vida aí acontecendo o tempo inteiro sem pausas, para todos os lados, com maiores e menores significados e esse foi um bom dia. daqueles em que demandam da gente solidariedade e a gente retribui sendo solidário porque no fim das contas é o que importa. obrigada (Presto, Chico, Danilo e Maia)!

comecei falando de merda e terminei falando de solidariedade. já assistiram aquele filme "a corrente do bem"? é legal, recomendo. eu sou das pessoas mais pessimistas/realistas que há, mas se houvesse mais gente disposta a ajudar pelo simples prazer de ajudar, esse inferno desse mundo não seria tão desgraçado.



sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

sobre o peso do contraditório

Eu não sei dizer exatamente o que me levou para aquele peso; provavelmente não se tratou de um único fato, acho que foi uma somatória de coisas que envolviam uma mãe muito jovem, mudanças repentinas na vida, um namoro que trazia sensação de conforto, muita comida, pouco movimento, novos traumas sendo causados e antigos traumas sendo revirados, uma graduação e o cuidado com uma filha pequena. Nessa época, eu não trabalhava; não precisava trabalhar e mesmo assim, me sentia consumida, mas só entendi isso recentemente.

Para além de todos esses fatos, hoje, encontro uma explicação que faz sentido para mim. Durante todo o período em que a Ana mamou em meu peito – eu não me dava conta na época –, ela era totalmente minha, totalmente dependente dos meus cuidados. Eu era como uma deusa, lembra? Apesar do cansaço, apesar de viver desgrenhada, apesar de achar meu corpo horroroso, apesar de não me reconhecer, apesar de não ter tempo, apesar de tudo tudo tudo, eu tinha ali um pequeno ser gerado por mim, crescido de mim, nutrido por mim e isso é muito poderoso. Enquanto ela mamava, eu estava só um pouco acima do peso, uns quatro quilos, nada demais. Depois que a amamentação cessou e que eu passei a ser a mãe de uma bebê que comia comida, que não se alimentava mais de mim, acho que – inconscientemente – comecei a comer mais para tentar suprir o vazio de não ser mais a deusa, a fonte de nutrição. Eu comia na tentativa de preencher novamente o ventre flácido, de dar a ele forma, de fazê-lo crescer outra vez, para me dar a sensação de que eu estava grávida, plena, recheada com uma vida que dependesse de mim de novo. E assim, comendo comida, retomei o peso do final da gravidez, ainda com um acréscimo. Eu não estava gestando um novo bebê; eu estava preenchida de gordura e cocô, comendo todas as minhas angústias e as ambivalências que me faziam sentir muito foda, sem saber, e de ter toda a ciência de que me sentia um lixo.

Talvez todo o excesso de peso tenha sido a forma que meu corpo encontrou de enganar meu inconsciente para que ele ainda acreditasse que era tão incrível quanto no período em que gestou e nutriu e teve a maior sensação de potência que poderia ter em qualquer tempo da vida. A questão é que eu não pensava nisso naquele momento; eu não pensava em nada. Eu só era arrastada pelas demandas todas da minha existência, que iam me levando sem que eu soubesse para onde estava indo ou por onde passaria.

Na maior parte do tempo, não me percebia maior, mas quando tirava fotos, me via enorme, disforme, envelhecida; não sabia quem era aquela pessoa, me sentia um fracasso. Meus humores se alternavam entre me achar gorda e achar que precisava emagrecer, e a certeza de que emagrecer seria impossível e, então, aliviava a angústia com mais comida gostosa, compensando os anos de moedas contadas. Durante todo esse período houve momentos em que fiz dietas malucas, restritas, mas que duravam pouco, e outros em que eu só comia. Nunca comi compulsivamente, mas me alimentava muito mal, me nutria pouco e quase nunca me movimentava. O ciclo era retroalimentado diariamente: comida, culpa, inércia, ansiedade, comida...

Não quero que isso seja uma ode a nada, mas eu estava gorda e infeliz e sequer me dava conta de como me sentia de verdade; só ia levando. Não quero também que a maternidade seja a protagonista do que escrevo. Quero escrever acerca do que gerar fez comigo, com meu corpo, e como me afetou em relação a quem eu era antes de engravidar e depois de ter me tornado mãe. Como eu me enxergava antes e como essa compreensão foi sendo revista, editada e elaborada ao longo de todos esses anos.

A onda de feminismo e de aceitação do corpo foi um evento bem mais recente na minha vida, coisa de sei lá, dez anos para cá, e foi um dos motivos mais importantes para que eu pudesse me enxergar em outras mulheres comuns, para que conseguisse ver beleza nelas e daí percebesse que eu também era bonita. Sentia-me segura. Não tinha vergonha do meu corpo, mas não me sentia confortável nele. A princípio, eu o via, mas não me via nele; mais tarde, eu me reconheci tanto naquele corpo que me habituei a ele, a ponto de aceitá-lo, em termos.

O feminismo me ajudou muito com isso, mas nem ele foi capaz de me salvar das arapucas do patriarcado. Me relacionei com muitas pessoas e até me casei, assim, de papel passado, com um homem que quis ficar comigo, que me escolheu – em uma fase na qual eu ainda tinha o sonho dourado do casamento e de todas as idiotices que os filmes americanos e as novelas nos fazem acreditar. Pensei que não poderia abrir mão da proposta porque aquilo era uma oportunidade (!), uma chance de mostrar para o mundo e para mim mesma que eu era digna de ser amada, apesar de gorda e com a barriga feia (sempre carregando o peso daquela barriga comigo). Conseguem perceber aqui as ambivalências?

O casamento não deu certo por inúmeras razões e se transformou em outra coisa: família por escolha – a relação de amizade é muito mais feliz. Fato é que depois do matrimônio, voltei a me relacionar com homens com os quais me sentia ainda mais livre. Eu transava com a luz acesa, usava biquínis de fio-dental, tomava banhos de mar pelada. Eu não me importava com o que pensavam de mim; se me tomariam como uma mulher sem noção do ridículo ou se fariam qualquer outro juízo parecido. A sensação era ótima, tanto que escrevi a respeito e postei uma foto minha pelada aqui -> sobre o corpo e era genuína a maneira que me sentia naquele momento, mas ela continuou se modificando.

Retomando a linha do tempo, dos meus dezenove anos para o ano da foto que acabei de mencionar, passaram-se dezessete, a idade da filha adolescente, que queria se distanciar de mim a todo custo para que pudesse se ver sem que eu fosse uma sombra de projeções sobre ela. Eu era a mãe culpada – como todas as outras –, que tinha receio de ser rejeitada pela filha, que deixava limites serem extrapolados por medo e que depois tentava recolocá-los de maneira tirânica. Era a mãe onerada, descompensada, perdida, que se via em fim de linha quanto ao que fazer, como agir, como ser mãe? Como não errar? Como acertar sempre? Como não traumatizar? Como eu poderia querer tanto em relação ao segundo eu que, finalmente, eu havia entendido, pela dor, que era um outro? De vontade independente e diversa. Eu mal sabia de mim, juro. Nesse ínterim, nós duas, juntas e mesmo separadas, éramos uma grande amálgama de angústias, desejos, frustrações e ânsias.

 

(continua...)

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

sobre o leite, o peito e a barriga

 Depois do parto, percebi que a vida seria cada vez mais ambivalente. Ao mesmo tempo em que me sentia felicíssima por ver minha filha se desenvolvendo bem, via a mim mesma abandonada; me abandonei por resignação de perceber que nunca mais seria a mesma, por falta de tempo até para lavar os cabelos. Me deixei porque a dedicação tinha que ser a ela; eu tinha medo de ir ao banheiro e de voltar e ela ter morrido, caído, quebrado. Cortei meus cabelos para ter mais tempo. Em mim, só notava os absorventes de seios encharcados e o cheiro de leite azedo. Amamentando, eu logo perdi os quase vinte quilos que havia engordado na gravidez.

Parei de amamentar a Ana quando ela tinha um ano e meio. Aos seis meses houve a introdução alimentar e, depois disso, ao longo do tempo a alimentação foi substituindo meu leite. Meu peito era feito de chupeta, usado na hora da manha, assim como foi usado como cala-boca de neném inúmeras vezes em qualquer lugar que estivéssemos. Bebê começa a chorar, mete o peito na boca. Era o calmante, já que ela não usou chupeta de plástico. Eu era a chupeta dela. Quando pequena, sempre dormíamos juntas, eu dando o peito a ela até que caísse no sono, isso quando eu não desfalecia junto. Para mim, amamentar foi um grande prazer, mas os seios que antes precisavam ser intercalados para que um não ficasse mais cheio e dolorido do que o outro, começaram a não se encher mais de leite como antes. Estavam sendo deixados de lado aos poucos.

Então, conheci meu primeiro namorado pós-maternidade e queria poder restituir algo de mim que não tivesse a ver com ser mãe, com ser a mãe que usa sutiã de amamentação e que tem sempre uma golfada de vômito seco na roupa. Fui ao médico e disse que queria parar de amamentar, já era hora. Tomei um remédio que secou o restante de leite que eu produzia. Naquela época, as minhas condições financeiras começaram a ficar melhores e eu comecei a usar um carro como meio de transporte. Minha locomoção antes se dava a pé ou de ônibus. Não sei se em função dessa mudança, que tornou minha vida ainda mais sedentária – já que eu não praticava nenhum tipo de atividade física e que isso nunca havia sido um hábito em minha vida – paulatinamente, comecei a ganhar peso.

Quando a Ana tinha cerca de quatro ou cinco anos, eu estava pesando mais ou menos o quanto pesei no final da minha gestação. Algum tempo depois, o peso ultrapassava o final da gravidez, ou seja, não havia mais um bebê dentro de mim; eu não estava grávida, mas estava ainda maior do que quando havia. Esse ganho de peso não foi prontamente notado porque eu ainda estava abandonada por mim. Durante o transcorrer dos anos, fui me acostumando, a contragosto, ao que tinha se tornado meu corpo, sem perceber que ele estava crescendo. O fato de conseguir me relacionar afetivamente de novo fez com que isso passasse batido. Sabe o casal que quando se conhece está magro e depois engordam juntos? Foi isso que aconteceu comigo.

A relação mascarou o fato de que todas as vezes que eu olhava para o meu ventre mole, flácido e cheio de estrias, pensava estar “arruinada para sempre”; tinha vontade de chorar, sentia uma tristeza profunda, mas tentava dizer a mim mesma: “sua barriga foi a casa da Ana, sua filha que você tanto ama”. Sim, mas eu também amava a minha barriga de antes e o fato dela ter sido casa da minha filha, não diminuía o sentimento de “puta que pariu, nunca mais serei a mesma” que eu sentia todas as vezes que me via no espelho.

Ainda assim, ter um namorado após a maternidade foi importante para me validar novamente como mulher porque eu, com vinte e um anos, era uma menina com um bebê de quase dois e uma barriga feia. Quem seria o cara de mesma idade que namoraria uma mãe e que ainda tivesse a minha barriga horrenda? – sim, eu pensava isso, então, quando surgiu uma pessoa que conseguia me ver inteiramente, para além do meu corpo e do meu segundo eu, pude me sentir desejada e foi quando, pela primeira vez, depois de tanto tempo, voltei a me sentir bonita.

 (continua...)

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

sobre parir, nascer e morrer para nascer de novo

Quando eu engravidei, tinha só dezoito anos. Naquela época os hormônios estavam borbulhando e eu ainda não tinha consciência de que todo o amor que buscava não viria tendo o sexo como uma moeda de troca. Eram muitas as variáveis: os hormônios, a falta de amor, a busca desesperada e inconsciente por afeto, aceitação; mas não é sobre essa busca que quero escrever neste momento.

Hoje quero escrever sobre como pari um bebê e sobre como pari a mim mesma depois de vinte anos. Durante a gestação, enquanto meu corpo produzia um ser inteirinho dentro do meu útero, eu o vi se modificar de uma forma incontrolável. Quando minhas primeiras estrias apareceram, ainda aos onze anos nos quadris, isso foi atribuído ao estirão de crescimento da idade, porque cresci em altura, mas era muito esguia.

As estrias se espalharam, ao longo dos anos, pelos seios, nádegas, coxas; por todas as partes que poderiam ser objetificadas por um homem e que eu cresci ouvindo que contavam negativamente nos quesitos de beleza feminina. Havia muitas estrias, como se a minha pele fosse uma lagoa calma e transparente refletindo a luz solar em um pequeno balanço de suas águas. Elas estavam ali, eu as via igualmente na minha mãe; meu corpo era igual ao dela. Tínhamos as mesmas formas e eu não a achava bonita; não me achava bonita. Ouvia as pessoas a elogiarem e então conseguia ver beleza nela e daí em mim.

De volta à gravidez, quando a barriga começou a ficar mais evidente, lá pelos seis meses apareceu a primeira estria, assim, sozinha, na região inferior da barriga. Me lembro de ter chorado muito porque sabia que ela não seria a única; sabia que a única parte desejável e intacta do meu corpo seria maculada pela maternidade antes mesmo que ela começasse de fato. Chorei do mesmo modo que chorei quando menstruei pela primeira vez; porque sentiria dores todos os meses, porque precisaria usar um absorvente estranho entre as pernas, porque meu crescimento seria mais lento dali em diante, porque eu poderia engravidar caso transasse sem prevenção, porque, enfim, havia me tornado uma “mocinha”, uma mulher.

Esse primeiro luto vivi entre absorventes ensanguentados e cólicas; entre seios inchados e doloridos e oscilações de humor. O luto de deixar de ser uma menina para, literalmente, de um dia para o outro, precisar me acostumar com uma nova realidade que se impunha sem pedir qualquer licença e sem que eu tivesse qualquer escolha de poder negá-la. Era isso.

Do mesmo modo, uma vez que o bebê estivesse dentro da barriga e pronto para nascer, isso se daria de qualquer jeito. No prazo x, em que a gestação dura 285 semanas, o que equivale a 26 meses – sim, eu sei que não é isso, mas também não são nove meses –, a criança tem que sair. A Ana saiu de mim de maneira diferente da que imaginei, por razões que eu nunca desejei ter que passar, mas mais uma vez, isso se deu à revelia do meu controle, contrariamente aos meus planos infantis de maternidade ideal.

Ela nasceu por uma cesariana. Minha barriga já estava completamente arruinada pelas estrias, mas naquele momento, depois das lágrimas derramadas pelo aparecimento da primeira, as demais não pareciam tão importantes. Eu estava preocupada em não morrer; eu tinha certeza de que morreria. Nunca tinha feito uma cirurgia na vida e, de repente, na última consulta com o obstetra, fico sabendo que teria que fazer uma cesariana no outro dia. Assim, sem qualquer preparo emocional, como seria se a minha bolsa tivesse rompido a qualquer tempo, mas teria sido por vontade da Ana, pelo tempo certo de nascer, pela vontade dela que ela sequer sabia que tinha; teria sido pelo meu corpo avisando que funciona perfeitamente e que a encomenda estava pronta para ser entregue. Mas não foi.

Ela veio. Mas antes dela chegar, já falei que achei que ia morrer? Estava tão nervosa que sequer senti a agulha enorme da anestesia entrando nas minhas costas. Logo estava deitada na maca estreita enquanto não sentia qualquer dor, mas sentia que mexiam na minha barriga. Eu olhava praquela luz branca que vinha do teto. Ela refletia a minha barriga aberta, mostrando tudo o que o lençol azul na minha frente me impedia de ver. Olhei para outra direção e sentia como se o médico estivesse sentado sobre o meu peito. Não tinha forças para puxar o ar e encher os pulmões. Me queixei à equipe, disse que não conseguia respirar. Colocaram uma máscara de oxigênio sobre meu rosto. Me senti ligeiramente menos pior. Os médicos estavam ouvindo rádio, a narração do que parecia ser um jogo de futebol. Eu nem gosto de futebol; eu não queria que meu parto parecesse a coisa mais corriqueira da vida como pareceu a eles; mais um parto. Era o meu parto, mas ali, com dezenove anos, não tive qualquer ingerência sobre ele, sobre nada.

A única coisa sobre a qual pude opinar naquele momento foi sobre a beleza de um ser que acabara de ser parido. Quando retiraram a Ana de dentro de mim e a trouxeram para perto do meu rosto para que eu a visse, disse: “como ela é feia”. Eu disse a uma neonata coberta de sebo e sangue que ela era feia, tamanha a minha sordidez materna.

Quando me levaram para o quarto, fui orientada a não falar porque falar me daria gases; algo a ver com a anestesia. A vulnerabilidade começou por sequer conseguir me levantar da cama para ir ao banheiro. A enfermeira deixou no quarto uma “comadre”, um penico de aço inoxidável, que gelado no contato com a pele, me lembrou mais uma vez de que eu não tinha escolha. A anestesia passaria e eu sentiria dor. Eu sentiria dor e não poderia me recuperar dela descansando.

Eu havia acabado de passar por um processo de mitose e não era mais uma só; agora eu era duas e o buraco por onde saiu a segunda era grande, profundo e doía; mesmo assim, eu tinha que cuidar da segunda eu, da que saiu de mim, porque sem mim, ela sucumbiria. Às vezes é nessa hora que nasce a mãe porque ela enfia a sua dor física do corte de sete camadas de pele no cu pra começar o intensivo da maternidade em tempo real, com o segundo eu se esgoelando de fome porque é assim que é. A vida já nasce demandando porque se não demanda, morre.

Mas antes que começasse a chorar, ela estava calma. Foi assim que chegou no quarto. Estava limpa e vestida; tinha luvinhas nas mãos para proteger o rostinho das unhas afiadas e finas que tinha e que já haviam deixado inofensivos riscos naquela pelinha. Eu pude olhá-la com tranquilidade e me apaixonei imediatamente. Os hormônios fizeram o seu papel. Eu a achei linda! Fiquei embasbacada com a beleza dela; fiquei orgulhosa de mim mesma por ter feito uma filha bonita. Ela ainda estava amassada da viagem, ainda tinha “cara de joelho”, mas era o joelho que meu corpo havia produzido sem que eu tivesse qualquer controle sobre qual seria o seu grau de perfeição; e ela era perfeita.

Nos primeiros dias, andava curvada e o plano de manter o bebê no berço sempre que possível, logo passou para “ela vai dormir comigo na cama de solteiro porque dói demais levantar cinco vezes por madrugada”. Logo eu, que sempre tive o sono tão pesado, neurei com a possibilidade de dormir e esmagar minha filha durante a noite. O sono ficou leve, atento, vigilante.

Com mais de um mês do parto, minha barriga ainda parecia carregar um bebê dentro dela. Era o corpo se reacomodando. Ventre inchado e murcho ao mesmo tempo. Não tão pleno quanto aos nove meses, não tão plano quanto antes da gestação. Olhava para o espelho e não me reconhecia. Não era a Karla de antes da gravidez, tampouco a Karla grávida; era uma terceira: a Karla mãe recém-formada; mãe recém-nascida, saída da maternidade junto com o neném, com o segundo eu.

Depois da aflição com as mudanças na barriga que não me levariam a nenhum lugar visto que eram uma realidade imutável impressa no meu corpo, passei a notar mais meus seios que se tornaram fonte de alimento e saciedade do meu neném. Sempre tive os seios fartos, que produzindo leite ficaram ainda mais volumosos, com veias azuis protuberantes, mamilos mais escuros e maiores. Eu já tinha nutrido meu segundo eu dentro de mim, enquanto ainda éramos duas em uma. Agora meu corpo produzia alimento para fora, para garantir a existência do que já não fazia mais parte de mim, mas ainda era eu por extensão.

Ana mamava como um pequeno bezerro e gozava de satisfação revirando os olhinhos até desfalecer em meu braço. Eu gozava de satisfação de alimentar minha filha de mim. De ver que o humano sustenta a si mesmo de si mesmo; que eu a alimentava e me retroalimentava. Eu não sabia então, mas agora sei que me sentia invencível, me sentia como deus. Criando a vida e sendo capaz de sustentá-la. Apaixonada pela própria criação.

Minha libido se voltou inteira para mim fora de mim. Não me preocupei mais comigo. Era ela o foco. Eu era a mãe com a barriga meio murcha e cheia de estrias, a terceira versão de mim mesma, e ainda tinha só dezenove anos.

 

(Continua...)

 

 

 

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Sobre o Marte

 


Foi ontem e ontem eu estava sentindo tantas coisas e vendo tantas outras dentro da minha cabeça... cheguei a pensar em escrever, mas rapidamente desisti da ideia porque, como sempre, faz tempo que não escrevo e mesmo sabendo o tanto que você significa pra mim achei que não tivesse nada a dizer. Achei que estava oca; mas deve ser porque estou já que você ocupava tantos espaços na minha vida... como pode? Era só um gato, só que não. Era o Marte. Preto, lindo, corpulento. Meu nego, meu príncipe. Ontem à tarde, achava que via você pela casa, como uma sombrinha de amor.

Foram 13 anos. O gato preto viveu por 13 anos; será que isso quer dizer alguma coisa no mundo das superstições? Ele e a Marta são os animais mais longevos que tive até aqui. Eles cresceram junto com a Ana e junto comigo também porque naquela época eu tinha 26 anos e hoje tenho 39.

Pensar que não verei mais seus olhinhos semicerrados sobre a minha cama, que não verei mais as suas patinhas fininhas que sustentavam seu corpanzil macio desmunhecadas como se você fosse um urso fofo deitado no tapete da sala tomando o sol da manhã. Pensar nisso me faz querer não pensar que você existiu um dia. Pode parecer cruel, mas é só porque a dor está bem aqui no meio da minha cara. Vai passar e eu vou lembrar de você com todo o amor que merece ser lembrado.

“nossa, que gatão!”, “nunca vi um gato grande assim!”, era assim que se referiam a você. Cara de bravo, mas um doce. Era só não encostar na barriga. Sabe que eu tive a prova de que a vida continua mesmo quando ela para, no momento em que eu falava de você pra Thaís, aqui em casa. Falei sobre esperar até o final de semana pra ver como você reagiria, mas enquanto eu nutria alguma esperança sobre a sua volta, a veterinária tentava me ligar pra avisar que você tinha morrido.

Sim, você morreu. Ela disse que veio a óbito, mas acho essa expressão horrível. Técnica, de necrotério. Também não gosto de “faleceu”; parece que não exprime a morte na totalidade, no sentido finito que a palavra traz. Eu acho que a morte não deve ser suavizada na sua expressão porque ela não pode ser diferente do que é, infelizmente. Como não há retorno, quando ouvi a notícia no telefone imediatamente voltei a chorar porque já tinha passado o dia todo chorando por sua causa e a minha análise foi inteiramente dedicada a você algumas horas antes, quando a torneira se manteve aberta por quase uma hora inteira.

Como estava me esvaindo em lágrimas e calçando o tênis pra te encontrar, tua tia me abraçou tão forte que eu senti que se ela pudesse, tiraria de mim a dor e o sofrimento com a notícia. Senti meu corpo apertado, mas não adiantava. Pegamos trânsito por causa da véspera do feriado. Chegamos e a veterinária demorou uns minutos para aparecer e quando apareceu, queria decerto me dar alguma explicação, mas eu só queria ver meu filho. Nada do que ela falasse faria qualquer diferença, então só queria vê-lo.

Quando te trouxeram embrulhadinho em uma cobertinha branca, que nem um neném, na hora me lembrei do ditado que se espalhou nas redes sociais que diz que “se fosse pra não pegar gato no colo, deus não os teria feito do tamanho de bebês” e eu peguei o meu bebê velho no colo pela última vez. Já dava pra sentir que era disforme, que estava frio, mais pesado, todo molinho como se não houvesse nem um osso no corpinho, nada que segurasse sua cabecinha nem que tivesse força pra fechar seus olhos amarelos. Era você, mas você já tinha ido embora.

Na hora do almoço fiquei com você no meu colo por vinte minutos, enquanto se mantinha imóvel, dopado de remédios para dor, com as patinhas frias escondidas na minha mão direita e a cabecinha recostada no meu braço esquerdo. Você não ronronou, mas a energia que dá vida ao corpo ainda fazia parecer que tinha ossos e músculos por debaixo da pelagem já toda avacalhada; a lateral do corpinho e as duas patinhas dianteiras raspadas pra facilitar a aplicação dos remédios, do soro.

Eu não queria que você morresse sozinho no hospital, mas não pude evitar que esse fosse o seu fim e, por isso, peço perdão porque deve ser muito triste morrer sozinho em um hospital, mesmo pra um bichinho. Eu falhei com você, meu filho, mas ainda tentei dar alguma mostra de respeito por sua passagem tão maravilhosa por essa merda de mundo que, certamente, foi um pouco melhor porque você existiu.

Trouxe você pra casa. Queria que seus irmãos pudessem se despedir de você. Que pudessem sentir seu cheirinho por baixo do odor de hospital. Que pudessem sentir que você voltou, mas que já não estava mais aqui. Eles têm a lógica deles que certamente não condiz nada com a lógica que eu criei humanizando todos eles, humanizando seu corpinho como se houvesse algum tipo de consciência e que eu pudesse saber o que você estava pensando mesmo depois de não existir mais.

Eu tirei fotos de você dentro da caixa em que veio porque quero criar novas tradições que são muito velhas. As pessoas faziam isso até o início do século XX, quando em algum ponto desses cem anos decidiram tirar a morte de casa e nos afastar dela. Você morreu no hospital, mas voltou pra casa porque é a sua casa o último lugar em que você vai estar – mesmo não sendo, porque o último lugar é a geladeira do crematório para depois ir ao forno do crematório e virar cinzas. As cinzas serão trazidas para casa, então aqui realmente será a última parada.

Veja, você vai morar em uma vitrine de medicamentos junto com seus outros irmãos, Raquete e Pretinha. Acho que não posso continuar colocando cacarecos lá dentro porque em algum momento haverá mais urnas lá. Até a minha, receio.

Tirei fotos, coloquei sobra a sua pancinha flácida uma florzinha que a Thaís trouxe pra mim; foi muito propícia e significativa. Ontem, até rezei pra São Francisco de Assis mesmo sendo ateia; achei que mal não faria. Uma das partes da oração dizia sobre “ajudar a nossa batalha, eliminando as enfermidades e o sofrimento deste animal”. Parece que a oração fez efeito porque você não está mais sofrendo.

Eu senti seu cheirinho no meu quarto o dia todo e estou tentando me distrair pra não pensar que agora você só existe aqui dentro, mas vai continuar existindo enquanto eu me lembrar e eu nunca vou me esquecer.

Quando a gatinha do namorado da Ana e dela morreu, eles ficaram muitíssimo tristes e eu disse a ela que os bichinhos não vivem tanto quanto nós porque, se vivessem, não teríamos a chance de ter tantos deles. O raciocínio é que depois que um bichinho morre a gente abre vaga para que outro entre em nossa vida; só que isso não é uma substituição do animalzinho anterior, é a escala de amor aumentando desde que o primeiro deles entrou na nossa vida. É uma oportunidade de experimentar o amor incondicional de um animalzinho e, pensando só no amor, esquecemos de que eles terão uma vida mais curta do que a nossa e de que nossos corações serão quebrados em mil pedaços quando a hora chega, mas que depois tudo será colado de novo, com amor e pelos no meio das rachaduras, assim que um novo gatinho adentra as nossas vidas.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

sobre o trabalho

a melhor forma de começar é dizendo que não gosto de trabalhar. não gosto de ser obrigada a cumprir uma função em troca de ter dinheiro para poder manter a minha vida. não acho que o trabalho enobrece ou dignifica ninguém; não acho que o trabalho liberta; não acho que o que me falta é encontrar algo que eu ame fazer para que, então, eu ame o meu trabalho.

a gente nasce dentro de um sistema econômico que tomamos de maneira naturalizada e que, junto de preceitos religiosos, nos fazem acreditar que é normal e esperado que gastemos metade das nossas vidas trabalhando para poder ter uma existência minimamente digna. veja, estou falando isso do alto do meu emprego como servidora pública, estável, que recebe um salário razoável frente a, sei lá, 80% da população brasileira. do conforto da minha casa, fazendo, às vezes, mais do que três refeições diárias, tendo acesso à análise e a um plano de saúde, morando a menos de dois quilômetros do lugar em que trabalho, eu digo que não gosto de trabalhar.

eu vou, faço o que tem de ser feito, cumpro minhas funções, atendo às minhas demandas, recebo meu salário por isso e não espero ter nenhum tipo de realização profissional porque eu não gosto de trabalhar. meu trabalho é apenas o meio pelo qual eu posso manter a minha vida para fazer as coisas que eu quero fazer, o que inclui pouca coisa, como dormir, me alienar nas redes sociais, assistir um filme ou uma série ou fazer absolutamente nada. eu gosto de fazer nada, eu gosto de não ter compromissos, obrigações, atividades programadas. eu gosto de fazer nada e não gosto de trabalhar.

e escrevo isso sem nenhum tipo de vergonha por assumir que não gosto de ser sobrecarregada, que não gosto de ter mil missões pra cumprir, que não gosto do esquema escroto de produtividade que o neoliberalismo joga na roda como se o que medisse o seu valor como pessoa fosse não só o quanto você ganha, mas o quanto você trabalha; se bem que... opa! não, o que importa realmente é só o quanto você ganha porque se importasse o quanto você trabalha, qualquer repositor de estoque do mercado e qualquer uber seriam supervalorizados por todo o trabalho que executam.

podendo soar hipócrita, de cima da minha cama, no dia do trabalhadoR e não do trabalho, eu digo que é absolutamente injusto que eu viva da forma que eu vivo enquanto a esmagadora maioria da população não teve, não tem e não terá a maior parte das oportunidades que eu tive, a despeito de todas as dificuldades pelas quais eu possa ter passado. e não acho que se trate de mérito; eu não tenho mais mérito do que uma mulher que viva em qualquer periferia porque eu me "esforcei" mais do que ela; a gente simplesmente não saiu do mesmo lugar pra poder fazer esse tipo de comparação esdrúxula.

eu não acho que eu mereço mais o que eu tenho do que qualquer outra pessoa que não tenha nada e me entristece muito saber que a realidade é essa e que a gente não tem como fugir dela. você só consegue “fugir” do sistema se você, olha só, tiver dinheiro pra criar as suas próprias regras, mas daí você já está dentro dele. E quando você está dentro, é muito fácil falar que “quem quer dá um jeito, quem não quer arranja desculpa”. Pra casa de satanás com esse papo!

no ano passado, me aproximei das ideias do comunismo e realmente acho que ele seja o mundo ideal. um mundo em que os meios de produção fossem geridos pela classe trabalhadora e no qual todas as pessoas tivessem acesso ao mínimo necessário para uma vida digna. Que todos tivessem casa, comida e trabalho, mas não um trabalho que os consumisse e os tornasse escravos, um trabalho que fosse apenas o suficiente para manter uma pequena parcela do "todo social" funcionando, que as pessoas fossem remuneradas por isso, e que pudessem viver suas vidas em uma plenitude que não se resumisse a guardar dinheiro e ter mais coisas. 

que as pessoas pudessem ser reconhecidas por seus talentos e habilidades e até mesmo por sua mediocridade, porque ninguém precisa se provar o tempo todo pra valer alguma coisa; pelo menos eu acho que não deveria ser assim. vejam, estou tirando todo esse idealismo diretamente do meu cu e sem nenhum tipo de embasamento teórico, porque apesar do interesse que manifestei pelas ideias comunistas, eu nada li a respeito e ainda assim concordo 100% com a ideia de revolução, com a ideia de expropriação dos meios de produção.

o mundo não precisa de bilionários arrombados; o mundo precisa de trabalhadores organizados. quanto mais o capitalismo nos faz acreditar que o bom é ser empreendedor - quando na verdade você só está abrindo mão de direitos trabalhistas e se submetendo a cargas de trabalho cada vez mais extenuantes e ganhos cada vez menores -, mais acreditamos que o bom é trabalhar enquanto os outros dormem e ter crises de pânico, de ansiedade, sensação de fracasso e por aí vai porque, afinal de contas, todo mundo conhece o caso do fulano que enriqueceu do zero porque se esforçou pra caralho, porque teve foco, força e fé e quando você vai ver o cara era só um filho da puta que criou um esquema de pirâmide e arrancou milhões de gente que anseia ficar rica sem ter trabalho; e dá pra culpá-las? 

acho que elas não gostam de trabalhar, como eu =), mas não acho que por isso elas devam se foder e ser roubadas por bandidos que se aproveitam da ingenuidade ou mesmo da burrice dessas pessoas. o problema não está nelas. o problema está nelas acharem realmente que um dia ficarão tão ricas que não precisarão mais trabalhar e nem se preocupar com o futuro. todo mundo que quer ganhar muito dinheiro, quer isso porque quer poder ter condições de aproveitar a vida porque sabe que ela não deveria se resumir a trabalhar para não morrer de fome e simplesmente não existir a opção de não trabalhar; a vida deveria ser uma experiência rica pra todos, não só pra quem pode pagar por ela.

dito isso, vamos ao básico do que eu aprendi assistindo a muitos vídeos de camaradas comunistas (já tô me achando a militante, mesmo sem nunca ter me organizado). quem produz toda a riqueza que nós vemos por aí é a classe trabalhadora. qual riqueza? - você pode me perguntar - riqueza não é tipo dinheiro? veja, no caso a riqueza à qual me refiro é absolutamente tudo que existe ao nosso redor. da casa onde você mora, à roupa que você veste, passando pela comida que você come e o telefone que você usa, tudo, absolutamente tudo isso eu chamo de riqueza (que me perdoem os teóricos porque provavelmente eu esteja usando o conceito de maneira talvez desvirtuada, mas eu tenho um ponto).

então, essa bagulhada toda é riqueza e riqueza produzida pela classe trabalhadora. você acha que foi a dona Mag****ne Luiça que construiu a primeira loja da marca? que projetou, minerou, produziu, encaixotou, transportou e vendeu o primeiro alfinete da loja dela? e isso se aplica a qualquer outra mercadoria ou bem durável/não durável. por mais que a gente escute que "se o Elão Nusk não tivesse tido a genial ideia da porra do carro elétrico, ele nunca poderia ter sido feito", pois bela bosta ele ter a ideia, ele poderia ter as ideias mais geniais da face da terra; ainda assim, ele é só uma alma sebosa no planeta e, sozinho, ele nunca poderia ter feito o carro elétrico. o carro dele é produzido a partir de uma longuíssima cadeia de produção, que começa lá na casa do caralho, com trabalhadores muito especializados e precarizados trabalhando em minas de ferro, de lítio e essas coisas todas. pensa só em quantas centenas, senão milhares de pessoas, fazem parte dessa rede até que o carro esteja acabado e cheiroso na concessionária, pronto pra se dirigir sozinho, bater numa árvore, explodir, matar seus ocupantes e ouvir do corno do dono da empresa que o problema eram as pessoas que ocupavam o carro e não o carro em si, apesar de esses acidentes acontecerem com frequência...

isso é só um exemplo de que o carro não foi produzido pelo bilionário cuzão; ele foi produzidos por todos esses trabalhadores que, mesmo consumindo valiosas horas na labuta, deixando de estar com seus familiares ou coçando o saco simplesmente porque poderiam, estão ali, sendo mal remunerados e enchendo o cu do dono do tuinter de dinheiro; dinheiro que ele não daria conta de gastar nem que quisesse porque são muitos bilhões e que ele sequer trabalhou para acumular - ele “ganhou” esse dinheiro explorando a mão de obra dessas pessoas.

“ah, mas se ele não tivesse investido, essas pessoas não teriam emprego...”, sim, se ele não tivesse investido, ele não teria o carro elétrico. Ele não faz um favor ao pagar esses trabalhadores, pois são esses trabalhadores que propiciam a concretização do projeto genial desse cara. “ah, mas se você ganha pouco, o capitalismo te dá a opção de procurar outro emprego”. Claro, é sempre uma opção largar um subemprego, que às vezes não garante nem o mercado do mês pra conseguir outra “excelente” vaga, que talvez fique mais uma hora de distância da casa da pessoa, que talvez exija que ela seja PJ, que não pague horas extras, mas que a pessoa ganhe 200 reais a mais. Vai ter corno aí dizendo que com esse “aumento” já dava até pra investir em ações, hein!

A gente precisa ter o mínimo de autocrítica pra saber que o fato de termos uma casa financiada, um jeep renegade, um iphone 13 e meia dúzia de idas à Disney não tornam ninguém rico. Se liga, porra! Mesmo que você tenha uma “empresa”, se ache o patrão, me conta aí, se você parar de trabalhar hoje, por quanto tempo você consegue manter o padrão de que vida que tem? Já diz o sábio professor Alysson Mascaro (muitíssimo recomendado), você é só um pobre premium. Mesmo que ganhe 10, 20, 50 mil por mês; se você recebe salário, então deveria estar na hora de você se mobilizar.

“ah, mas não tem como mudar a realidade, sempre foi assim, vou cuidar do meu e foda-se o coletivo!” é, colega, realmente é muito fácil olhar só pro próprio rabo quando o sistema está a todo momento querendo enfiar uma trolha enorme no nosso cu, mas se você está lendo isso, são grandes as chances de que você tenha mais do que a maior parte da população tem e isso é desumano.

Eu sei que o comunismo não tem o objetivo de fazer justiça social, tem o objetivo de tomar os meios de produção – que não são a porra do seu carro, nem a sua casa de praia, Enzo, fica sossegado! – e instituir a ditadura do proletariado, que somos quase todos nós. Mesmo não sendo o fim a justiça social, acaba que ela se dá quando todas as pessoas têm casa, comida, educação, saúde, emprego, lazer e tempo de qualidade sem precisar ser expoliado por um trabalho, sem precisar ser aficcionado pela ideia de ficar rico e acumular coisas.

Eu sei que pode parecer impensável uma realidade diferente da que vivemos, mas se toda essa massa de pessoas se unisse com esse objetivo, não seriam alguns milhares de bilionários que nos parariam. Eu sei que é difícil acreditar que o capitalismo não existia até algum tempo atrás, porque haverá gente dizendo que Adão e Ivo já eram capitalistas e investiam na bolsa do paraíso.

Ainda assim, eu vejo que o desemprego despencaria se as cargas de trabalho fossem reduzidas, mais ou menos assim, de acordo com o curso de economia em que me graduei na UNICU. vejam: se antes, uma vaga era ocupada por uma pessoa que trabalha 8h, ela poderia ser ocupada por duas pessoas trabalhando 4h e sem redução de salário! "ah, mas de onde vai sair o dinheiro, Karla?" do lucro da empresa, caralho! as empresas não deveriam existir pra dar lucro pros donos; elas deveriam existir para garantir que a sociedade pudesse suprir a sua demanda pelo serviço/produto que ela oferta, garantindo meios de vida dignos para os seus trabalhadores. Agora imaginem isso em larga escala...

Imagina poder trabalhar apenas 4h diárias e ter meios o bastante para prover a sua vida e, olha que absurdo, ainda poder vivê-la de verdade! Se você quisesse trabalhar mais, você poderia, mas não seria necessário. Você poderia cuidar do jardim, ficar com a família, beber com os amigos no bar, ler um livro, tricotar, fazer um passeio, dormir, fazer a porra que você quisesse fazer sem pensar que está devendo o cartão de crédito, o financiamento da casa, o tratamento de saúde da sua vó. Sem se preocupar com o seu trabalho porque ele fica lá no prédio em que você trabalha e você não precisa carregá-lo para todos os lados; sem precisar pensar em produtividade porque você viveria uma realidade em que é uma pessoa, com individualidade e desejos e não uma peça de engrenagem que é totalmente substituível e que só serve para encher o rabo de uns poucos com dinheiro. Fora toda questão ambiental, caso não vivêssemos de explorar os recursos naturais indefinidamente e a qualquer custo.

Pode ser utópico? Pode sim, mas se isso aqui tiver servido minimamente para que alguém coloque em dúvida uma crença cristalizada, e se questione sobre qualquer tipo de possibilidade para além do que está dado, já terá valido.

Trabalhadores do mundo, uni-vos!