sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

sobre o peso do contraditório

Eu não sei dizer exatamente o que me levou para aquele peso; provavelmente não se tratou de um único fato, acho que foi uma somatória de coisas que envolviam uma mãe muito jovem, mudanças repentinas na vida, um namoro que trazia sensação de conforto, muita comida, pouco movimento, novos traumas sendo causados e antigos traumas sendo revirados, uma graduação e o cuidado com uma filha pequena. Nessa época, eu não trabalhava; não precisava trabalhar e mesmo assim, me sentia consumida, mas só entendi isso recentemente.

Para além de todos esses fatos, hoje, encontro uma explicação que faz sentido para mim. Durante todo o período em que a Ana mamou em meu peito – eu não me dava conta na época –, ela era totalmente minha, totalmente dependente dos meus cuidados. Eu era como uma deusa, lembra? Apesar do cansaço, apesar de viver desgrenhada, apesar de achar meu corpo horroroso, apesar de não me reconhecer, apesar de não ter tempo, apesar de tudo tudo tudo, eu tinha ali um pequeno ser gerado por mim, crescido de mim, nutrido por mim e isso é muito poderoso. Enquanto ela mamava, eu estava só um pouco acima do peso, uns quatro quilos, nada demais. Depois que a amamentação cessou e que eu passei a ser a mãe de uma bebê que comia comida, que não se alimentava mais de mim, acho que – inconscientemente – comecei a comer mais para tentar suprir o vazio de não ser mais a deusa, a fonte de nutrição. Eu comia na tentativa de preencher novamente o ventre flácido, de dar a ele forma, de fazê-lo crescer outra vez, para me dar a sensação de que eu estava grávida, plena, recheada com uma vida que dependesse de mim de novo. E assim, comendo comida, retomei o peso do final da gravidez, ainda com um acréscimo. Eu não estava gestando um novo bebê; eu estava preenchida de gordura e cocô, comendo todas as minhas angústias e as ambivalências que me faziam sentir muito foda, sem saber, e de ter toda a ciência de que me sentia um lixo.

Talvez todo o excesso de peso tenha sido a forma que meu corpo encontrou de enganar meu inconsciente para que ele ainda acreditasse que era tão incrível quanto no período em que gestou e nutriu e teve a maior sensação de potência que poderia ter em qualquer tempo da vida. A questão é que eu não pensava nisso naquele momento; eu não pensava em nada. Eu só era arrastada pelas demandas todas da minha existência, que iam me levando sem que eu soubesse para onde estava indo ou por onde passaria.

Na maior parte do tempo, não me percebia maior, mas quando tirava fotos, me via enorme, disforme, envelhecida; não sabia quem era aquela pessoa, me sentia um fracasso. Meus humores se alternavam entre me achar gorda e achar que precisava emagrecer, e a certeza de que emagrecer seria impossível e, então, aliviava a angústia com mais comida gostosa, compensando os anos de moedas contadas. Durante todo esse período houve momentos em que fiz dietas malucas, restritas, mas que duravam pouco, e outros em que eu só comia. Nunca comi compulsivamente, mas me alimentava muito mal, me nutria pouco e quase nunca me movimentava. O ciclo era retroalimentado diariamente: comida, culpa, inércia, ansiedade, comida...

Não quero que isso seja uma ode a nada, mas eu estava gorda e infeliz e sequer me dava conta de como me sentia de verdade; só ia levando. Não quero também que a maternidade seja a protagonista do que escrevo. Quero escrever acerca do que gerar fez comigo, com meu corpo, e como me afetou em relação a quem eu era antes de engravidar e depois de ter me tornado mãe. Como eu me enxergava antes e como essa compreensão foi sendo revista, editada e elaborada ao longo de todos esses anos.

A onda de feminismo e de aceitação do corpo foi um evento bem mais recente na minha vida, coisa de sei lá, dez anos para cá, e foi um dos motivos mais importantes para que eu pudesse me enxergar em outras mulheres comuns, para que conseguisse ver beleza nelas e daí percebesse que eu também era bonita. Sentia-me segura. Não tinha vergonha do meu corpo, mas não me sentia confortável nele. A princípio, eu o via, mas não me via nele; mais tarde, eu me reconheci tanto naquele corpo que me habituei a ele, a ponto de aceitá-lo, em termos.

O feminismo me ajudou muito com isso, mas nem ele foi capaz de me salvar das arapucas do patriarcado. Me relacionei com muitas pessoas e até me casei, assim, de papel passado, com um homem que quis ficar comigo, que me escolheu – em uma fase na qual eu ainda tinha o sonho dourado do casamento e de todas as idiotices que os filmes americanos e as novelas nos fazem acreditar. Pensei que não poderia abrir mão da proposta porque aquilo era uma oportunidade (!), uma chance de mostrar para o mundo e para mim mesma que eu era digna de ser amada, apesar de gorda e com a barriga feia (sempre carregando o peso daquela barriga comigo). Conseguem perceber aqui as ambivalências?

O casamento não deu certo por inúmeras razões e se transformou em outra coisa: família por escolha – a relação de amizade é muito mais feliz. Fato é que depois do matrimônio, voltei a me relacionar com homens com os quais me sentia ainda mais livre. Eu transava com a luz acesa, usava biquínis de fio-dental, tomava banhos de mar pelada. Eu não me importava com o que pensavam de mim; se me tomariam como uma mulher sem noção do ridículo ou se fariam qualquer outro juízo parecido. A sensação era ótima, tanto que escrevi a respeito e postei uma foto minha pelada aqui -> sobre o corpo e era genuína a maneira que me sentia naquele momento, mas ela continuou se modificando.

Retomando a linha do tempo, dos meus dezenove anos para o ano da foto que acabei de mencionar, passaram-se dezessete, a idade da filha adolescente, que queria se distanciar de mim a todo custo para que pudesse se ver sem que eu fosse uma sombra de projeções sobre ela. Eu era a mãe culpada – como todas as outras –, que tinha receio de ser rejeitada pela filha, que deixava limites serem extrapolados por medo e que depois tentava recolocá-los de maneira tirânica. Era a mãe onerada, descompensada, perdida, que se via em fim de linha quanto ao que fazer, como agir, como ser mãe? Como não errar? Como acertar sempre? Como não traumatizar? Como eu poderia querer tanto em relação ao segundo eu que, finalmente, eu havia entendido, pela dor, que era um outro? De vontade independente e diversa. Eu mal sabia de mim, juro. Nesse ínterim, nós duas, juntas e mesmo separadas, éramos uma grande amálgama de angústias, desejos, frustrações e ânsias.

 

(continua...)

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

sobre o leite, o peito e a barriga

 Depois do parto, percebi que a vida seria cada vez mais ambivalente. Ao mesmo tempo em que me sentia felicíssima por ver minha filha se desenvolvendo bem, via a mim mesma abandonada; me abandonei por resignação de perceber que nunca mais seria a mesma, por falta de tempo até para lavar os cabelos. Me deixei porque a dedicação tinha que ser a ela; eu tinha medo de ir ao banheiro e de voltar e ela ter morrido, caído, quebrado. Cortei meus cabelos para ter mais tempo. Em mim, só notava os absorventes de seios encharcados e o cheiro de leite azedo. Amamentando, eu logo perdi os quase vinte quilos que havia engordado na gravidez.

Parei de amamentar a Ana quando ela tinha um ano e meio. Aos seis meses houve a introdução alimentar e, depois disso, ao longo do tempo a alimentação foi substituindo meu leite. Meu peito era feito de chupeta, usado na hora da manha, assim como foi usado como cala-boca de neném inúmeras vezes em qualquer lugar que estivéssemos. Bebê começa a chorar, mete o peito na boca. Era o calmante, já que ela não usou chupeta de plástico. Eu era a chupeta dela. Quando pequena, sempre dormíamos juntas, eu dando o peito a ela até que caísse no sono, isso quando eu não desfalecia junto. Para mim, amamentar foi um grande prazer, mas os seios que antes precisavam ser intercalados para que um não ficasse mais cheio e dolorido do que o outro, começaram a não se encher mais de leite como antes. Estavam sendo deixados de lado aos poucos.

Então, conheci meu primeiro namorado pós-maternidade e queria poder restituir algo de mim que não tivesse a ver com ser mãe, com ser a mãe que usa sutiã de amamentação e que tem sempre uma golfada de vômito seco na roupa. Fui ao médico e disse que queria parar de amamentar, já era hora. Tomei um remédio que secou o restante de leite que eu produzia. Naquela época, as minhas condições financeiras começaram a ficar melhores e eu comecei a usar um carro como meio de transporte. Minha locomoção antes se dava a pé ou de ônibus. Não sei se em função dessa mudança, que tornou minha vida ainda mais sedentária – já que eu não praticava nenhum tipo de atividade física e que isso nunca havia sido um hábito em minha vida – paulatinamente, comecei a ganhar peso.

Quando a Ana tinha cerca de quatro ou cinco anos, eu estava pesando mais ou menos o quanto pesei no final da minha gestação. Algum tempo depois, o peso ultrapassava o final da gravidez, ou seja, não havia mais um bebê dentro de mim; eu não estava grávida, mas estava ainda maior do que quando havia. Esse ganho de peso não foi prontamente notado porque eu ainda estava abandonada por mim. Durante o transcorrer dos anos, fui me acostumando, a contragosto, ao que tinha se tornado meu corpo, sem perceber que ele estava crescendo. O fato de conseguir me relacionar afetivamente de novo fez com que isso passasse batido. Sabe o casal que quando se conhece está magro e depois engordam juntos? Foi isso que aconteceu comigo.

A relação mascarou o fato de que todas as vezes que eu olhava para o meu ventre mole, flácido e cheio de estrias, pensava estar “arruinada para sempre”; tinha vontade de chorar, sentia uma tristeza profunda, mas tentava dizer a mim mesma: “sua barriga foi a casa da Ana, sua filha que você tanto ama”. Sim, mas eu também amava a minha barriga de antes e o fato dela ter sido casa da minha filha, não diminuía o sentimento de “puta que pariu, nunca mais serei a mesma” que eu sentia todas as vezes que me via no espelho.

Ainda assim, ter um namorado após a maternidade foi importante para me validar novamente como mulher porque eu, com vinte e um anos, era uma menina com um bebê de quase dois e uma barriga feia. Quem seria o cara de mesma idade que namoraria uma mãe e que ainda tivesse a minha barriga horrenda? – sim, eu pensava isso, então, quando surgiu uma pessoa que conseguia me ver inteiramente, para além do meu corpo e do meu segundo eu, pude me sentir desejada e foi quando, pela primeira vez, depois de tanto tempo, voltei a me sentir bonita.

 (continua...)

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

sobre parir, nascer e morrer para nascer de novo

Quando eu engravidei, tinha só dezoito anos. Naquela época os hormônios estavam borbulhando e eu ainda não tinha consciência de que todo o amor que buscava não viria tendo o sexo como uma moeda de troca. Eram muitas as variáveis: os hormônios, a falta de amor, a busca desesperada e inconsciente por afeto, aceitação; mas não é sobre essa busca que quero escrever neste momento.

Hoje quero escrever sobre como pari um bebê e sobre como pari a mim mesma depois de vinte anos. Durante a gestação, enquanto meu corpo produzia um ser inteirinho dentro do meu útero, eu o vi se modificar de uma forma incontrolável. Quando minhas primeiras estrias apareceram, ainda aos onze anos nos quadris, isso foi atribuído ao estirão de crescimento da idade, porque cresci em altura, mas era muito esguia.

As estrias se espalharam, ao longo dos anos, pelos seios, nádegas, coxas; por todas as partes que poderiam ser objetificadas por um homem e que eu cresci ouvindo que contavam negativamente nos quesitos de beleza feminina. Havia muitas estrias, como se a minha pele fosse uma lagoa calma e transparente refletindo a luz solar em um pequeno balanço de suas águas. Elas estavam ali, eu as via igualmente na minha mãe; meu corpo era igual ao dela. Tínhamos as mesmas formas e eu não a achava bonita; não me achava bonita. Ouvia as pessoas a elogiarem e então conseguia ver beleza nela e daí em mim.

De volta à gravidez, quando a barriga começou a ficar mais evidente, lá pelos seis meses apareceu a primeira estria, assim, sozinha, na região inferior da barriga. Me lembro de ter chorado muito porque sabia que ela não seria a única; sabia que a única parte desejável e intacta do meu corpo seria maculada pela maternidade antes mesmo que ela começasse de fato. Chorei do mesmo modo que chorei quando menstruei pela primeira vez; porque sentiria dores todos os meses, porque precisaria usar um absorvente estranho entre as pernas, porque meu crescimento seria mais lento dali em diante, porque eu poderia engravidar caso transasse sem prevenção, porque, enfim, havia me tornado uma “mocinha”, uma mulher.

Esse primeiro luto vivi entre absorventes ensanguentados e cólicas; entre seios inchados e doloridos e oscilações de humor. O luto de deixar de ser uma menina para, literalmente, de um dia para o outro, precisar me acostumar com uma nova realidade que se impunha sem pedir qualquer licença e sem que eu tivesse qualquer escolha de poder negá-la. Era isso.

Do mesmo modo, uma vez que o bebê estivesse dentro da barriga e pronto para nascer, isso se daria de qualquer jeito. No prazo x, em que a gestação dura 285 semanas, o que equivale a 26 meses – sim, eu sei que não é isso, mas também não são nove meses –, a criança tem que sair. A Ana saiu de mim de maneira diferente da que imaginei, por razões que eu nunca desejei ter que passar, mas mais uma vez, isso se deu à revelia do meu controle, contrariamente aos meus planos infantis de maternidade ideal.

Ela nasceu por uma cesariana. Minha barriga já estava completamente arruinada pelas estrias, mas naquele momento, depois das lágrimas derramadas pelo aparecimento da primeira, as demais não pareciam tão importantes. Eu estava preocupada em não morrer; eu tinha certeza de que morreria. Nunca tinha feito uma cirurgia na vida e, de repente, na última consulta com o obstetra, fico sabendo que teria que fazer uma cesariana no outro dia. Assim, sem qualquer preparo emocional, como seria se a minha bolsa tivesse rompido a qualquer tempo, mas teria sido por vontade da Ana, pelo tempo certo de nascer, pela vontade dela que ela sequer sabia que tinha; teria sido pelo meu corpo avisando que funciona perfeitamente e que a encomenda estava pronta para ser entregue. Mas não foi.

Ela veio. Mas antes dela chegar, já falei que achei que ia morrer? Estava tão nervosa que sequer senti a agulha enorme da anestesia entrando nas minhas costas. Logo estava deitada na maca estreita enquanto não sentia qualquer dor, mas sentia que mexiam na minha barriga. Eu olhava praquela luz branca que vinha do teto. Ela refletia a minha barriga aberta, mostrando tudo o que o lençol azul na minha frente me impedia de ver. Olhei para outra direção e sentia como se o médico estivesse sentado sobre o meu peito. Não tinha forças para puxar o ar e encher os pulmões. Me queixei à equipe, disse que não conseguia respirar. Colocaram uma máscara de oxigênio sobre meu rosto. Me senti ligeiramente menos pior. Os médicos estavam ouvindo rádio, a narração do que parecia ser um jogo de futebol. Eu nem gosto de futebol; eu não queria que meu parto parecesse a coisa mais corriqueira da vida como pareceu a eles; mais um parto. Era o meu parto, mas ali, com dezenove anos, não tive qualquer ingerência sobre ele, sobre nada.

A única coisa sobre a qual pude opinar naquele momento foi sobre a beleza de um ser que acabara de ser parido. Quando retiraram a Ana de dentro de mim e a trouxeram para perto do meu rosto para que eu a visse, disse: “como ela é feia”. Eu disse a uma neonata coberta de sebo e sangue que ela era feia, tamanha a minha sordidez materna.

Quando me levaram para o quarto, fui orientada a não falar porque falar me daria gases; algo a ver com a anestesia. A vulnerabilidade começou por sequer conseguir me levantar da cama para ir ao banheiro. A enfermeira deixou no quarto uma “comadre”, um penico de aço inoxidável, que gelado no contato com a pele, me lembrou mais uma vez de que eu não tinha escolha. A anestesia passaria e eu sentiria dor. Eu sentiria dor e não poderia me recuperar dela descansando.

Eu havia acabado de passar por um processo de mitose e não era mais uma só; agora eu era duas e o buraco por onde saiu a segunda era grande, profundo e doía; mesmo assim, eu tinha que cuidar da segunda eu, da que saiu de mim, porque sem mim, ela sucumbiria. Às vezes é nessa hora que nasce a mãe porque ela enfia a sua dor física do corte de sete camadas de pele no cu pra começar o intensivo da maternidade em tempo real, com o segundo eu se esgoelando de fome porque é assim que é. A vida já nasce demandando porque se não demanda, morre.

Mas antes que começasse a chorar, ela estava calma. Foi assim que chegou no quarto. Estava limpa e vestida; tinha luvinhas nas mãos para proteger o rostinho das unhas afiadas e finas que tinha e que já haviam deixado inofensivos riscos naquela pelinha. Eu pude olhá-la com tranquilidade e me apaixonei imediatamente. Os hormônios fizeram o seu papel. Eu a achei linda! Fiquei embasbacada com a beleza dela; fiquei orgulhosa de mim mesma por ter feito uma filha bonita. Ela ainda estava amassada da viagem, ainda tinha “cara de joelho”, mas era o joelho que meu corpo havia produzido sem que eu tivesse qualquer controle sobre qual seria o seu grau de perfeição; e ela era perfeita.

Nos primeiros dias, andava curvada e o plano de manter o bebê no berço sempre que possível, logo passou para “ela vai dormir comigo na cama de solteiro porque dói demais levantar cinco vezes por madrugada”. Logo eu, que sempre tive o sono tão pesado, neurei com a possibilidade de dormir e esmagar minha filha durante a noite. O sono ficou leve, atento, vigilante.

Com mais de um mês do parto, minha barriga ainda parecia carregar um bebê dentro dela. Era o corpo se reacomodando. Ventre inchado e murcho ao mesmo tempo. Não tão pleno quanto aos nove meses, não tão plano quanto antes da gestação. Olhava para o espelho e não me reconhecia. Não era a Karla de antes da gravidez, tampouco a Karla grávida; era uma terceira: a Karla mãe recém-formada; mãe recém-nascida, saída da maternidade junto com o neném, com o segundo eu.

Depois da aflição com as mudanças na barriga que não me levariam a nenhum lugar visto que eram uma realidade imutável impressa no meu corpo, passei a notar mais meus seios que se tornaram fonte de alimento e saciedade do meu neném. Sempre tive os seios fartos, que produzindo leite ficaram ainda mais volumosos, com veias azuis protuberantes, mamilos mais escuros e maiores. Eu já tinha nutrido meu segundo eu dentro de mim, enquanto ainda éramos duas em uma. Agora meu corpo produzia alimento para fora, para garantir a existência do que já não fazia mais parte de mim, mas ainda era eu por extensão.

Ana mamava como um pequeno bezerro e gozava de satisfação revirando os olhinhos até desfalecer em meu braço. Eu gozava de satisfação de alimentar minha filha de mim. De ver que o humano sustenta a si mesmo de si mesmo; que eu a alimentava e me retroalimentava. Eu não sabia então, mas agora sei que me sentia invencível, me sentia como deus. Criando a vida e sendo capaz de sustentá-la. Apaixonada pela própria criação.

Minha libido se voltou inteira para mim fora de mim. Não me preocupei mais comigo. Era ela o foco. Eu era a mãe com a barriga meio murcha e cheia de estrias, a terceira versão de mim mesma, e ainda tinha só dezenove anos.

 

(Continua...)

 

 

 

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Sobre o Marte

 


Foi ontem e ontem eu estava sentindo tantas coisas e vendo tantas outras dentro da minha cabeça... cheguei a pensar em escrever, mas rapidamente desisti da ideia porque, como sempre, faz tempo que não escrevo e mesmo sabendo o tanto que você significa pra mim achei que não tivesse nada a dizer. Achei que estava oca; mas deve ser porque estou já que você ocupava tantos espaços na minha vida... como pode? Era só um gato, só que não. Era o Marte. Preto, lindo, corpulento. Meu nego, meu príncipe. Ontem à tarde, achava que via você pela casa, como uma sombrinha de amor.

Foram 13 anos. O gato preto viveu por 13 anos; será que isso quer dizer alguma coisa no mundo das superstições? Ele e a Marta são os animais mais longevos que tive até aqui. Eles cresceram junto com a Ana e junto comigo também porque naquela época eu tinha 26 anos e hoje tenho 39.

Pensar que não verei mais seus olhinhos semicerrados sobre a minha cama, que não verei mais as suas patinhas fininhas que sustentavam seu corpanzil macio desmunhecadas como se você fosse um urso fofo deitado no tapete da sala tomando o sol da manhã. Pensar nisso me faz querer não pensar que você existiu um dia. Pode parecer cruel, mas é só porque a dor está bem aqui no meio da minha cara. Vai passar e eu vou lembrar de você com todo o amor que merece ser lembrado.

“nossa, que gatão!”, “nunca vi um gato grande assim!”, era assim que se referiam a você. Cara de bravo, mas um doce. Era só não encostar na barriga. Sabe que eu tive a prova de que a vida continua mesmo quando ela para, no momento em que eu falava de você pra Thaís, aqui em casa. Falei sobre esperar até o final de semana pra ver como você reagiria, mas enquanto eu nutria alguma esperança sobre a sua volta, a veterinária tentava me ligar pra avisar que você tinha morrido.

Sim, você morreu. Ela disse que veio a óbito, mas acho essa expressão horrível. Técnica, de necrotério. Também não gosto de “faleceu”; parece que não exprime a morte na totalidade, no sentido finito que a palavra traz. Eu acho que a morte não deve ser suavizada na sua expressão porque ela não pode ser diferente do que é, infelizmente. Como não há retorno, quando ouvi a notícia no telefone imediatamente voltei a chorar porque já tinha passado o dia todo chorando por sua causa e a minha análise foi inteiramente dedicada a você algumas horas antes, quando a torneira se manteve aberta por quase uma hora inteira.

Como estava me esvaindo em lágrimas e calçando o tênis pra te encontrar, tua tia me abraçou tão forte que eu senti que se ela pudesse, tiraria de mim a dor e o sofrimento com a notícia. Senti meu corpo apertado, mas não adiantava. Pegamos trânsito por causa da véspera do feriado. Chegamos e a veterinária demorou uns minutos para aparecer e quando apareceu, queria decerto me dar alguma explicação, mas eu só queria ver meu filho. Nada do que ela falasse faria qualquer diferença, então só queria vê-lo.

Quando te trouxeram embrulhadinho em uma cobertinha branca, que nem um neném, na hora me lembrei do ditado que se espalhou nas redes sociais que diz que “se fosse pra não pegar gato no colo, deus não os teria feito do tamanho de bebês” e eu peguei o meu bebê velho no colo pela última vez. Já dava pra sentir que era disforme, que estava frio, mais pesado, todo molinho como se não houvesse nem um osso no corpinho, nada que segurasse sua cabecinha nem que tivesse força pra fechar seus olhos amarelos. Era você, mas você já tinha ido embora.

Na hora do almoço fiquei com você no meu colo por vinte minutos, enquanto se mantinha imóvel, dopado de remédios para dor, com as patinhas frias escondidas na minha mão direita e a cabecinha recostada no meu braço esquerdo. Você não ronronou, mas a energia que dá vida ao corpo ainda fazia parecer que tinha ossos e músculos por debaixo da pelagem já toda avacalhada; a lateral do corpinho e as duas patinhas dianteiras raspadas pra facilitar a aplicação dos remédios, do soro.

Eu não queria que você morresse sozinho no hospital, mas não pude evitar que esse fosse o seu fim e, por isso, peço perdão porque deve ser muito triste morrer sozinho em um hospital, mesmo pra um bichinho. Eu falhei com você, meu filho, mas ainda tentei dar alguma mostra de respeito por sua passagem tão maravilhosa por essa merda de mundo que, certamente, foi um pouco melhor porque você existiu.

Trouxe você pra casa. Queria que seus irmãos pudessem se despedir de você. Que pudessem sentir seu cheirinho por baixo do odor de hospital. Que pudessem sentir que você voltou, mas que já não estava mais aqui. Eles têm a lógica deles que certamente não condiz nada com a lógica que eu criei humanizando todos eles, humanizando seu corpinho como se houvesse algum tipo de consciência e que eu pudesse saber o que você estava pensando mesmo depois de não existir mais.

Eu tirei fotos de você dentro da caixa em que veio porque quero criar novas tradições que são muito velhas. As pessoas faziam isso até o início do século XX, quando em algum ponto desses cem anos decidiram tirar a morte de casa e nos afastar dela. Você morreu no hospital, mas voltou pra casa porque é a sua casa o último lugar em que você vai estar – mesmo não sendo, porque o último lugar é a geladeira do crematório para depois ir ao forno do crematório e virar cinzas. As cinzas serão trazidas para casa, então aqui realmente será a última parada.

Veja, você vai morar em uma vitrine de medicamentos junto com seus outros irmãos, Raquete e Pretinha. Acho que não posso continuar colocando cacarecos lá dentro porque em algum momento haverá mais urnas lá. Até a minha, receio.

Tirei fotos, coloquei sobra a sua pancinha flácida uma florzinha que a Thaís trouxe pra mim; foi muito propícia e significativa. Ontem, até rezei pra São Francisco de Assis mesmo sendo ateia; achei que mal não faria. Uma das partes da oração dizia sobre “ajudar a nossa batalha, eliminando as enfermidades e o sofrimento deste animal”. Parece que a oração fez efeito porque você não está mais sofrendo.

Eu senti seu cheirinho no meu quarto o dia todo e estou tentando me distrair pra não pensar que agora você só existe aqui dentro, mas vai continuar existindo enquanto eu me lembrar e eu nunca vou me esquecer.

Quando a gatinha do namorado da Ana e dela morreu, eles ficaram muitíssimo tristes e eu disse a ela que os bichinhos não vivem tanto quanto nós porque, se vivessem, não teríamos a chance de ter tantos deles. O raciocínio é que depois que um bichinho morre a gente abre vaga para que outro entre em nossa vida; só que isso não é uma substituição do animalzinho anterior, é a escala de amor aumentando desde que o primeiro deles entrou na nossa vida. É uma oportunidade de experimentar o amor incondicional de um animalzinho e, pensando só no amor, esquecemos de que eles terão uma vida mais curta do que a nossa e de que nossos corações serão quebrados em mil pedaços quando a hora chega, mas que depois tudo será colado de novo, com amor e pelos no meio das rachaduras, assim que um novo gatinho adentra as nossas vidas.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

sobre o trabalho

a melhor forma de começar é dizendo que não gosto de trabalhar. não gosto de ser obrigada a cumprir uma função em troca de ter dinheiro para poder manter a minha vida. não acho que o trabalho enobrece ou dignifica ninguém; não acho que o trabalho liberta; não acho que o que me falta é encontrar algo que eu ame fazer para que, então, eu ame o meu trabalho.

a gente nasce dentro de um sistema econômico que tomamos de maneira naturalizada e que, junto de preceitos religiosos, nos fazem acreditar que é normal e esperado que gastemos metade das nossas vidas trabalhando para poder ter uma existência minimamente digna. veja, estou falando isso do alto do meu emprego como servidora pública, estável, que recebe um salário razoável frente a, sei lá, 80% da população brasileira. do conforto da minha casa, fazendo, às vezes, mais do que três refeições diárias, tendo acesso à análise e a um plano de saúde, morando a menos de dois quilômetros do lugar em que trabalho, eu digo que não gosto de trabalhar.

eu vou, faço o que tem de ser feito, cumpro minhas funções, atendo às minhas demandas, recebo meu salário por isso e não espero ter nenhum tipo de realização profissional porque eu não gosto de trabalhar. meu trabalho é apenas o meio pelo qual eu posso manter a minha vida para fazer as coisas que eu quero fazer, o que inclui pouca coisa, como dormir, me alienar nas redes sociais, assistir um filme ou uma série ou fazer absolutamente nada. eu gosto de fazer nada, eu gosto de não ter compromissos, obrigações, atividades programadas. eu gosto de fazer nada e não gosto de trabalhar.

e escrevo isso sem nenhum tipo de vergonha por assumir que não gosto de ser sobrecarregada, que não gosto de ter mil missões pra cumprir, que não gosto do esquema escroto de produtividade que o neoliberalismo joga na roda como se o que medisse o seu valor como pessoa fosse não só o quanto você ganha, mas o quanto você trabalha; se bem que... opa! não, o que importa realmente é só o quanto você ganha porque se importasse o quanto você trabalha, qualquer repositor de estoque do mercado e qualquer uber seriam supervalorizados por todo o trabalho que executam.

podendo soar hipócrita, de cima da minha cama, no dia do trabalhadoR e não do trabalho, eu digo que é absolutamente injusto que eu viva da forma que eu vivo enquanto a esmagadora maioria da população não teve, não tem e não terá a maior parte das oportunidades que eu tive, a despeito de todas as dificuldades pelas quais eu possa ter passado. e não acho que se trate de mérito; eu não tenho mais mérito do que uma mulher que viva em qualquer periferia porque eu me "esforcei" mais do que ela; a gente simplesmente não saiu do mesmo lugar pra poder fazer esse tipo de comparação esdrúxula.

eu não acho que eu mereço mais o que eu tenho do que qualquer outra pessoa que não tenha nada e me entristece muito saber que a realidade é essa e que a gente não tem como fugir dela. você só consegue “fugir” do sistema se você, olha só, tiver dinheiro pra criar as suas próprias regras, mas daí você já está dentro dele. E quando você está dentro, é muito fácil falar que “quem quer dá um jeito, quem não quer arranja desculpa”. Pra casa de satanás com esse papo!

no ano passado, me aproximei das ideias do comunismo e realmente acho que ele seja o mundo ideal. um mundo em que os meios de produção fossem geridos pela classe trabalhadora e no qual todas as pessoas tivessem acesso ao mínimo necessário para uma vida digna. Que todos tivessem casa, comida e trabalho, mas não um trabalho que os consumisse e os tornasse escravos, um trabalho que fosse apenas o suficiente para manter uma pequena parcela do "todo social" funcionando, que as pessoas fossem remuneradas por isso, e que pudessem viver suas vidas em uma plenitude que não se resumisse a guardar dinheiro e ter mais coisas. 

que as pessoas pudessem ser reconhecidas por seus talentos e habilidades e até mesmo por sua mediocridade, porque ninguém precisa se provar o tempo todo pra valer alguma coisa; pelo menos eu acho que não deveria ser assim. vejam, estou tirando todo esse idealismo diretamente do meu cu e sem nenhum tipo de embasamento teórico, porque apesar do interesse que manifestei pelas ideias comunistas, eu nada li a respeito e ainda assim concordo 100% com a ideia de revolução, com a ideia de expropriação dos meios de produção.

o mundo não precisa de bilionários arrombados; o mundo precisa de trabalhadores organizados. quanto mais o capitalismo nos faz acreditar que o bom é ser empreendedor - quando na verdade você só está abrindo mão de direitos trabalhistas e se submetendo a cargas de trabalho cada vez mais extenuantes e ganhos cada vez menores -, mais acreditamos que o bom é trabalhar enquanto os outros dormem e ter crises de pânico, de ansiedade, sensação de fracasso e por aí vai porque, afinal de contas, todo mundo conhece o caso do fulano que enriqueceu do zero porque se esforçou pra caralho, porque teve foco, força e fé e quando você vai ver o cara era só um filho da puta que criou um esquema de pirâmide e arrancou milhões de gente que anseia ficar rica sem ter trabalho; e dá pra culpá-las? 

acho que elas não gostam de trabalhar, como eu =), mas não acho que por isso elas devam se foder e ser roubadas por bandidos que se aproveitam da ingenuidade ou mesmo da burrice dessas pessoas. o problema não está nelas. o problema está nelas acharem realmente que um dia ficarão tão ricas que não precisarão mais trabalhar e nem se preocupar com o futuro. todo mundo que quer ganhar muito dinheiro, quer isso porque quer poder ter condições de aproveitar a vida porque sabe que ela não deveria se resumir a trabalhar para não morrer de fome e simplesmente não existir a opção de não trabalhar; a vida deveria ser uma experiência rica pra todos, não só pra quem pode pagar por ela.

dito isso, vamos ao básico do que eu aprendi assistindo a muitos vídeos de camaradas comunistas (já tô me achando a militante, mesmo sem nunca ter me organizado). quem produz toda a riqueza que nós vemos por aí é a classe trabalhadora. qual riqueza? - você pode me perguntar - riqueza não é tipo dinheiro? veja, no caso a riqueza à qual me refiro é absolutamente tudo que existe ao nosso redor. da casa onde você mora, à roupa que você veste, passando pela comida que você come e o telefone que você usa, tudo, absolutamente tudo isso eu chamo de riqueza (que me perdoem os teóricos porque provavelmente eu esteja usando o conceito de maneira talvez desvirtuada, mas eu tenho um ponto).

então, essa bagulhada toda é riqueza e riqueza produzida pela classe trabalhadora. você acha que foi a dona Mag****ne Luiça que construiu a primeira loja da marca? que projetou, minerou, produziu, encaixotou, transportou e vendeu o primeiro alfinete da loja dela? e isso se aplica a qualquer outra mercadoria ou bem durável/não durável. por mais que a gente escute que "se o Elão Nusk não tivesse tido a genial ideia da porra do carro elétrico, ele nunca poderia ter sido feito", pois bela bosta ele ter a ideia, ele poderia ter as ideias mais geniais da face da terra; ainda assim, ele é só uma alma sebosa no planeta e, sozinho, ele nunca poderia ter feito o carro elétrico. o carro dele é produzido a partir de uma longuíssima cadeia de produção, que começa lá na casa do caralho, com trabalhadores muito especializados e precarizados trabalhando em minas de ferro, de lítio e essas coisas todas. pensa só em quantas centenas, senão milhares de pessoas, fazem parte dessa rede até que o carro esteja acabado e cheiroso na concessionária, pronto pra se dirigir sozinho, bater numa árvore, explodir, matar seus ocupantes e ouvir do corno do dono da empresa que o problema eram as pessoas que ocupavam o carro e não o carro em si, apesar de esses acidentes acontecerem com frequência...

isso é só um exemplo de que o carro não foi produzido pelo bilionário cuzão; ele foi produzidos por todos esses trabalhadores que, mesmo consumindo valiosas horas na labuta, deixando de estar com seus familiares ou coçando o saco simplesmente porque poderiam, estão ali, sendo mal remunerados e enchendo o cu do dono do tuinter de dinheiro; dinheiro que ele não daria conta de gastar nem que quisesse porque são muitos bilhões e que ele sequer trabalhou para acumular - ele “ganhou” esse dinheiro explorando a mão de obra dessas pessoas.

“ah, mas se ele não tivesse investido, essas pessoas não teriam emprego...”, sim, se ele não tivesse investido, ele não teria o carro elétrico. Ele não faz um favor ao pagar esses trabalhadores, pois são esses trabalhadores que propiciam a concretização do projeto genial desse cara. “ah, mas se você ganha pouco, o capitalismo te dá a opção de procurar outro emprego”. Claro, é sempre uma opção largar um subemprego, que às vezes não garante nem o mercado do mês pra conseguir outra “excelente” vaga, que talvez fique mais uma hora de distância da casa da pessoa, que talvez exija que ela seja PJ, que não pague horas extras, mas que a pessoa ganhe 200 reais a mais. Vai ter corno aí dizendo que com esse “aumento” já dava até pra investir em ações, hein!

A gente precisa ter o mínimo de autocrítica pra saber que o fato de termos uma casa financiada, um jeep renegade, um iphone 13 e meia dúzia de idas à Disney não tornam ninguém rico. Se liga, porra! Mesmo que você tenha uma “empresa”, se ache o patrão, me conta aí, se você parar de trabalhar hoje, por quanto tempo você consegue manter o padrão de que vida que tem? Já diz o sábio professor Alysson Mascaro (muitíssimo recomendado), você é só um pobre premium. Mesmo que ganhe 10, 20, 50 mil por mês; se você recebe salário, então deveria estar na hora de você se mobilizar.

“ah, mas não tem como mudar a realidade, sempre foi assim, vou cuidar do meu e foda-se o coletivo!” é, colega, realmente é muito fácil olhar só pro próprio rabo quando o sistema está a todo momento querendo enfiar uma trolha enorme no nosso cu, mas se você está lendo isso, são grandes as chances de que você tenha mais do que a maior parte da população tem e isso é desumano.

Eu sei que o comunismo não tem o objetivo de fazer justiça social, tem o objetivo de tomar os meios de produção – que não são a porra do seu carro, nem a sua casa de praia, Enzo, fica sossegado! – e instituir a ditadura do proletariado, que somos quase todos nós. Mesmo não sendo o fim a justiça social, acaba que ela se dá quando todas as pessoas têm casa, comida, educação, saúde, emprego, lazer e tempo de qualidade sem precisar ser expoliado por um trabalho, sem precisar ser aficcionado pela ideia de ficar rico e acumular coisas.

Eu sei que pode parecer impensável uma realidade diferente da que vivemos, mas se toda essa massa de pessoas se unisse com esse objetivo, não seriam alguns milhares de bilionários que nos parariam. Eu sei que é difícil acreditar que o capitalismo não existia até algum tempo atrás, porque haverá gente dizendo que Adão e Ivo já eram capitalistas e investiam na bolsa do paraíso.

Ainda assim, eu vejo que o desemprego despencaria se as cargas de trabalho fossem reduzidas, mais ou menos assim, de acordo com o curso de economia em que me graduei na UNICU. vejam: se antes, uma vaga era ocupada por uma pessoa que trabalha 8h, ela poderia ser ocupada por duas pessoas trabalhando 4h e sem redução de salário! "ah, mas de onde vai sair o dinheiro, Karla?" do lucro da empresa, caralho! as empresas não deveriam existir pra dar lucro pros donos; elas deveriam existir para garantir que a sociedade pudesse suprir a sua demanda pelo serviço/produto que ela oferta, garantindo meios de vida dignos para os seus trabalhadores. Agora imaginem isso em larga escala...

Imagina poder trabalhar apenas 4h diárias e ter meios o bastante para prover a sua vida e, olha que absurdo, ainda poder vivê-la de verdade! Se você quisesse trabalhar mais, você poderia, mas não seria necessário. Você poderia cuidar do jardim, ficar com a família, beber com os amigos no bar, ler um livro, tricotar, fazer um passeio, dormir, fazer a porra que você quisesse fazer sem pensar que está devendo o cartão de crédito, o financiamento da casa, o tratamento de saúde da sua vó. Sem se preocupar com o seu trabalho porque ele fica lá no prédio em que você trabalha e você não precisa carregá-lo para todos os lados; sem precisar pensar em produtividade porque você viveria uma realidade em que é uma pessoa, com individualidade e desejos e não uma peça de engrenagem que é totalmente substituível e que só serve para encher o rabo de uns poucos com dinheiro. Fora toda questão ambiental, caso não vivêssemos de explorar os recursos naturais indefinidamente e a qualquer custo.

Pode ser utópico? Pode sim, mas se isso aqui tiver servido minimamente para que alguém coloque em dúvida uma crença cristalizada, e se questione sobre qualquer tipo de possibilidade para além do que está dado, já terá valido.

Trabalhadores do mundo, uni-vos!

 


sábado, 25 de fevereiro de 2023

sobre ser matéria de si mesma

na universidade, aflorou-se meu espírito escritor. primeiro com textos curtos e escatológicos, depois com desabafos existenciais aqui mesmo, neste blog, quando ele foi criado.

é importante dizer que o momento em que fui uma leitora mais voraz em minha vida foi no início da adolescência, entre os 11 e os 12 anos. naquela época, eu lia 50 páginas por noite dos romances espíritas que minha mãe comprava. aquela papagaiada toda foi como as histórias da Cinderela e da Branca de Neve, com muitos toques de reencarnações e vida de princesa intercalada com pobreza e doenças. essas histórias eram realmente ricas! uma hora você era uma menina desgraçada e tuberculosa à beira da morte, na outra você estava de camarote relembrando vidas passadas em que foi uma cigana ou uma nobre rica e invejada. havia também vinganças, assassinatos... a galera pagava pelos seus pecados e eu me divertia com tudo aquilo, introjetando no inconsciente que todas as merdas que nos acontecem têm razão de ser, mas que se formos bons, tudo dá certo no final. ahammm.

falo isso porque, tirando esse tempo em que a leitura era puro prazer, na universidade e depois dela, não voltei a ler muito. eu lia os textos das disciplinas; lia os livros que era mandada ler, mas meio que era isso, não ia além, não sentia tesão em ler, não sei se porque minha vida estava passando por mudanças profundas naquele momento ou porque eu era apenas uma vagabunda, uma fraude ou simplesmente a aluna de letras que menos leu em toda a história apenas porque não estava a fim.

no mestrado eu li muito, li bastante, mas nada que fosse de fruição. (nota mental escrita: escrever sobre como foi o mestrado. resumo para o leitor: foi um inferno do caralho)

nunca saberemos... na época eu não sabia, mas hoje sei por que não leio muito (no ano passado foram apenas dois livros inteiros, a metade de mais um e meia dúzia de páginas de um terceiro), porque sou viciada em redes sociais e podcasts. minha vida é basicamente estar abduzida pela porra de um retângulo de plástico e vidro que está acabando com a minha sanidade mental e com qualquer vontade de viver uma realidade que não me dá pulsos de dopamina a cada milésimo de segundo, o que torna a minha existência e qualquer tipo de leitura uma tarefa árdua e desinteressante. - ainda assim, tô trabalhando nisso; na leitura e em formas de tornar a existência mais interessante. lembre-se de que às vezes o escritor carrega nas tintas para melhores efeitos literários. é tudo mentira, ou não.

de igual maneira, o smartphone e o meu descontrole em relação a ele acabam com qualquer traço de criatividade que possa haver para eu escrever. me sinto burra, vazia, murcha, acabada. por passar tanto tempo no telefone e ouvindo alguma coisa a todo momento - tenho ficado cada vez menos em silêncio comigo mesma -, minha vida parece um looping de nada com porra nenhuma. todos os dias são muito parecidos e isso não é um problema em si, já que o resumão da vida é que ela é essa merda mesmo, o problema é que não tenho tido nem a sensibilidade de perceber a minha merda particular sobre a qual sempre gostei de escrever a respeito.

eu sempre fui meu melhor e único assunto, do modo mais narcisista e aberto que consigo ser porque quando escrevo sobre mim, lá no fundo sei que também escrevo sobre você, sobre nós, sobre como pode ser difícil e também divertido estar vivo; estar aqui, escrevendo e reclamando, escrevendo e abrindo, escrevendo e expondo porque eu sei que não sou a senhora diferentona. admite aí também que às vezes é foda, que você se sente um bosta sem qualquer controle sobre a sua vida... e descambamos pra bad vibe... desculpa, é o meu jeitinho. amanhã já é hoje e hoje é sábado! dia de ficar no telefone sem peso na consciência porque é pra isso que servem os finais de semana, pra gente se anestesiar de todo o resto. parece que vai dar praia!

sobre metatextos

sabe aquela coisa em que você é muito bom e que você gosta muito de fazer? aquele "talento" especial, aquele "dom"? Pois é, também não sei. não nasci com ele. a coisa com a qual mais me identifico e sinto prazer em fazer é escrever, mas nem de longe isso quer dizer que as palavras jorrem pelos meus dedos. eu não sou como os escritores iluminados que, com cinco anos já escreviam suas primeiras palavras, com 12 já tinham escrito várias historinhas e com 17 já tinha ganhado um concurso de contos. "ah, a escrita sempre esteve na minha vida...". na minha, não.

não é como se eu fosse um prodígio, mas não tinha dificuldades para me expressar. mentira, a palavra não é bem expressar, está mais para facilidade de falar diante de muitas pessoas. eu não tinha vergonha, mas isso não tem a ver com a escrita, só que tem, sim. acho que escrevia bem só porque escrevia como falava, e não me refiro ao tipo de linguagem empregada, mas à fluidez do texto.

acho que começar a escrever mesmo, só comecei no terceiro ano do ensino médio. naquela época, tínhamos uma aula que era voltada para redação, aquela do vestibular. toda semana, deveríamos escrever uma sobre os temas que a professora indicava. eu nunca sabia o que escrever nessas redações. minha tática era a de começar falando sobre a necessidade de escrever um texto a respeito do tema x ou y. floreava, não aprofundava, era perfeito na época e parece que funciona ainda hoje.

De algum jeito essa tosquice me norteava; era como virar a chave na ignição e, de repente, eu estava dirigindo sem saber muito bem para onde, mas costumava dar certo. na época em que eu fiz o enem, em 2001, nós recebíamos uma cartinha que mostrava o nosso desempenho em todas as disciplinas e na redação. as minhas notas, no geral, ficaram no patamar da mediocridade e tudo bem, mas a nota da redação era bem acima da média geral; foi ali que eu percebi que era boa em alguma coisa sem fazer muita força pra isso.

de toda forma, não escrevia regularmente; não era um hábito. no começo da adolescência tive um diário, no qual escrevia eventualmente. acho que na época das agendas eu fazia algumas delas de diário também, mas nunca foi uma constante. escrever era só algo fácil de fazer quando precisava ser feito, até que entrei na universidade - de letras! 

(abre-se aqui um grande parêntese para explicar que a minha escolha não foi um "chamado" nem nada parecido. levando em conta que não me sentia confiante para prestar um novo vestibular depois de ficar mais de um ano sem estudar qualquer coisa, fiz letras porque era o curso mais barato da universidade, o que eu poderia pagar, e sem a necessidade de fazer uma prova, visto que consegui entrar pelo meu histórico escolar. na época, eu tinha 20 anos e uma filha de um ano e pouco e uma rede de apoio que me permitia assistir às aulas nas quintas e sextas-feiras à noite e nos sábados, de manhã e à tarde - o curso tinha uma grade de horários diferente de todos os outros daquele lugar)

... como eu ia dizendo, quando eu comecei a cursar letras, houve a oferta de uma oficina de produção textual na qual me inscrevi. no primeiro dia, escrevemos um texto cujo tema não me recordo, mas no final da aula, a professora me chamou e disse que eu não precisava fazer aquela oficina porque já escrevia muito bem. mais uma vez, me senti encaixada e parecia que eu pertencia ao texto, ao meu texto, a mim mesma.

obrigada, Enem; obrigada, professora Mônica, por terem sido os primeiros incentivadores desta que vos escreve.

continua...