Eu não sei dizer exatamente o que me levou para aquele peso; provavelmente não se tratou de um único fato, acho que foi uma somatória de coisas que envolviam uma mãe muito jovem, mudanças repentinas na vida, um namoro que trazia sensação de conforto, muita comida, pouco movimento, novos traumas sendo causados e antigos traumas sendo revirados, uma graduação e o cuidado com uma filha pequena. Nessa época, eu não trabalhava; não precisava trabalhar e mesmo assim, me sentia consumida, mas só entendi isso recentemente.
Para além de todos esses fatos, hoje, encontro uma
explicação que faz sentido para mim. Durante todo o período em que a Ana mamou
em meu peito – eu não me dava conta na época –, ela era totalmente minha,
totalmente dependente dos meus cuidados. Eu era como uma deusa, lembra? Apesar do
cansaço, apesar de viver desgrenhada, apesar de achar meu corpo horroroso,
apesar de não me reconhecer, apesar de não ter tempo, apesar de tudo tudo tudo,
eu tinha ali um pequeno ser gerado por mim, crescido de mim, nutrido por mim e
isso é muito poderoso. Enquanto ela mamava, eu estava só um pouco acima do
peso, uns quatro quilos, nada demais. Depois que a amamentação cessou e que eu
passei a ser a mãe de uma bebê que comia comida, que não se alimentava mais de
mim, acho que – inconscientemente – comecei a comer mais para tentar suprir o
vazio de não ser mais a deusa, a fonte de nutrição. Eu comia na tentativa de preencher
novamente o ventre flácido, de dar a ele forma, de fazê-lo crescer outra vez,
para me dar a sensação de que eu estava grávida, plena, recheada com uma vida
que dependesse de mim de novo. E assim, comendo comida, retomei o peso do final
da gravidez, ainda com um acréscimo. Eu não estava gestando um novo bebê; eu
estava preenchida de gordura e cocô, comendo todas as minhas angústias e as ambivalências
que me faziam sentir muito foda, sem saber, e de ter toda a ciência de que me
sentia um lixo.
Talvez todo o excesso de peso tenha sido a forma que meu
corpo encontrou de enganar meu inconsciente para que ele ainda acreditasse que
era tão incrível quanto no período em que gestou e nutriu e teve a maior
sensação de potência que poderia ter em qualquer tempo da vida. A questão é que
eu não pensava nisso naquele momento; eu não pensava em nada. Eu só era
arrastada pelas demandas todas da minha existência, que iam me levando sem que
eu soubesse para onde estava indo ou por onde passaria.
Na maior parte do tempo, não me percebia maior, mas quando
tirava fotos, me via enorme, disforme, envelhecida; não sabia quem era aquela
pessoa, me sentia um fracasso. Meus humores se alternavam entre me achar gorda
e achar que precisava emagrecer, e a certeza de que emagrecer seria impossível
e, então, aliviava a angústia com mais comida gostosa, compensando os anos de
moedas contadas. Durante todo esse período houve momentos em que fiz dietas
malucas, restritas, mas que duravam pouco, e outros em que eu só comia. Nunca comi
compulsivamente, mas me alimentava muito mal, me nutria pouco e quase nunca me
movimentava. O ciclo era retroalimentado diariamente: comida, culpa, inércia, ansiedade,
comida...
Não quero que isso seja uma ode a nada, mas eu estava gorda
e infeliz e sequer me dava conta de como me sentia de verdade; só ia levando. Não
quero também que a maternidade seja a protagonista do que escrevo. Quero escrever
acerca do que gerar fez comigo, com meu corpo, e como me afetou em relação a
quem eu era antes de engravidar e depois de ter me tornado mãe. Como eu me
enxergava antes e como essa compreensão foi sendo revista, editada e elaborada
ao longo de todos esses anos.
A onda de feminismo e de aceitação do corpo foi um evento
bem mais recente na minha vida, coisa de sei lá, dez anos para cá, e foi um dos
motivos mais importantes para que eu pudesse me enxergar em outras mulheres
comuns, para que conseguisse ver beleza nelas e daí percebesse que eu também era
bonita. Sentia-me segura. Não tinha vergonha do meu corpo, mas não me sentia
confortável nele. A princípio, eu o via, mas não me via nele; mais tarde, eu me
reconheci tanto naquele corpo que me habituei a ele, a ponto de aceitá-lo, em
termos.
O feminismo me ajudou muito com isso, mas nem ele foi capaz
de me salvar das arapucas do patriarcado. Me relacionei com muitas pessoas e
até me casei, assim, de papel passado, com um homem que quis ficar comigo, que
me escolheu – em uma fase na qual eu ainda tinha o sonho dourado do casamento e
de todas as idiotices que os filmes americanos e as novelas nos fazem
acreditar. Pensei que não poderia abrir mão da proposta porque aquilo era uma
oportunidade (!), uma chance de mostrar para o mundo e para mim mesma que eu era
digna de ser amada, apesar de gorda e com a barriga feia (sempre carregando o
peso daquela barriga comigo). Conseguem perceber aqui as ambivalências?
O casamento não deu certo por inúmeras razões e se
transformou em outra coisa: família por escolha – a relação de amizade é muito mais
feliz. Fato é que depois do matrimônio, voltei a me relacionar com homens com
os quais me sentia ainda mais livre. Eu transava com a luz acesa, usava biquínis
de fio-dental, tomava banhos de mar pelada. Eu não me importava com o que
pensavam de mim; se me tomariam como uma mulher sem noção do ridículo ou se
fariam qualquer outro juízo parecido. A sensação era ótima, tanto que escrevi a
respeito e postei uma foto minha pelada aqui -> sobre o corpo e era genuína a maneira que me sentia naquele momento, mas ela continuou se
modificando.
Retomando a linha do tempo, dos
meus dezenove anos para o ano da foto que acabei de mencionar, passaram-se
dezessete, a idade da filha adolescente, que queria se distanciar de mim a todo
custo para que pudesse se ver sem que eu fosse uma sombra de projeções sobre
ela. Eu era a mãe culpada – como todas as outras –, que tinha receio de ser
rejeitada pela filha, que deixava limites serem extrapolados por medo e que
depois tentava recolocá-los de maneira tirânica. Era a mãe onerada, descompensada,
perdida, que se via em fim de linha quanto ao que fazer, como agir, como ser
mãe? Como não errar? Como acertar sempre? Como não traumatizar? Como eu poderia
querer tanto em relação ao segundo eu que, finalmente, eu havia entendido, pela
dor, que era um outro? De vontade independente e diversa. Eu mal sabia de mim,
juro. Nesse ínterim, nós duas, juntas e mesmo separadas, éramos uma grande amálgama
de angústias, desejos, frustrações e ânsias.
(continua...)