Uma palpitação. O coração bate de um jeito que quase sobe ao céu da boca e depois desce até o estômago. Ali, ele se encharca com suco gástrico e quando sobe ao céu da boca de novo, deixa no caminho da goela o sabor do vômito que sai num diminuto arroto. Depois que sai o ar azedo, entra o ar queimando o esôfago, uma azia que esquenta o tubo enquanto o peito todo gela. O coração sobe e desce, para cima e para baixo, para dentro e para fora e consigo ver uma mão, minha mão, revirando minhas vísceras mais dentro, dentro, num dentro que não chega nunca no fora. Só mais carne, só mais agonia, só mais angústia revirada, só medo irracional disfarçado de mal-estar, o corpo traduzindo em si o que a cabeça não é capaz de expressar em palavras; ai, aí a gente sente. Uma hora o coração para de subir e descer para cima e para baixo, ele só fica subindo para dentro e para fora, entalado na boca do estômago. O coração fica ali, tum tum, tum tum, tum tum, evitando a passagem de ar, engasgando a massa toda, ocupando lugar que não lhe cabe. Tum tum, tum tum, tum tum e o corpo todo tilinta. Daí sinto que quero morrer. Faz tempo que não digo que quero morrer. Eu acordava todos os dias com uma vontade bem pequenininha de morrer porque viver dói, mas eu tava bem, juro que tava. Eu tava fazendo tudo para que o meu corpo não se sentisse afogado pelo meu coração descompassado, e parecia que a ordem e a repetição me contornavam com sentido, com o sentido que eu podia escolher dar pra minha existência. Acontece que, às vezes, é como se esse sentido fosse um balão muito bonito e cheio e a vida furasse ele com uma agulhinha fininha, ele vai se esvaziando e, quando eu percebo, ele se esvaziou e o sentido foi todo embora, o sentido que eu coloquei lá dentro com o ar dos meus pulmões asmáticos foi-se embora e eu preciso de um novo balão. Preciso enchê-lo com todo o ar e as coisas em que eu acredito.
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
sábado, 12 de julho de 2025
sobre as coisas que não sabemos que sabemos
semanas atrás tive um sonho do qual não me esqueci. sonho quase todas as noites; me lembro com frequência do que sonho e gosto de pensar nos meus sonhos. ainda assim, deixo que eles evanesçam do consciente com uma rapidez que me incomoda porque a bem da verdade não é que eu deixe, é que eles se vão sem meu consentimento e acho que aceito porque, por mais que eles pareçam ter desaparecido para sempre, sei que ainda estão em algum canto do meu cérebro, perdidos em alguma dobra da massa encefálica. não é engraçado pensar que um sonho, algo tão infinitamente possível e grande e sem bordas ou limites imaginativos é criado por uma massa mole que lembra um flan?
não é curioso pensar que qualquer possibilidade de abstração só é possível porque existe um peça física que permite isso?
no sonho de semanas atrás, o cenário era este: uma espécie de sala de reuniões com uma atmosfera setentista, com vários homens (uns seis ou sete) sentados em torno de um mesa na qual conversavam. eles falavam sobre assuntos diversos mas que eram totalmente impalpáveis para mim, na minha realidade acordada. eu não me lembro quais eram os temas dos debates, mas era algo como física nuclear ou filosofia kantiana. coisas que eu sequer acredito ter capacidade cognitiva para entender e, ali dentro do sonho, eu continuava não entendendo, mas eles sabiam exatamente do que estavam falando.
ocorre que eu só me dava conta de que eles faziam parte do meu sonho quando eu parei de vê-los como se os tivesse assistindo por uma televisão, e de repente me vejo levantando uma pesada cortina vermelha de veludo e os descortino para mim mesma, como se os assistisse então ao vivo.
quando os vejo frente a mim, percebo que estou sonhando, percebo que eles fazem parte do meu sonho, percebo que esse homens incrivelmente inteligentes na verdade sou eu. eles estão dentro da minha cabeça e o que eles estão falando e discutindo são assuntos que estão dentro da minha cabeça, ou seja, eu sei exatamente do que eles estão falando porque eles sou eu.
eles estão dentro de mim e então percebo que sei de coisas que nunca imaginei que poderia saber. me dou conta de que sou capaz de compreender para além do que imaginava, me surpreendo ao descobrir que não sabia de algo que sempre soube, pois mesmo quando acreditava não saber, apenas ignorava o que sempre esteve ali. bem, não sempre porque sempre é tempo demais, mas ignorava um conhecimento que sequer imaginava possível de fazer parte do meu repertório, mesmo que ele já estivesse ali desde não sei quando.
esse sonho me deu uma sensação de vigor, de tesão por mim mesma que não sentia há tempos. me lembrou de todo o infinito que carrego comigo e que pouco acesso, mas que aqui está, escondido entre os espaços das palavras que escrevo e das palavras que fogem de mim enquanto os dedos teclam as teclas do teclado fazendo tlec tlec tlec. o que tem no meio de tudo isso? o que me escondo de mim mesma e só me permito ver se for fantasiado de algo que não sou eu?, quando tudo o que penso e que escondo sou eu e não sou. do que falo só se revela o que é pequeníssima parte do todo que é muito mais, mas que é indizível, fortuito, indescritível, mas sonhável.
vou dormir.
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Sobre os ruídos de dentro
Ouço os ruídos que minha garganta produz, enxergo-os como fios de ondas de uma rádio mal sintonizada. Vejo esses fios na minha goela escura, na boca fechada, nos meus recônditos de carne cor de rosa. Me incomoda o som que fica entre meu cérebro e o resto de meu corpo. Entre mim que me escuto e o corpo que age à revelia da minha vontade. Me irrito com o sibilo. Acendo a luz, vejo a bombinha na mesa de cabeceira à minha esquerda, agito-a, tiro a sua tampa. Abro a boca e deixo que a luz entre por ela. O som que a bombinha faz entra pela mucosa e chega às ondas desalinhadas. Eu tiro a pequena bombinha de seu suporte. Vejo que está vencida há pouco mais de um mês; encaixo-a e chacoalho novamente, percebo que há ainda muito ar comprimido ali dentro. Não fora usada com frequência ultimamente. Isso é bom? Sugo mais uma dose. Prendo o ar. Conto lentamente até dez e, quando expiro, percebo que as linhas confusas se desfizeram. Penso nas primeiras frases do que escrevi aqui. Preciso escrevê-las só para ter certeza de que ainda consigo respirar, de que não me esqueci como é que se faz, mesmo quando parece que o corpo desaprende o que parece que sempre soube.
01h26
segunda-feira, 10 de março de 2025
sobre a musculação
eu disse que tinha que fazer musculação, né? isso quereria dizer que eu precisaria frequentar uma academia. a questão é que eu era avessa a esse tipo de ambiente. eu abracei tanto a fase da autoaceitação que achava que movimentos que fizessem meu corpo mudar eram uma traição a todo esse trabalho. a academia era o lugar para os superficiais, para as pessoas que só se importavam com o espelho – eu sempre amei olhar para o meu reflexo –, e não percebia que o fato de as pessoas estarem tão ensimesmadas poderia ser um ponto favorável, uma vez que ninguém prestaria atenção em mim. o primeiro passo foi aceitar que eu precisaria educar meu corpo, a mente precisaria colocar o corpo pra trabalhar e isso era uma decisão consciente.
ocorre que
a mente é safada e ela sempre acaba inventando desculpas para que qualquer
atividade incômoda seja procrastinada, adiada, postergada. se eu me inscrevesse
em uma academia na qual eu pudesse ir a qualquer hora, a hora em que eu fosse
seria assim: num dia a contragosto, eu iria com cara de cu, faria os exercícios
prescritos por quem estivesse lá e iria embora; depois de 24 horas o ácido
lático começaria a agir no meu corpo e eu sentiria dores musculares que fariam
parecer que eu fui atropelada por um patinete elétrico e eu nunca mais
voltaria, apesar de já ter pago o mês inteiro.
para
evitar esse tipo de situação, decidi por me inscrever em uma pequena academia
que, de tão pequena, não permite que todos os seus inscritos a frequentem
quando bem entendem; você vai no horário marcado, em que o professor vai
atender você e mais quatro pessoas ao mesmo tempo. como eu não tinha dinheiro
para pagar um personal trainer, essa me pareceu uma excelente opção. se eu não
fosse no horário combinado, perderia aquele dia. a academia também oferecia
pilates, que era algo que eu gostava de já ter feito antes. consegui agendar a
musculação três dias por semana – segunda, quarta e sexta-feira – e um dia o
pilates, às quintas. decidi começar dia sim, dia não na musculação, para que
não tivesse o ímpeto de desistir de cara, caso me aloprasse com exercícios
todos os dias, já que essa nunca havia sido a minha realidade.
no
primeiro dia, conheci meu professor, que perguntou qual era o meu objetivo. ele
anotou lá no caderno dele: ficar dura (gostosa) – já adianto que passado um
ano, não fiquei dura, mas gostosa eu continuo. no primeiro dia, cheguei com
cara de poucos amigos, meu habitual, e olhava pras pessoas que estavam lá com
raiva, num misto de vocês são uns otários com o que que eu tô fazendo aqui?!
minha mente vociferava críticas direcionadas a todos que estavam lá. logo eu,
que não queria ser julgada por ninguém, tinha dentro da cabeça uma língua que
chibatava qualquer um que passasse na minha frente e as pessoas só estavam ali,
existindo. alguns tinham o desplante de parecerem estar se divertindo,
conversando... como assim? como vocês podem estar aqui sem sofrer? sem achar
esse o pior lugar do mundo para se estar? eu projetava naquelas pessoas a minha
chateação por ter sido negligente com meu corpo por tanto tempo. não estava com
raiva delas, estava era com raiva de mim, por ter demorado a perceber que meu
corpo também precisava daquilo, de esforço.
eu queria
entrar, fazer o que tinha de ser feito e sair. não ia lá pra fazer amizade, nem
pra dar risadinhas, nem pra ficar de conversa, eu chegava pensando em ir
embora. a primeira semana doeu; fisicamente. mas eu fui todos os dias. em casa,
calçando os tênis, pensava em desistir, pensava que estava com o corpo
dolorido, pensava que isso não ia dar em nada, que era uma grande perda de
tempo; mas eu me mandava calar a boca e ia. logo percebi que, por mais dolorido
que você esteja, quando o corpo começa a se aquecer, a dor passa e você faz os
exercícios que precisa sem sentir nada. depois ela volta, e depois de mais uns
dias, o corpo se acostuma e você para de sentir.
quando
esse desconforto físico não é mais uma desculpa para você não querer ir para a
academia, a mente vai tentar inventar outras. durante um bom tempo eu me senti
sobrecarregada, como se estivesse fazendo muita coisa, como se cuidar e educar
o meu corpo fosse algum tipo de punição que me impedia de aproveitar melhor meu
tempo, sendo uma grande vagabunda. pensava puta que pariu, eu vou ter que fazer
isso pra sempre?! é isso mesmo?! quando a gente percebe que o processo não
termina nunca, a gente consegue parar de olhar pro futuro “resultado”. é dia a
dia. é tentar manter o ritmo mesmo que ele saia do compasso às vezes.
tentando
pensar assim, o resultado não é exatamente a bunda dura, o resultado passa a
ser a constância. fui uma semana na academia e não senti diferença nenhuma no
meu corpo. beleza, o que importa é que você foi uma semana. o corpo vai sentir
a diferença quando você tiver ido muitos dias, semanas, meses... aí é que você
vai notar alguma coisa. um grande estímulo é saber que eu fui. me sinto dona de
mim mesma, mesmo sabendo que há tantas aqui dentro e que algumas delas não
gostam nada disso. nunca me arrependo de ter ido. é sempre um alento, me dou
uma estrelinha, penso parabéns, você poderia ter sido sedentária o dia inteiro,
mas durante uma hora e pouquinho, você fez força, estimulou seu corpo a se
mover, foi adulta e fez algo que não gosta, mas que faz bem. eu ainda não
gostava de estar lá, mas eu escolhia estar lá. eu não queria ir, mas ia mesmo
assim. do mesmo jeito que faço com o trabalho. não é segredo que não gosto de
trabalhar, mas preciso do dinheiro que recebo por ele, então eu vou. eu não
gostava de ir para a academia, mas já tinha entendido que, com quase 40 anos, a
gente faz um monte de coisas que não gosta porque precisa.
durante
sete meses eu fui para a academia quase todos os dias em que me propus a ir.
faltei apenas duas ou três vezes. nesse ínterim, consegui deixar de ser tão
defensiva em relação às pessoas que frequentavam aquele lugar. comecei a gostar
de ver que conseguia levantar um pouquinho mais de peso do que na semana
passada. comecei eu a esboçar sorrisos e a me sentir mais solta. depois de um
tempo, eu já sabia os nomes de muitas daquelas pessoas, comecei a seguir
algumas na rede social e conversava animadamente com o meu professor e não tão
animadamente quando meus joelhos começaram a doer e eu precisei aliviar os
exercícios que os envolviam.
dois meses
depois que eu havia começado na academia, procurei por um médico vascular para
ver minhas varizes, daí o homem olhou as minhas pernas e disse ah, você tem
lipedema. eu fiquei indignada com ele. que porra de lipedema? todo mundo tem
essa merda agora? a negação brotou das minhas coxas e panturrilhas na hora, mas
depois o diagnóstico fez muito sentido. lipedema e síndrome de hipermobilidade
são doenças correlacionadas. não quer dizer que só existam juntas, mas é comum
que as duas coincidam. fez sentido pra mim. a região em que mais tenho flacidez
no corpo é nos culotes e coxas. a pele é ultra-estirada. o acúmulo de gordura
que tenho ali não é como celulite normal, assim como o acúmulo de gordura sobre
os joelhos e na própria panturrilha. tenho essa merda em algum grau nos braços
também.
foi
frustrante saber disso no começo. fui vendo que por mais que eu fizesse força
na academia, aquela gordura se mantinha ali, assim como tem se mantido. foi
frustrante, mas foi também um belo ah que se foda, tô fazendo o que dá e é isso
aí. não tive antes, não terei vergonha do meu corpo agora que sei o que é isso.
ter começado a academia depois de fazer uma cirurgia plástica foi, por um lado,
fácil, porque me sentia mais segura. aquela coisa de achar que só quem já é
magro e sarado faz academia, sendo que eu não era nem magra e nem sarada, mas
estava mais dentro do padrão do que jamais estivera em toda a minha vida.
ainda
assim, tava eu lá, com o tônus de um flan de caramelo e cheia de “celulite”.
que se foda, agora minha bunda é grande – antes ela era inexistente. e quando
alguma colega fazia algum elogio ao meu corpo, eu falava logo que era plástica,
porque assim me sentia menos falsa. eu contava a verdade de que o meu corpo,
esse que eu carregava comigo, não era assim naturalmente; havia sido feito,
comprado, cortado, retalhado, cicatrizado. sobrei eu, com a bunda grande, o
peito pequeno, barriga amarrada, cheia de flacidez incorrigível, lipedema nos
membros e sovaco cabeludo.
eu gosto
de mostrar minhas pernas peludas, molengas e cheias buracos disformes nos
shorts curtos que eu visto quando vou pra academia. eu gosto de mostrar meus
sovacos cabeludos cada vez que levanto os braços por lá e por onde eu vou. hoje
eu sou mais padrão do que jamais fui, pero no mucho. porque o padrão, aquele de
influencer com filtro, ele não existe, mas existo eu, me achando linda e
gostosa mesmo que eu cause desconforto nos outros, ou até repulsa porque, sei
lá, tem gente que acha que mulher peluda é nojento, porque tem gente que acha
que se você tem celulite, você deveria poupar os olhos alheios e só usar
calças.
mas eu
acho que é importante saber lidar com o incômodo que o outro pode causar na
gente e com as diferenças. do mesmo jeito que eu cheguei à academia destilando
julgamentos aos outros que só estavam ali, cuidando cada um da sua vida, acho
que se alguém me olhava torto porque uso short curto e top em que meus sovacos
peludos aparecem, já se acostumou e provavelmente não vai achar nada demais
quando vir outras mulheres que tenham características semelhantes às minhas.
mas eu sequer posso dizer que percebi alguém me olhando esquisito. eu entrei em
um ambiente do qual não fazia parte e até considero que fui bem recebida. quem
estava armada era eu.
naturalizar
o que é diferente também é um processo. me exercitar era estranho para mim, não
era nada natural, mas a constância tornou o que me era anormal, o padrão. virei
minha própria norma, sigo a minha regra, criei meu próprio padrão, cujo
estandarte sou eu mesma. eu me carrego para onde quero ir e caminho comigo
mesma até chegar lá. sei nem onde vai dar o lá, mas sigo caminhando.
nesse
decorrer de ano, meus joelhos começaram a me incomodar depois que eu tive a
brilhante ideia de dar uma trotada de leve num domingo aí. no outro dia, meus
joelhos pareciam inflamados, doloridos. doíam pra sentar, pra andar, pra
agachar. de repente, me vi triste porque não conseguia mais fazer os exercícios
a que tinha me acostumado. me senti retrocedendo, com medo de voltar a ficar
parada. eu virei a pessoa que queria continuar se movimentando! olha só isso!
daí fui em médico de joelho, fiz exame caro do inferno e parti pra fisioterapia
lá na academia mesmo, o que era uma grande comodidade porque depois de uma
sessão, eu já fazia a musculação.
nessa
brincadeira aí descobri que meus joelhos sofriam porque os quadris são fracos.
a bunda é mole porque esse raio não é uma coisa só, os bonitos dos músculos que
formam as nádegas são três e parece que todos os três precisam ser trabalhados,
pois vejam! tem que fortalecer a porra toda! dá-lhe fisioterapia pra ensinar a
bunda como ela deve trabalhar. até instituímos que as últimas sessões seriam
voltadas para me preparar pra correr. não porque tenho ambições maratonistas,
mas porque gostaria de ser capaz de “correr” depois dos 40, depois de 21 anos
sendo fumante, asmática e sedentária. cheguei a correr um quilômetro na esteira
um dia. pode parecer pouco pra você, mas pra mim é uma enorme conquista.
apesar das
dores, desde setembro do ano passado, consegui instituir a musculação de
segunda a sexta-feira, mais a aula de pilates às quintas, sendo uma aluna
muitíssimo aplicada e dando a chance de meu corpo mostrar o que ele é capaz de
fazer. durante a tpm, suspeito que ele não possa muito, mas seguimos firmes,
mesmo menstruada, mesmo com cólicas. mesmo quando chove ou quando o sol está
causticante. para as duas situações, tenho usado meu maravilhoso
guarda-chuva/sombrinha. em dias de muita chuva, a vadiagem fala mais alto e vou
de carro; o ponto é que o clima – que poderia ser uma grande desculpa para eu
não ir –, nunca foi um impeditivo.
frequentar
uma academia me trouxe mais rotina, expandiu minha percepção de mim mesma e dos
outros. cheguei lá na defensiva, tensa, mas permiti me enxergar com mais
compaixão, e daí pude ser mais compassiva e até simpática com os demais. me
sinto parte de uma pequena comunidade. conheci mulheres da minha idade, mais jovens e mais
velhas do que eu com quem troco figurinhas e falo de amenidades. isso faz meu
dia melhor. estar na academia me ajuda a desacelerar a cabeça, que é quase um
mingau de tanto rolar o feed do instagram. eu não levo o telefone pra academia
porque esse é o único momento em que consigo ficar longe dessa merda e pensar
só em mim. levei alguns dias pra tentar ouvir música, mas achei que perco parte
da experiência de estar ali, interagindo com as pessoas.
do mesmo
jeito que interajo todos os dias com um senhor barbudo – se bem que ele tirou a
barba recentemente –, dono do boteco que atende as casas funerárias pelas quais
passo no meu trajeto a pé até a academia. uma manhã, ele me deu bom dia e eu
respondi bom dia e, desde então, nos cumprimentamos sempre que o botequim está
aberto. às vezes ele diz bom dia, meu anjo, e às vezes ele comenta do calor e
da minha boa vontade de me exercitar. esse senhor, cujo nome não sei, também
faz parte da minha rotina.
fazer o
caminho para a academia todos os dias passando pelos fundos das casas
funerárias e pela frente do cemitério me faz lembrar da morte, não que eu já
não pensasse nela diariamente, mas um dia senti o cheiro de formol saindo de lá
de dentro. um dia vi um carro chegando e um corpo sendo desembarcado. um dia vi
um carregamento de caixões chegando. fazer o caminho da busca pela saúde, pela
beleza, pela vida passando por detrás dali me faz pensar que uma hora serei eu.
e uma hora
será, mas enquanto a hora não chega, dedico algum tempo do meu dia para a casa
que me leva pra todos os lugares, conseguindo contemplar o trajeto entre lá e
aqui. fazendo da academia um espaço de aprendizado para o corpo e para a cabeça
também, de exercício, de aperfeiçoamento. é como se o bichinho não tivesse tido
a oportunidade de ir à escola quando criança e não tivesse sido alfabetizado.
aí ele aceita, perto dos 40 anos, que o movimento é a melhor forma de ele se
comunicar, é a língua que ele entende, e ele pula direto pra academia!
no ano
passado, me exercitei 195 dias, mais do que em toda a minha vida e este ano
será ainda mais ativo. acho que peguei o jeito, agora é só continuar até que um
dia seja o meu dia.
sábado, 15 de fevereiro de 2025
sobre o caminho da mudança
no dia 16
de fevereiro, mais conhecido como amanhã tomando por base hoje, fará um ano que
comecei a frequentar a academia. o lugar da maromba, do “treino”, de pessoas
superficiais que só se importam com a aparência. odeio esse lugar! esse foi meu
pensamento por uma vida toda. então, como posso ter ido parar lá? virei eu a
pessoa superficial que só se importa com a aparência? vamos chegar lá, peraí.
eu fui a
criança asmática. tive minha primeira crise com uns nove ou dez anos de idade.
pensando agora nos fatores emocionais, talvez fizesse bastante sentido eu
perder o ar naquela época e em outras em que eu tinha graves crises que me
faziam parar no hospital para fazer umas nebulizações calibradas com berotec,
que me deixavam tremilicante, mas com o peitinho respirando aliviado.
o ponto é
que a asma foi um grande pretexto para que eu me afastasse de qualquer
atividade que fizesse meu coração bater mais forte, que exigisse do meu fôlego,
e eu parei de brincar de pega-pega, de queimada e de encenações em que eu era
uma vítima do Jason Vorhees e corria em volta do prédio da escola tentando
fugir dele, enquanto um amigo, o Robson, interpretava o monstro do filme de
terror atrás de mim, querendo me matar. essas brincadeiras eram muito
divertidas – juro!
daí, já
não participava mais das aulas de educação física. na época, o mais comum era
que fôssemos poupados de qualquer esforço, por isso eu era dispensada dessas
atividades. o recomendado era natação, mas a modalidade era completamente fora
de questão por razões financeiras. eu ficava no banco. gostava de não estar ali
onde eu via os outros. pensando agora, não sei se não gostava de qualquer tipo de
esporte porque achava que não podia praticá-lo ou por não praticar nada, não
pude descobrir que gostava de algum deles... olhando hoje, em retrospecto, acho
que não gosto de nenhum mesmo porque não gosto de competir. não gosto de
disputas. não gosto de ganhar ou perder. gostava de estar fora.
nos
períodos em que eu não fazia as aulas de educação física, arranjava outras
coisas para fazer. gostava de ler romances espíritas. gostava de acreditar que
eu já tinha vivido vidas diferentes da minha, e que só não me lembrava disso –
a puberdade é um tempo bonito da vida da gente. na sexta série, época em que eu
lia romances espíritas na escola de freiras em que estudei até setembro de
1996, terminei esse mesmo ano em outro estado, em outra escola, em um contexto
completamente diverso. como era dispensada das aulas, eu atravessava a rua e ia
para o cemitério que ficava ao lado do colégio. às vezes, passava tardes
inteiras lá, passeando pelas lápides, bisbilhotando os mausoléus, lendo os
nomes das pessoas nos jazigos – e sendo destemida e imbecil o suficiente para
fazer brincadeiras do compasso sobre os túmulos com alguns colegas que se
aventuravam comigo na empreitada.
já no
ensino médio, eu não participava das aulas e passava a manhã toda transando com
carinhas por quem eu era apaixonada, achando que eles me amariam se eu
transasse com eles – a adolescência é um período difícil e doloroso de
descobertas, das quais só nos damos conta chorando num divã muitos anos depois.
desenhado
esse breve cenário, o fato é que cresci sedentária. achava meus genes meio
estragados; a parte caçadora-coletora da minha pessoa parece que não havia se
desenvolvido. eu não gostava de nenhuma atividade. não gostava de nenhum
esporte. depois de adulta, já tinha tentado natação, caminhada, academia, yoga,
zumba, jiu-jitsu, pilates e simplesmente odiava qualquer coisa que fizesse meu
corpo doer. a academia era paga adiantado só pra que eu pudesse me sentir um
lixo de pagar e não frequentar e me envergonhar por não ir e, ainda assim, não
conseguir ter uma atitude diferente. yoga era legal, mas as pessoas no estúdio
eram um tanto bitoladas e era caro. eu tinha medo de fazer alguns movimentos e
me quebrar toda. fui desenvolvendo um receio de me mover. zumba foi só
experimental; me senti ridícula demais para estar em uma humilhação pública. no
jiu-jitsu não conseguia me imaginar usando aquelas roupas quentes e com cheiro
de murrinha. o pilates era ótimo, mas também muito caro para apenas duas vezes
por semana. andar de bicicleta sempre foi difícil porque eu mal conseguia me
manter sobre ela sem cair. só fui aprender a andar mesmo depois de adulta e
morro de medo de ser atropelada porque não me considero uma ciclista que
consegue andar na rua em meio aos carros; só em ciclovia e olhe lá! não
engrenava em nada por muito tempo. as caminhadas ainda eram mais frequentes,
mas o sentimento, ao mesmo tempo que era bom, também era de perda de tempo, de
derrota, de pra quê todo esse esforço?
me sentia
uma massa amorfa e resignada em relação a atividades físicas. ah, não é pra mim
essa merda toda. introjetei o modo aceitação e foi maravilhoso por uns bons
anos. exercícios? não, sou contra. faz aí você, eu tô bem sem fazer nada. tô
bem na minha posição favorita, a horizontal. na minha cabeça eu tava bem mesmo.
achava que poderia viver assim pra sempre.
mas como
tudo na vida, a atividade física não impacta simplesmente no aspecto de ser
ativo ou não. impacta também no nosso corpo. e o meu corpo foi durante muitos
anos reflexo também dessa falta de movimento, reflexo dessa indulgência
desmedida. eu faço só o que tenho vontade. não tenho vontade de me mexer, fico
aqui. eu como só o que tenho vontade. uma pizza inteira? claro que eu quero! eu
mereço. a vida é uma merda, deixa eu me recompensar pelo dia difícil. eu vivi
assim por muito tempo e aquilo funcionava pra mim. foi bom. a gente tem
períodos e fases em que se cobra muito, em que se pune muito, outros em que se
aceita como está, em que abraça a realidade do jeito que ela está se
apresentando porque é o que dá pra fazer no momento.
e por mais
que a gente pense que não muda, que não quer ou que não consegue; por mais que
a gente se veja preso numa engrenagem de repetição, quando a gente consegue se
olhar com o mínimo de distanciamento, consegue perceber pequenas mudanças na
repetição; pequenos desconfortos. sabe quando você está calçando um tênis muito
confortável, mas tem uma pedrinha muito inha na palmilha, em contato com seu
pé? ela é ridiculamente diminuta e ainda assim, ela deixa seu andar incômodo. a
gente vai andando meio chacoalhando o pé pra ver se ela se acomoda em algum
canto que não perturbe e às vezes ela até se move, mas daí vai parar lá na
ponta do dedinho, puta que pariu! em algum momento a gente tem que tirar o
tênis. a inquietação é tão grande que você tem que tirar a porra do tênis!
depois de
fases desconfortáveis com meu corpo, vivi momentos de muito amor e aceitação
comigo mesma, me sentindo gostosa e linda como eu estava no momento. até estava
satisfeita, feliz do modo que estava. mas isso era a minha cabeça em relação ao
meu corpo, só que o corpo, aquele que é parte de mim, mas não sou eu toda,
assim como a minha mente, estava bastante descontente com a minha postura com
ele. o bichinho estava somatizando as coisas que estavam resolvidas na minha
cabeça, sendo que ele não foi consultado sobre nada disso. tava ali, no modo
máquina que faz o que a cabeça manda e quer. acontece que ele mandava sinais
para mim, sinais que eu não relacionava uns com os outros.
achei que
era só meu jeitinho vagabunda de ser. achava que era só porque eu era uma vadia
que não gostava de se mexer. um dia, li alguém falando sobre frouxidão
ligamentar e pensei: tenho esse negócio! quando fui pesquisar a respeito,
parecia fazer bastante sentido. marquei uma consulta com uma fisioterapeuta
especializada e com um reumatologista. fiz exames que descartassem qualquer
doença autoimune e tive o diagnóstico de síndrome de hipermobilidade articular
generalizada. a princípio pode parecer qualquer coisa como ah, você é bastante
flexível, que legal! mas não é nada legal. tem pessoas que só são flexíveis
mesmo, mas eu tenho facilidade pra me luxar, deslocar. as articulações são
muito móveis, daí que meus joelhos, por exemplo, têm condropatia grau 3 porque
vivem em hiperextensão. meu colágeno não é bem sintetizado e isso se reflete em
todo o meu corpo, uma vez que o colágeno está na superfície de todos os nossos
órgãos e não só na pele.
pessoas
com hipermobilidade podem ter resistência à atividade física porque o esforço
que o nosso corpo faz é maior do que um corpo que não tem essa merda. e isso
corrobora a minha tendência de anos de não fazer nada para além de ser uma
vagabunda simplesmente. a gente sente muito cansaço, quase uma fadiga crônica,
dores nas articulações, além de sentir tonturas quando a gente faz movimentos
muito bruscos, especialmente se levantando rápido. a pele é elástica, mas é
também flácida. é uma grande bosta ter isso resumindo.
a
fisioterapeuta disse que apesar de tudo, meu problema era muito mais no âmbito
do desconforto do que da gravidade; se meu caso fosse grave, eu teria a
síndrome de Ehlers Danlos, que é uma parada muito mais tensa, envolvendo até
mesmo a paralisia de órgãos internos dada a severidade da condição, que se
divide em vários subtipos. mas foi o que ela me disse depois que me moveu em
todos os aspectos da minha vida: essa síndrome não tem cura, mas a “cura” dela
está no movimento.
e eu
descobri isso beirando os quarenta. pensando: tô precisando cuidar melhor da
minha casa. tô aqui, cheia de dor, sedentária, comendo feito um animal
enjaulado, me sentindo cada vez mais cansada, indisposta. como eu vou estar
daqui a dez anos nesse ritmo? pela caralhonésima vez, decidi tentar me mexer,
mas não como uma obrigação, como um gesto de carinho comigo mesma, como uma
garantia de que o movimento faria eu me sentir melhor. e eu recomecei. fazia
exercícios em casa, assistindo vídeos no YouTube e pensando em como eu me
sentia descondicionada, fraca, dolorida, encurtada. depois, comecei a pagar uma
plataforma de exercícios em casa que tinha uma grande variedade de atividades e
cada dia eu inventava de fazer algum. não conseguia acompanhar tudo, não tinha
fôlego; meus joelhos gritavam. eu parava, ficava uns dias sem fazer ou fazia
outra coisa que não exigisse tanto deles.
a parte
boa disso tudo é que eu me namorava. fazia os exercícios na frente de espelhos
e, com a mesma voracidade que eu me recriminava em frente a eles, tirava fotos,
fazia vídeos e me desejava. me amava e me odiava com a mesma violência. ficava
eu ali, de caso comigo mesma, me fazendo promessas e me xingando quando as
descumpria. foi um período intenso em que me permiti saber que eu conseguiria
fazer o que quisesse, dentro dos meus limites, que fui descobrindo aos poucos.
depois que
aceitei o movimento como um passo fundamental para a melhoria dos meus
sintomas, retomei o desejo de modificar meu corpo e isso foi um tabu para mim
mesma durante a fase de aceitação em que estive. veja, eu era obesa. veja, eu
me sentia bem na minha pele. eu já escrevi sobre isso aqui sobre o corpo , porque esse texto é sempre uma oportunidade de eu me
mostrar pelada porque eu me acho bonita. me achava naquela época e continuo me
achando agora. eu não sentia vergonha do meu corpo porque nunca achei que
tivesse uma razão pra me envergonhar dele e eu estava óquei com isso.
acontece
que quando eu vi que me mexer estava, mesmo que muito lentamente, começando a
mudar as minhas formas, eu pensei que poderia finalmente fazer uma cirurgia
plástica. “A” cirurgia. a “minha” cirurgia. a cirurgia que eu pensava em fazer
desde o dia em que, grávida, apareceu a primeira estria na minha barriga. falei
sobre isso nos textos sobre parir, nascer e morrer para nascer de novo e em sobre o leite, o peito e a barriga também. minha filha tinha quase
vinte anos e esse foi o tempo pelo qual pensei em fazer uma cirurgia plástica.
cheguei a marcar a data uns 14 anos atrás, mas desisti porque a vida me chamou
e era urgente. daí meio que larguei a ideia; adormeceu a vontade dentro de mim,
soterrada por questionamentos: e se eu quiser mais filhos? – a melhor decisão
foi de não ter mais nenhum –, e se eu morrer? é claro que uma gracinha dessas
de fazer cirurgia por vaidade pode resultar em morte. certamente eu morreria
ou, no mínimo, ficaria sequelada pela escolha estúpida de querer ser quem eu
não era. e se ficar uma merda? e se eu não gostar? e se a cicatriz ficar feia?
e se?
e se eu
permanecesse exatamente do jeito que estava porque já era familiarizada com ele
e só aceitasse que era isso mesmo? bom, foi assim durante um tempo, mas daí eu
percebi que era possível mudar e que a agente de mudança era eu mesma! a
sedentária imutável! não é que essa árvore de raízes bem fincadas no chão
começou a se mover pelos recônditos da terra fofa sem que a superfície se
apercebesse disso?
mas
aconteceu comigo. eu tava lá! juro que foi assim que se deu! eu entendi que
conseguia mudar e, então, eu quis ser capaz de mudar um pouco mais. claro que a
velocidade da minha mudança era como eu, meio marcha lenta, mas resolvi
procurar um médico que não só fazia a cirurgia, como usava um tipo de
equipamento que era uma tecnologia muito eficiente para a retração de pele e eu
pensei: bom, minha pele é toda cagada, já sei que, se fizer, o resultado não
vai ser lá grandes coisas, mas se é o que tem de mais moderno, quero tentar,
alguma melhoria há de haver.
e lá fui
eu. ele ouviu minhas demandas e disse: aham, a gente consegue melhorar bastante
as tuas formas, mas pra fazer a cirurgia você precisa emagrecer 15 quilos. eu
olhava pra cara dele e pensava: mas que audácia desse filho da puta! emagrecer
15 quilos pra me operar? pra quê? não é sustentável, vou engordar tudo de novo
depois. isso é ridículo! nunca mais volto nesse lugar! enquanto eu praguejava
ele mentalmente e mostrava os dentes meio rindo, meio rosnando, ele me dizia
que eu precisaria fazer duas cirurgias em vez de uma só. isso por questões de
tempo de anestesia, segurança, bem como essa coisa de emagrecer seria mais uma
garantia para evitar qualquer tipo de intercorrência nos procedimentos.
hahahaah. esse cara quer eu emagreça 15 quilos e ainda não vai me operar de uma
vez só?! que palhaçada!
e ele
continuou. disse que se eu quisesse, poderia fazer um acompanhamento
nutricional e com uma endocrinologista da clínica para chegar no peso que ele
achava seguro para mim. logo eu, que já tinha me emboletado com remédios para
emagrecer, feito a dieta dos pontos, da sopa, da lua, da casa do caralho e que
já tinha recebido vários planos alimentares de várias nutricionistas e nunca
seguido nenhum?! ele sugeriu que eu fizesse esse acompanhamento.
em anos
anteriores, quando sazonalmente despertava em mim a vontade de mudar, eu já
havia ido a outros médicos e os valores das cirurgias só iam aumentando. quando
fui a esse médico, o valor dessa mudança era ainda maior do que os anteriores.
muita grana mesmo, mas eu senti nele uma confiança que não senti com outros. eu
tinha como arcar com os custos e fui chamada de doida porque eu poderia gastar
esse dinheiro fazendo viagens. acontece que nessa altura, eu já estava
decidida, mas ainda não sabia disso. eu poderia ir pra China, e seria legal,
mas meu corpo, que está comigo o tempo todo, ainda estaria do mesmo jeito e eu
não queria mais ele do jeito que estava. eu queria que ele mudasse. eu poderia
fazê-lo mudar sozinha, mas essa mudança só iria até a parte em que a minha barriga
murcharia e a pele ficaria pendurada, bem como os meus peitos, que já eram
murchos e caídos. eu gostava deles assim, mas queria saber como eles poderiam
ser se fossem diferentes.
eu fui
feliz com o corpo como estava antes, mas agora não era mais e queria ele
diferente. eu entendi que eu fiquei na mesma posição por muito tempo porque eu
quis, porque eu precisei, até que eu não quis mais e precisei fazer diferente.
achei que querer mudar me tornava uma mulher superficial. como se me preocupar
com a minha aparência desvalorizasse tudo em que acredito. mas daí fiquei
quieta. aceitei a proposta do médico, aceitei o plano que a nutricionista
passou – e que foi diferente de tudo o que eu já tinha feito antes – e só fui
indo.
em seis
meses, consegui dar prioridade pra alimentação, que era o que me fazia
emagrecer de verdade naquele momento. eu me machuquei nas atividades em casa e
acabei fazendo fisioterapia pra tentar deixar os joelhos melhores. emagrecer
foi um processo muito bacana pra mim. de me sentir no controle, de saber dosar
as coisas, de adotar um café da manhã que mantenho há quase dois anos com
grande prazer. eu como frutas todos os dias hoje. e eu nunca fui de comer
frutas, só com leite condensado, só com algo por cima pra camuflar os sabores.
eu era uma cretina! eu era infantil no que se refere à alimentação e não me
refiro a paladar infantil porque sei que existem pessoas que sofrem muito com
essa questão de seletividade, mas era infantil no sentido de que não me
oportunizava novos sabores, queria me manter engessada e agindo como uma
criança que só quer prazer e satisfação e toma todo o resto como um grande
sacrifício.
eu entendi
que se mover, em todos os aspectos, acarreta desconfortos e a gente precisa
aprender a lidar com os desconfortos porque viver é desconfortável e não dá pra
achar que é possível viver só como a gente quer e acha que é gostoso. viver é
uma merda e eu sequer pedi pra chegar aqui, mas já que aqui estamos, vamos
rolar a pedra morro acima, cada dia um pouco melhor, vamos?
em seis
meses eu emagreci 13 quilos. quando eu emagreci nove quilos, eu voltei a caber
em um vestido que não usava havia mais de dez anos. eu me senti tão
incrivelmente feliz! me senti feliz porque me senti capaz, porque eu tinha
conseguido mudar! porque eu não era a porra do código de Hamurabi, talhado em
pedra. eu podia mudar e eu queria mudar e eu tava me esforçando pra mudar e eu
tava vendo que era tangível.
também me
senti frustrada em alguns momentos em que empaquei na perda de peso, porque eu
queria continuar mudando, mas o corpo também vai brecando a gente. hei, calma
lá, gatinha, que a gente já mudou muito. segura o tcham aí. ele também tem o
tempo dele. fato é que eu consegui fazer as duas cirurgias sem morrer – vide
este texto escrito por mim mesma viva –, mas as recuperações foram bem escrotas
pra mim. senti muitas dores e passado pouco mais de um ano das duas, não sinto
que meu corpo é como antes – porque, afinal de contas, não é mesmo –, mas me
refiro às sensações do corpo, sabe? partes dele estão dormentes ainda,
formigando ainda. sinto minha barriga amarrada, ainda me sinto limitada nos
meus movimentos e tive todo um trabalho para me re-conhecer e aceitar novamente
quem me tornei por enquanto.
eu quis
muito mudar; e mudar, e ainda assim, continuar sendo a mesma pessoa dá
trabalho, mas é bom porque quer dizer que eu, como unidade de pessoa, continuo
aqui, ocupando o mesmo espaço no mundo, com a diferença que agora, minha mente
e meu corpo já não são como antes. dá pra entender? somos e não somos os
mesmos. tudo junto e ao mesmo tempo.
bom,
depois de todo esse preâmbulo, fevereiro do ano passado, meu médico me liberou
para me exercitar. pensei agora é a hora da verdade. preciso encarar a
academia. emagreci, me reformei toda, agora tenho que garantir os músculos.
tenho que ser capaz de limpar minha bunda na velhice. tenho que estar apta e a
cair e não quebrar a bacia e daí ficar acamada. tenho que conseguir amarrar
meus sapatos, carregar sacolas, ser uma velha independente e autônoma. tenho
que fazer m-u-s-c-u-l-ação!
(continua...)