sábado, 5 de outubro de 2024

sobre perder contornos

no meio do tanto de alienação em que me enfio, na mesma medida que sinto, me entorpeço com o irrelevante. acontece que ainda assim, sinto bastante. talvez fuja do sentir correndo pra rolar os dedos na tela, mas as sessões de análise não me deixam mentir que sinto e choro até pelo bem-estar da tartaruga. sinto porque acho que não lhe dei a melhor vida, a melhor escolha, o melhor espaço e me sinto um deus tirânico por determinar como ela deve viver sem ter certeza absoluta nem do que é mais adequado pra mim mesma. sinto porque o mundo é injusto e comandado por poucos filhos da puta que tomam as decisões mais cruéis e sinto porque parece que a tendência é sempre piorar. sinto e vou dando meu jeito de sentir de outro jeito, de sentir de leve, de sentir distraída, de sentir meio tentando deixar pra lá.

já tem tanto acontecendo e ainda vou sentir a dor alheia? sim, porque sentimento a gente não racionaliza, a gente sente. quando fiquei sabendo da notícia, um pouquinho do chão da cozinha se abriu porque é assim que acontece quando é com a gente, só que o buraco é bem grande e a gente cai inteira dentro dele. o chão da minha cozinha abriu só um pouquinho e eu pude me ver lá dentro, quando tinha 16 anos e recebi essa notícia pra mim. mas na terça-feira a notícia não era pra mim, eu era só uma espectadora da dor alheia, mas uma espectadora familiar (a minha notícia veio em uma segunda-feira).

me dói porque eu pensei primeiro nela, que ficou, porque eu também fiquei quando ele decidiu ir embora. nossos pais fazem escolhas difíceis todos os dias porque ser pai/mãe é por muito tempo decidir pelos filhos, para o bem e para o mal, e mesmo que a escolha seja deles para eles, ah, eles não se lembraram de que a morte escolhida sempre recai sobre quem fica como se o corpo suicidado caísse sobre as nossas cabeças e respingasse seus pedaços em tudo à sua volta? eu senti primeiro por ela porque eu já fui ela, porque eu poderia ser a mãe dela e porque ela poderia ser a minha filha. eu senti primeiro por ela porque ela ficou, porque é ela quem tem que lidar com a vida adiante sem contorno. por um tempo a gente fica sem contorno.

quando a gente tem a certeza de que eles ainda são carne viva, essa certeza gera um contorno invisível em volta de nós. a gente sabe um pouco quem é porque eles estão por aí no mundo. quando a perda se dá, seja da forma que for, esse contorno some por um tempo. é como andar descoberto por aí quando todos os dias são de ventania e você está pelada pela rua. quando a gente tem acolhimento, se sente um pouco coberta, contornada, quentinha. mas logo que a gente se percebe sozinha de novo, vê que está sem contorno. é como ter o abismo na ponta dos pés o tempo todo. é como a sensação de frio na boca do estômago quando você percebe que nunca mais vai ver aquela pessoa. é como um peso no coração que faz ele bater devagar de tanta dor e de tristeza por tudo o que não foi dito e nem nunca será.

a gente perde a fina película da segurança de que há alguém no mundo por nós, e até houve e até há outras pessoas, mas essa borda nunca mais será como antes. a dor faz com que nossos novos contornos se deem na gente mesmo, na altura da pele; me rasgam, me remendo de mim mesma e me bordo diferente. margeio um bordado estranho pra enfeitar minha cicatriz. crio uma nova fibra, por cima do que havia antes, por cima do vazio que é preenchido com o estofo de tudo o que sinto.

o vazio é fugidio e fica entre mim e o contorno, como a fáscia que recobre tudo por dentro dos nossos tecidos. sou preenchida pelo vazio. sou esvaziada pela perda. leva tempo e não vai passar; a gente só aprende a lidar com a dor e se distrai dela lavando a louça e sentindo a dor dos outros de vez em quando.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

sobre o eterno retorno

 

Na quarta-feira volto ao trabalho. Eu não gosto de trabalhar; nunca gostei de fato. Em princípio, achei que trabalhar era algo que me dava propósito, porque era o que eu ouvia as pessoas dizerem. Mas que raio de propósito é esse? Não tenho interesse em ser reconhecida pelo trabalho que exerço; tenho interesse apenas em fazê-lo direito e receber pelo que executo. Meu trabalho é só meu meio de vida e ponto.

No meu mundo ideal, as pessoas todas seriam obrigadas a trabalhar, mas só um pouquinho, de maneira que se todos trabalhassem em prol do necessário para o bem-estar coletivo, haveria tempo de sobra para “trabalhar” com o que nos dá prazer, com o que nos move, com o que cria sentido de existência plena e de felicidade.

Bem, isso lá no mundo que não existe. Neste aqui, no sistema capetalista, sim, é do cão mesmo, nele eu tenho um emprego que me garante uma vida digna e tenho que ser grata por isso porque milhões de pessoas não têm a mesma “oportunidade”. Não quero discutir direitos básicos que não são respeitados na engrenagem que mói gente diariamente. Quero só falar de mim, pra variar.

Nos idos de 2013, eu escrevi aqui sobre abandonar o facebook. Aquela merda tinha me viciado e eu decidi sair de lá. Ocorre que como boa e desavisada adicta, um vício não se extingue, ele é apenas substituído por outro e, vejamos, o instagram é uma merda ainda mais malcheirosa. Cá estamos desde sei lá quando, acabando com qualquer vestígio de ação consciente que eu possa protagonizar em minha vida.

Sempre que entro no instagram, meu dia é consumido por gatinhos lindos (a quem eu amo muito), e isso não seria um problema, se o feed não fosse infinito e eu não fosse acossada por milhares de propagandas de coisas que não preciso (mas que ainda assim acabo comprando), com um toque de notícias desgraçadas de todas as atrocidades que acontecem a todo momento no mundo inteiro e às quais acabo ficando dessensibilizada, já que as vejo com tanta frequência quanto assisto aos vídeos engraçadinhos de cachorros sendo mimados seus donos.

Veja, não é que eu não sinta, talvez o problema seja sentir e não ter tempo de elaborar o que vejo e como eu sinto. Sempre vem algo depois, algo que me joga pra cima e que depois me faz sentir vontade de morrer. Algo que me faz sentir fome e algo que me faz sentir uma fodida na vida. Algo que me faz querer ser melhor e algo que me faz querer comprar, ter, acumular. Algo que me faz acreditar com todas as forças que a raça humana é a escória do mundo e algo que me faz ter alguma fé nessa merda toda.

É dopamina, cortisol, palpitação e angústia. É busca, falta, desejo e tédio. Essa porra toda misturada o tempo todo. Isso não é viver; assim como trabalhar não deveria ser o sentido da vida. Tá todo mundo vendendo alguma coisa aqui nessa merda, vendendo desejo e promessa. Decidi que vou vender também. Vou criar meu conteúdo para além do que crio uma vez por dia (em média) no vaso sanitário.

Eu vou desinstalar o instagram do meu telefone. Só o acessarei pelo computador. Isso já é uma redução de danos para o meu problema. Eu criei dois perfis em sites de conteúdo adulto: onlyfansprivacy, mas deixa eu explicar e esclarecer: não, o tipo de “conteúdo” que eu vou postar lá não é exatamente o que se poderia esperar. Não vou postar fotos ou vídeos explícitos, pelo menos não explícitos da forma que a pornografia nos acostumou a consumir.

O que eu postar lá será experimental (para mim). Não tenho interesse em saber o que você espera, nem o que você acha. Vou fazer isso por autoafirmação, por curiosidade, e porque quero ver se consigo ganhar uns quinze pila pra comprar um picolé. Se não me render nem isso, faço de conta que nunca aconteceu.

É isso, virei produto. Só gostaria de lembrar que medíocre é o papel no qual me sinto melhor. Nem muito, nem pouco; na medida do ordinário. Não quero me esforçar demais porque me canso rapidamente e o esforço de estar viva já me enche a porra do saco.

O único esforço que quero fazer, porque a angústia está me obrigando ao movimento, é escrever. Escrever e mostrar uma fuleragem de respeito para quem quiser pagar pra ver. Nas duas plataformas, o conteúdo será igual. Quero descobrir qual será a mais legal pra mim, se é que alguma será.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

sobre produzir conteúdos

enquanto cago, escrevo. espera, deixa eu reformular: enquanto escrevo, produzo um conteúdo. "produzir conteúdo" foi como comecei a me referir às minhas idas ao banheiro. meu pai trabalhava em um escritório cheio de pessoas e quando eu ligava pra lá e pedia pra falar com ele, às vezes me respondiam: "seu Cacai tá fazendo um pacote, não pode atender"; isso era a maneira burocrática de dizerem que ele estava cagando. o banheiro era um brinco. a época era da naftalina pelos cantos das paredes e o papel higiênico era aquele cor-de-rosa, que não só limpava, como esfoliava o cu. ele fazia pacotes; eu produzo conteúdos. 

não é isso o que a internet entrega hoje? as pessoas produzem "conteúdos". basicamente, qualquer merda pode ser considerada um conteúdo, então estou produzindo o meu enquanto, literalmente, faço merda.

um breve resumo: fiquei mais de um mês sem o instagram, mas bastou eu voltar praquela bosta que já voltei a ficar completamente alienada da vida. fico vidrada no telefone. meu punho direito estala e dói; acho que está inflamado, meu cotovelo direito também. essa porra de telefone está acabando até com meus ossos. quase não consigo evitar o tanto de tempo que perco segurando o telefone enquanto deixo de viver as singelezas da vida.

sabe aquelas coisinhas bobas como lavar roupa, passar pano, ser escrava das tarefas domésticas como qualquer adulto funcional deveria? sabe aquela coisa de ler um livro e dormir cedo? pois é, eu também não sei. li dois livros enquanto me mantive afastada. me sentia menos agitada. minha cozinha está virada de cabeça pra baixo, mas pelo menos me alimentei direito hoje. falta eu dar a sopa dos gatos. sim, é quase uma sopa; no começo, eles achavam aguada, mas hoje bebem toda a água que eu misturo com o sachê e o sachê em si fica lá nos potes, porque os buchinhos ficam cheios de água. chaninhos todos muito hidratados. a vagabunda da Francisco já está tão acostumada que faz o terrorismo diário com o papel higiênico como uma forma de chamar minha atenção, mas perá lá, porra! tô cagando!

tô contando minha divertidíssima rotina pra quem não me perguntou nada! 

abre-se um parêntese porque enquanto eu escrevia tudo isso aí em cima, diga-se de passagem lá pelas 20h30, vi que meu analista havia me mandado um áudio; estranhei, ouvi. ele dizia que a gatinha dele estava doente e precisando de uma transfusão de sangue. perguntou se eu conhecia alguém que tinha um gato com as especificações necessárias para a doação, ou se um dos meus gatos poderia ser o doador. eu logo pensei na Francisco. idade boa, peso dentro do requerido, saudável etc.; onde vocês estão? na clínica x. beleza, estamos indo.

jamais poderia me negar. a Marta já foi salva por uma transfusão de sangue. quem é mãe de pet sabe que a gente faz de tudo por esses arrombadinhos. lá fomos nós duas. Francisco e eu; ela embrulhada numa manta, no meu colo dentro do carro enquanto eu dirigia. a bichinha não deu um pio; não fez uma menção de rebeldia. parecia que sabia que estava em missão especial.

chegamos lá e a veterinária disse que ela precisaria ser sedada para a coleta de sangue; aí o coração de mãe se apertou porque ela já tinha tido uma reação alérgica à anestesia quando foi para a castração. apesar de umas picadas para exames preliminares, achamos melhor que ela não passasse por isso. pensei imediatamente no Presto; gato grande, forte, saudável e que já foi doador antes. ligo pra mãe nova dele; ela liga pro ex-marido que tá na Grécia? Cracóvia? Turcomenistão? tá por aí turistando antes que o mundo acabe; o ex-marido me liga com voz de madrugada pra saber exatamente do que se trata, pede que não tirem muito sangue do filhinho dele, permite a boa ação. todo esse movimento em sei lá, dez minutos, e logo eu tô voltando pra casa com a Chico tão comportada quanto na ida, mas agora com as almofadinhas das patas molhadas de nervoso. despacho a gatinha em casa, jogo uns petiscos no chão e ela rapidamente se esquece do perrengue pelo qual acabara de passar.

mando mensagem pra nova mãe; aviso que estou chegando. subo. cria-se uma pequena situação para colocarmos o gatão dentro da caixinha de transporte; ele não é nada otário e não quer entrar de jeito nenhum. entrou de ré até fácil, depois de umas tentativas frustradas de outras maneiras. gritou o caminho todo, imagino que me xingando ou pensando o que tinha feito para merecer ser arrancado de casa já tarde. eu explicava que ele estava indo ajudar uma amiguinha, que era um herói e esse papo que não funciona nem com criança pequena, imagina então com gato? a gente humaniza os bichos porque admitir que eles não nos entendem é muito frustrante pro nosso ego.

chegamos! logo a veterinária leva o chano lá pra dentro pra fazer os primeiros exames; daí vem lá do consultório pedindo ajuda para segurar a jaguatirica. éramos três mulheres segurando uma bola de pelo de seis quilos e pouco que parecia ter a força de, ai, nem sei qual bicho usar. acho que jaguatirica já tá de bom tamanho. fosse uma onça tinha acabado com a nossa raça rapidinho. 

resumindo a história porque meus suvacos estão chorando e preciso tomar banho (tudo isso aconteceu ontem; hoje já é hoje, dia dos namorados e eu quero me embonecar pra ficar fedendo a tempero frito com o jantar pro date que ainda vou começar a fazer): Presto foi o herói do dia. ficou lá, doou seu precioso sanguinho, ajudou a gatinha que já está melhor, apesar de ainda não ter um diagnóstico fechado. meu analista e sua esposa ficam muito agradecidos pela vidinha da filha peluda.

nisso se fecha o resumo do que ninguém me perguntou. a vida aí acontecendo o tempo inteiro sem pausas, para todos os lados, com maiores e menores significados e esse foi um bom dia. daqueles em que demandam da gente solidariedade e a gente retribui sendo solidário porque no fim das contas é o que importa. obrigada (Presto, Chico, Danilo e Maia)!

comecei falando de merda e terminei falando de solidariedade. já assistiram aquele filme "a corrente do bem"? é legal, recomendo. eu sou das pessoas mais pessimistas/realistas que há, mas se houvesse mais gente disposta a ajudar pelo simples prazer de ajudar, esse inferno desse mundo não seria tão desgraçado.