Quando eu engravidei, tinha só dezoito anos. Naquela época
os hormônios estavam borbulhando e eu ainda não tinha consciência de que todo o
amor que buscava não viria tendo o sexo como uma moeda de troca. Eram muitas as
variáveis: os hormônios, a falta de amor, a busca desesperada e inconsciente
por afeto, aceitação; mas não é sobre essa busca que quero escrever neste
momento.
Hoje quero escrever sobre como pari um bebê e sobre como
pari a mim mesma depois de vinte anos. Durante a gestação, enquanto meu corpo
produzia um ser inteirinho dentro do meu útero, eu o vi se modificar de uma
forma incontrolável. Quando minhas primeiras estrias apareceram, ainda aos onze
anos nos quadris, isso foi atribuído ao estirão de crescimento da idade, porque
cresci em altura, mas era muito esguia.
As estrias se espalharam, ao longo dos anos, pelos seios,
nádegas, coxas; por todas as partes que poderiam ser objetificadas por um homem
e que eu cresci ouvindo que contavam negativamente nos quesitos de beleza
feminina. Havia muitas estrias, como se a minha pele fosse uma lagoa calma e
transparente refletindo a luz solar em um pequeno balanço de suas águas. Elas
estavam ali, eu as via igualmente na minha mãe; meu corpo era igual ao dela. Tínhamos
as mesmas formas e eu não a achava bonita; não me achava bonita. Ouvia as
pessoas a elogiarem e então conseguia ver beleza nela e daí em mim.
De volta à gravidez, quando a barriga começou a ficar mais
evidente, lá pelos seis meses apareceu a primeira estria, assim, sozinha, na
região inferior da barriga. Me lembro de ter chorado muito porque sabia que ela
não seria a única; sabia que a única parte desejável e intacta do meu corpo
seria maculada pela maternidade antes mesmo que ela começasse de fato. Chorei do
mesmo modo que chorei quando menstruei pela primeira vez; porque sentiria dores
todos os meses, porque precisaria usar um absorvente estranho entre as pernas,
porque meu crescimento seria mais lento dali em diante, porque eu poderia
engravidar caso transasse sem prevenção, porque, enfim, havia me tornado uma “mocinha”,
uma mulher.
Esse primeiro luto vivi entre absorventes ensanguentados e
cólicas; entre seios inchados e doloridos e oscilações de humor. O luto de
deixar de ser uma menina para, literalmente, de um dia para o outro, precisar
me acostumar com uma nova realidade que se impunha sem pedir qualquer licença e
sem que eu tivesse qualquer escolha de poder negá-la. Era isso.
Do mesmo modo, uma vez que o bebê estivesse dentro da
barriga e pronto para nascer, isso se daria de qualquer jeito. No prazo x, em
que a gestação dura 285 semanas, o que equivale a 26 meses – sim, eu sei que
não é isso, mas também não são nove meses –, a criança tem que sair. A Ana saiu
de mim de maneira diferente da que imaginei, por razões que eu nunca desejei
ter que passar, mas mais uma vez, isso se deu à revelia do meu controle, contrariamente
aos meus planos infantis de maternidade ideal.
Ela nasceu por uma cesariana. Minha barriga já estava
completamente arruinada pelas estrias, mas naquele momento, depois das lágrimas
derramadas pelo aparecimento da primeira, as demais não pareciam tão
importantes. Eu estava preocupada em não morrer; eu tinha certeza de que
morreria. Nunca tinha feito uma cirurgia na vida e, de repente, na última consulta
com o obstetra, fico sabendo que teria que fazer uma cesariana no outro dia.
Assim, sem qualquer preparo emocional, como seria se a minha bolsa tivesse
rompido a qualquer tempo, mas teria sido por vontade da Ana, pelo tempo certo
de nascer, pela vontade dela que ela sequer sabia que tinha; teria sido pelo
meu corpo avisando que funciona perfeitamente e que a encomenda estava pronta
para ser entregue. Mas não foi.
Ela veio. Mas antes dela chegar, já falei que achei que ia
morrer? Estava tão nervosa que sequer senti a agulha enorme da anestesia
entrando nas minhas costas. Logo estava deitada na maca estreita enquanto não
sentia qualquer dor, mas sentia que mexiam na minha barriga. Eu olhava praquela
luz branca que vinha do teto. Ela refletia a minha barriga aberta, mostrando
tudo o que o lençol azul na minha frente me impedia de ver. Olhei para outra
direção e sentia como se o médico estivesse sentado sobre o meu peito. Não tinha
forças para puxar o ar e encher os pulmões. Me queixei à equipe, disse que não
conseguia respirar. Colocaram uma máscara de oxigênio sobre meu rosto. Me senti
ligeiramente menos pior. Os médicos estavam ouvindo rádio, a narração do que parecia
ser um jogo de futebol. Eu nem gosto de futebol; eu não queria que meu parto
parecesse a coisa mais corriqueira da vida como pareceu a eles; mais um parto. Era
o meu parto, mas ali, com dezenove anos, não tive qualquer ingerência sobre ele,
sobre nada.
A única coisa sobre a qual pude opinar naquele momento foi
sobre a beleza de um ser que acabara de ser parido. Quando retiraram a Ana de
dentro de mim e a trouxeram para perto do meu rosto para que eu a visse, disse:
“como ela é feia”. Eu disse a uma neonata coberta de sebo e sangue que ela era
feia, tamanha a minha sordidez materna.
Quando me levaram para o quarto, fui orientada a não falar
porque falar me daria gases; algo a ver com a anestesia. A vulnerabilidade
começou por sequer conseguir me levantar da cama para ir ao banheiro. A enfermeira
deixou no quarto uma “comadre”, um penico de aço inoxidável, que gelado no
contato com a pele, me lembrou mais uma vez de que eu não tinha escolha. A
anestesia passaria e eu sentiria dor. Eu sentiria dor e não poderia me
recuperar dela descansando.
Eu havia acabado de passar por um processo de mitose e não
era mais uma só; agora eu era duas e o buraco por onde saiu a segunda era
grande, profundo e doía; mesmo assim, eu tinha que cuidar da segunda eu, da que
saiu de mim, porque sem mim, ela sucumbiria. Às vezes é nessa hora que nasce a
mãe porque ela enfia a sua dor física do corte de sete camadas de pele no cu
pra começar o intensivo da maternidade em tempo real, com o segundo eu se esgoelando
de fome porque é assim que é. A vida já nasce demandando porque se não demanda,
morre.
Mas antes que começasse a chorar, ela estava calma. Foi assim
que chegou no quarto. Estava limpa e vestida; tinha luvinhas nas mãos para
proteger o rostinho das unhas afiadas e finas que tinha e que já haviam deixado
inofensivos riscos naquela pelinha. Eu pude olhá-la com tranquilidade e me
apaixonei imediatamente. Os hormônios fizeram o seu papel. Eu a achei linda! Fiquei
embasbacada com a beleza dela; fiquei orgulhosa de mim mesma por ter feito uma
filha bonita. Ela ainda estava amassada da viagem, ainda tinha “cara de joelho”,
mas era o joelho que meu corpo havia produzido sem que eu tivesse qualquer
controle sobre qual seria o seu grau de perfeição; e ela era perfeita.
Nos primeiros dias, andava curvada e o plano de manter o
bebê no berço sempre que possível, logo passou para “ela vai dormir comigo na
cama de solteiro porque dói demais levantar cinco vezes por madrugada”. Logo
eu, que sempre tive o sono tão pesado, neurei com a possibilidade de dormir e
esmagar minha filha durante a noite. O sono ficou leve, atento, vigilante.
Com mais de um mês do parto, minha barriga ainda parecia
carregar um bebê dentro dela. Era o corpo se reacomodando. Ventre inchado e
murcho ao mesmo tempo. Não tão pleno quanto aos nove meses, não tão plano
quanto antes da gestação. Olhava para o espelho e não me reconhecia. Não era a
Karla de antes da gravidez, tampouco a Karla grávida; era uma terceira: a Karla
mãe recém-formada; mãe recém-nascida, saída da maternidade junto com o neném,
com o segundo eu.
Depois da aflição com as mudanças na barriga que não me
levariam a nenhum lugar visto que eram uma realidade imutável impressa no meu
corpo, passei a notar mais meus seios que se tornaram fonte de alimento e
saciedade do meu neném. Sempre tive os seios fartos, que produzindo leite
ficaram ainda mais volumosos, com veias azuis protuberantes, mamilos mais
escuros e maiores. Eu já tinha nutrido meu segundo eu dentro de mim, enquanto
ainda éramos duas em uma. Agora meu corpo produzia alimento para fora, para garantir
a existência do que já não fazia mais parte de mim, mas ainda era eu por
extensão.
Ana mamava como um pequeno bezerro e gozava de satisfação
revirando os olhinhos até desfalecer em meu braço. Eu gozava de satisfação de
alimentar minha filha de mim. De ver que o humano sustenta a si mesmo de si
mesmo; que eu a alimentava e me retroalimentava. Eu não sabia então, mas agora
sei que me sentia invencível, me sentia como deus. Criando a vida e sendo capaz
de sustentá-la. Apaixonada pela própria criação.
Minha libido se voltou inteira para mim fora de mim. Não me
preocupei mais comigo. Era ela o foco. Eu era a mãe com a barriga meio murcha e
cheia de estrias, a terceira versão de mim mesma, e ainda tinha só dezenove
anos.
(Continua...)