quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

sobre o que é mais importante

Cheguei. Quando saí da casa do Danilo até senti a brisa mais forte, mas na medida em que fui andando, aquele suor seco voltou a me molhar o corpo, como um grude tropical, a brea. Cheguei e servi-me de um copo gelado de água; um copo de inox, daqueles muito comuns no meu tempo de infância, mas esse é mais baixo, mais gordinho, não tinha a função de servir bebida, mas sim de guardar a pasta e escova de dentes da Ana. Estava no box do seu banheiro, com o fundo encardido de lodo de banheiro; lodinho de baba, de vapor de água, de restinhos de coisas de banho. Depois que ela foi embora, eu quis limpar o banheiro e dei nova função ao copo. Lavei-o bem; inox não pega cheiro nem gosto de nada e agora é meu favorito. Ele serve 300ml; eu medi.

Cheguei e vim aqui escrever. Tirei toda a roupa, e agora o sutiã porque me aperta. Não queria me esquecer e nem conectei a internet no computador; vim aqui antes porque não queria me esquecer, eu já disse. Vou começar do começo do dia então.

Quando estávamos tomando café da manhã, vi na rede social que a Rússia havia invadido a Ucrânia e disse: está vendo?! a gente fica transando e não sabe o que tá acontecendo no mundo! E daí comecei a ler e ouvir e a me entupir com as notícias. Você foi embora e eu até trabalhei durante a manhã. Enquanto almoçava, ouvia o jornal. Passei o restante da tarde na drogadição digital e, ao mesmo tempo em que limpava as caixas de areia dos gatos, ouvia um cara dizer que desde a Segunda Guerra não havia uma invasão como essa a um país. Percebi que o desinfetante estava acabando e também tive a sensação de que ele se embananou um pouco em relação ao que falava. Senti vergonha por ele e pensei em todos os outros países que estão em guerra neste exato momento – e eu nem sou boa ou entendida de geopolítica –, mas que não fazem parte da Europa, talvez por isso sejam desimportantes para os noticiários, ou talvez porque eles não tenham armas de destruição em massa ou talvez porque não sei, como disse, não sou boa no assunto.

Apesar da apreensão criada pela mídia, parece que a Terceira Guerra tem poucas chances de acontecer, acho que o mercado reagiria mal (sério, Karla?) – e Danilo tinha me convidado pra ir à casa dele. Eu devia a visita e disse que iria às 18h. já passava do horário e, depois de lavar a louça, coloquei minha calça nova – costurada especialmente para mim e muitíssimo bem-feita e acabada – e saí de casa com o saco de areia suja dos gatos e a chave do carro. Coloquei a areia no contêiner e olhei para o carro. Já era final da tarde e pensei que seria uma boa ideia ir a pé até lá; movimentaria o corpinho amorfo. Olhei para a chave, olhei para o carro, pensei com meus botões, falei com 32 habitantes de mim e decidi fazer o diferente: resolvi ir andando, bravamente andando. De chinelo, com sutiã apertado, calça nova, bolsa transversal no peito, fone nos ouvidos e notícias da invasão russa comendo a minha mente.

Vou andando e desviando de alguns cocôs de cachorro pelo caminho; chego à rodovia e me sinto importante porque os carros param para que eu atravesse. Corto o caminho passando por cima de uma cerca de metal caída no chão; passo pelas capelas funerárias e vejo que não tem ninguém sendo velado naquele momento. Atravesso a rua novamente e ando pela frente do cemitério que tanto gosto. Vou passando por mais umas duas ou três ruas até que entro na rua que vai dar no prédio dele, lááá em cima. Vou andando e olhando para o chão. Evito ficar olhando para frente na intenção de enganar meu cérebro; acho que se ele não vir a altura do diabo da rua vai me fazer cansar menos. Descubro que meu cérebro é muitíssimo esperto e que não haveria nenhuma chance de ele não perceber o quão íngreme é aquela ruela do inferno. Paro no meio do caminho para pegar um ar. A máscara já está pendurada na orelha esquerda; respiro pela boca e tenho a impressão de que vou morrer. Sigo. Quando finalmente chego ao topo, apoio-me num muro amarelo queimado arfando. Sinto o suor escorrer pela bunda e por todos os poros do meu corpo. Depois de uns bons segundos, dou mais uns passos e chego ao portão. Digito a senha, a porta abre, entro. Depois, faço a mesma coisa de novo. Aperto o botão do elevador, entro nele e chego no andar. Coloco a mão na maçaneta e a porta estava aberta. Chamo pelo Danilo e ninguém responde, só os gatos. Procuro o controle do ar condicionado e busco com os olhos um galão de água na cozinha, mas não encontro. Procuro um filtro na torneira da lavanderia, nada também. Fico puta porque todas as vezes que chego lá, nunca tem água mineral, porra!

Mando mensagem perguntando onde está, ele diz que se esqueceu de mim e escreve: “Bethânia”. Reclamo que vim a pé, que não tem água e digo que não vou mais lá. Penso que já que estava toda derretida mesmo, ia gastar a luz dele colocando o ar-condicionado no mínimo e assistir, por que não, um pouco mais de jornal e ficar mais por dentro da invasão russa – porque alienação “informativa” nunca é demais. Tiro minha calça suada e a coloco sobre o encosto da cadeira. Pego uma toalha para colocar no sofá dele e poder me sentar com a minha bunda suada sobre o novo tecido – que não é suede, mas é muito bonito.

Me alieno mais um tanto nas redes sociais e converso um pouco com você, que me sugere dar uma olhada na geladeira. Excelente ideia! Faço um sanduíche com manteiga, mussarela de búfala e presunto defumado. Abro um energético e encontro na despensa um saco de stroopwafel de canela – nunca tinha comido e acho muito bom. Como os quatro que havia, mas no último já vejo que não gostaria mais de comer aquilo em muitos meses. Decido, então, assistir ao último episódio de uma série curta, engraçada e desgraçada. Quando faltavam menos de dez minutos para que ela acabasse, a porta se abre e o Danilo aparece cheio de sacolas junto com uma moça e ele não me vê de cara. Eu me assusto de ver que não era a Thaís junto com ele e me sinto levemente constrangida por estar de camiseta e calcinha na casa do meu ex-marido enquanto ele chega acompanhado e eu estou no sofá assistindo tv.

Ha ha ha aqui e acolá, coloco a calça enquanto digo que a havia tirado porque a rua dele era muito íngreme e tinha feito minha bunda suar, sendo que qualquer calor faz a minha bunda e todo o resto suar. Ele me pergunta de você e eu digo que nos veremos logo mais. Eu acabo a série um pouco indignada com o final que ela tem, dou um beijo na moça, despedindo-me e me desculpando pelo suor, pego uns pedaços fininhos da carne que estava no forno e eu nem sabia, dou um beijo no Danilo e vou-me embora.

Fico impressionada como descer a rua é muito mais rápido do que subi-la, apesar de também demandar um pouco de atenção e nenhuma pressa. Vou caminhando tranquila e passando pela frente do cemitério de novo. Olho lá para dentro e vejo que, mais adiante, o portão ainda está aberto. Fico animada e resolvo entrar, só para dar um passeio rápido. Vejo que o passeio não vai mesmo poder se alongar porque estou de chinelos e porque, durante a noite, as baratas estão por toda a parte ali. Vejo até um pequeno conluio com quatro juntas; talvez estejam armando para me atacar, mas eu não lhes dou intimidade. Continuo andando, meio marchando, com medo que uma delas suba pelos meus pés. Sinto-me um pouco importante como quando atravesso a rodovia, porque parece que abrem caminho para que eu passe; são muitas.

Enquanto cuido para não as pisar, converso com as lápides, falando sozinha. Falo para os moradores do cemitério o que está acontecendo fora dali porque acho que eles não ficam muito por dentro das notícias. Passo em frente à lápide de uma mocinha que nascera em 1997 e que morrera no ano passado; penso como era jovenzinha, mas não sou capaz de fazer as contas para descobrir quantos anos tinha... no meio da conversa, penso que a guerra é mais um meio de ir parar ali. Acho que é melhor ir embora por causa das baratas e voltar em um fim de tarde, quando elas estejam escondidas e eu possa ver bem as lápides e descobrir as “famosas”, penso. As “importantes”, penso. As “históricas”, penso. Daí me corrijo, porque para quem ficou, quem morreu era importante ou histórico ou famoso praquela pessoa. Saio do cemitério e passo de novo pelas capelas funerárias. Agora há um velório tímido acontecendo e um homem sozinho está sentado no banco em frente a ela. Ele olha para o vazio e parece consternado. De novo, penso na guerra, no cemitério, na morte que se evita a todo custo, mas na vida que também pouco vale, ou que não vale nada. Sinto por ele, sinto por todos que não puderam escolher fazer parte ou não do momento que estão vivendo, do momento que nós todos estamos vivendo, que o mundo está vivendo, daí, por um segundo, penso que uma guerra de proporções atômicas, que acabasse com a gente de uma vez por todas, talvez não fosse tão ruim assim.

Volto-me para mim e sigo. Passo novamente pela cerca caída e penso que a atriz de fleabag sempre se dá mal nas séries que ela escreve. Caminho mais um pouco e logo chego em casa. Sinto saudades da Ana. Escrevo. Vou tomar banho e te espero. Chega de notícias por hoje.

 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

sobre despedidas, luto e elaborações

minha cabeça está explodindo. é depois de amanhã e eu vou junto, vou te levar, vou te deixar lá, mas é depois de amanhã que você vai embora. eu falei que queria que você fosse um passarinho e aprendesse a voar... bom, tô abrindo a gaiola, tô abrindo mão do controle, não que eu tivesse muita escolha... não é um favor que estou te fazendo, é só a vida chamando, mesmo que não seja da maneira que eu esperava porque também a vida caga muito pro que a gente espera dela... agora estou tendo que lidar com tantas coisas aqui dentro... com o ninho que vai se esvaziar e que vou precisar preencher de mim mesma. fui muito besta de achar que seria fácil, que eu estava preparada pra isso, mas é porque a gente nunca está preparado pra morte. é, sim, é uma morte. enquanto você crescia e mudava de fases - e eu já disse isso antes -, enquanto você deixava de ser um bebê pra se tornar uma criança, quando passava de criança a menina, de menina a menino, de menino a adolescente experimentadora... em todas essas fases, era como se tirassem uma pessoa e colocassem outra no lugar dela, porque um dia você já não era mais o meu neném, mas ainda era lá dentro, só a aparência ia mudando e você ia criando camadas, novos contornos de si, novas formas de ser mais um pouco, de se tornar e foi se tornando, se modificando... eu sentia que te tiravam de mim, mas colocavam outra no lugar e eu não notava porque você continuava aqui, debaixo da minha asa de galinha cacarejante, mesmo quando você já estava percebendo que as suas asas batiam nas paredes de casa, que estava ficando pequena pra você porque o limite da ave é o céu; só esqueceram de falar isso pra mãe dos pintinhos, passarinhos, avezinhas - me coloquei como galinha porque me parece mais maternal do que uma passarinha qualquer, abstraiam a mistura dos seres de penas.

daí vem a morte, porque um pedaço meu vai indo pela vida. foi ela que foi mudando você, mas fui eu que cuidei de você enquanto ela te mudava diante dos meus olhos cotidianos que não se apercebiam de que esse dia iria chegar. o dia em que você vai voar sozinha e que eu vou me encher de vazio de não te ter mais aqui. dia em que vou me encher de culpa porque se você falhar diante da vida - e você vai, porque ninguém consegue ser um sucesso o tempo todo -, isso vai mostrar pro mundo que eu não fui uma boa mãe, que eu te criei errado, que eu não dei tudo o que poderia ter dado, que eu não fiz tudo o que poderia ter feito, que eu sou um fracasso na tarefa mais difícil de todas que é criar um ser humano e há bilhões deles por todos os lados, criados e se criando. a gente se ajeita como pode e eu preciso aceitar que não poderia ser perfeita, porque nunca fui perfeita em nada, nada. nunca fui o destaque de porra nenhuma, daí o normal é que também não fosse uma mãe perfeita. eu fui a mãe possível. fui a mãe que deu pra ser porque apesar da grande responsabilidade do papel, eu não sou só mãe; tenho outros papéis. sou uma pessoa e foi assim que consegui dessacralizar a minha mãe. vi que a minha mãe tomou decisões na vida primeiro considerando-se uma mulher e depois levando em conta o papel de mãe; depois levando em conta que, na bagagem, sempre levaria dois filhos.

ser a mãe possível é ser a mãe que faz merda, mas que está sempre tentando acertar. claro, a menos que você seja uma psicopata, você nunca vai foder o mental dos seus filhos de propósito. essas coisas são acidentes de percurso; são coisas que acontecem quando a gente trabalha com o que tem, com as ferramentas de que dispõe, dando o amor que a gente recebeu ou não. eu sou a mãe possível que há quase 16 anos em terapia tenta não reproduzir o padrão da minha própria mãe, embora me veja igual a ela em tantos momentos e procure me distanciar disso; isso é um pouco como enxugar gelo porque ela está em mim, por mais que eu negue, por mais que eu tente ir pra longe. a gente se separa no físico, mas no campo subjetivo é um pouco mais difícil. a questão é que agora se trata do meu papel de mãe.

nesse papel, junto com todos os outros, fico com a sensação de que não fui muito boa em nenhum deles. me desmereço por um lado e me acho muito foda por outro. será que um dia você vai perceber que eu fui muito foda dentro das minhas possibilidades de ser foda? ou será que você vai me culpar pra sempre por todas as faltas e traumas e questãs que existiram, existem e existirão? é muita responsabilidade... é como se no momento em que for pra vida, não só você, mas eu também serei colocada à prova. a vida manda as questões, dizendo: vamos ver se a Karla foi uma boa mãe ou uma mãe de merda? e se você falhar, isso atestará minha incapacidade como mãe. bom, incapaz ou capaz, consegui fazer você chegar até aqui... e, não, isso não é o suficiente, mas nunca nada é o suficiente, então dá pra eu ficar em paz, mesmo lutando contra a ambivalência da maternidade, a ambivalência do amor, a ambivalência minha e a sua em relação a mim.

talvez confiar em você, no seu potencial e em toda a sua capacidade de adaptação seja difícil porque eu acho que não consegui te ajudar a desenvolver tudo isso satisfatoriamente. tenho medo de não ter te preparado, por isso tenho receio de te soltar. tenho medo que você fracasse porque isso seria sinal do meu fracasso e sei que isso é muito egocêntrico, mas é como me sinto. acontece que agora é que vem a oportunidade de ver na prática você sendo você, com o que pôde aprender comigo ou não, com o que pôde aprender com tudo o que já viveu; é a oportunidade de ver o que você vai ser capaz de fazer com quem você é, do jeito que é, que está. existem tantos jeitos e maneiras... são tantos os caminhos e quantas as escolhas... que você faça as melhores escolhas, que tenha as melhores experiências, isso é o que eu desejo. que você sempre se lembre que decidir por algo é abrir mão de todo o resto. e que escolher ou não escolher tem consequências, tudo tem. ainda assim, que você se lembre de que decisões podem ser revistas, que acordos podem ser mudados; que apesar de não saber como a vida vai te tratar, não tenho dúvidas da sua bondade, da sua sensibilidade, do seu talento, da sua entrega e da sua inteligência. não permita que te desrespeitem, que te machuquem... olhe sempre pra você primeiro; os outros vêm depois. isso não é ser egoísta; às vezes, isso só quer dizer que você não é otária. vai dar tudo certo, mesmo que de vez em quando dê errado. a vida é safada mesmo e tá sempre brincando com a gente, do jeitinho estúpido e prosaico que só ela tem. com o tempo, você vai se familiarizando.

no mais e pra sempre, te amo.