Cheguei. Quando saí da casa do Danilo até senti a brisa mais forte, mas na medida em que fui andando, aquele suor seco voltou a me molhar o corpo, como um grude tropical, a brea. Cheguei e servi-me de um copo gelado de água; um copo de inox, daqueles muito comuns no meu tempo de infância, mas esse é mais baixo, mais gordinho, não tinha a função de servir bebida, mas sim de guardar a pasta e escova de dentes da Ana. Estava no box do seu banheiro, com o fundo encardido de lodo de banheiro; lodinho de baba, de vapor de água, de restinhos de coisas de banho. Depois que ela foi embora, eu quis limpar o banheiro e dei nova função ao copo. Lavei-o bem; inox não pega cheiro nem gosto de nada e agora é meu favorito. Ele serve 300ml; eu medi.
Cheguei e vim aqui escrever. Tirei toda a roupa, e agora o
sutiã porque me aperta. Não queria me esquecer e nem conectei a internet no
computador; vim aqui antes porque não queria me esquecer, eu já disse. Vou começar
do começo do dia então.
Quando estávamos tomando café da manhã, vi na rede social
que a Rússia havia invadido a Ucrânia e disse: está vendo?! a gente fica
transando e não sabe o que tá acontecendo no mundo! E daí comecei a ler e ouvir
e a me entupir com as notícias. Você foi embora e eu até trabalhei durante a
manhã. Enquanto almoçava, ouvia o jornal. Passei o restante da tarde na drogadição
digital e, ao mesmo tempo em que limpava as caixas de areia dos gatos, ouvia um
cara dizer que desde a Segunda Guerra não havia uma invasão como essa a um
país. Percebi que o desinfetante estava acabando e também tive a sensação de
que ele se embananou um pouco em relação ao que falava. Senti vergonha por ele
e pensei em todos os outros países que estão em guerra neste exato momento – e eu
nem sou boa ou entendida de geopolítica –, mas que não fazem parte da Europa,
talvez por isso sejam desimportantes para os noticiários, ou talvez porque eles
não tenham armas de destruição em massa ou talvez porque não sei, como disse,
não sou boa no assunto.
Apesar da apreensão criada pela mídia, parece que a Terceira
Guerra tem poucas chances de acontecer, acho que o mercado reagiria mal (sério,
Karla?) – e Danilo tinha me convidado pra ir à casa dele. Eu devia a visita e
disse que iria às 18h. já passava do horário e, depois de lavar a louça,
coloquei minha calça nova – costurada especialmente para mim e muitíssimo bem-feita
e acabada – e saí de casa com o saco de areia suja dos gatos e a chave do
carro. Coloquei a areia no contêiner e olhei para o carro. Já era final da
tarde e pensei que seria uma boa ideia ir a pé até lá; movimentaria o corpinho
amorfo. Olhei para a chave, olhei para o carro, pensei com meus botões, falei
com 32 habitantes de mim e decidi fazer o diferente: resolvi ir andando,
bravamente andando. De chinelo, com sutiã apertado, calça nova, bolsa transversal
no peito, fone nos ouvidos e notícias da invasão russa comendo a minha mente.
Vou andando e desviando de alguns cocôs de cachorro pelo
caminho; chego à rodovia e me sinto importante porque os carros param para que
eu atravesse. Corto o caminho passando por cima de uma cerca de metal caída no
chão; passo pelas capelas funerárias e vejo que não tem ninguém sendo velado
naquele momento. Atravesso a rua novamente e ando pela frente do cemitério que
tanto gosto. Vou passando por mais umas duas ou três ruas até que entro na rua
que vai dar no prédio dele, lááá em cima. Vou andando e olhando para o chão. Evito
ficar olhando para frente na intenção de enganar meu cérebro; acho que se ele
não vir a altura do diabo da rua vai me fazer cansar menos. Descubro que meu
cérebro é muitíssimo esperto e que não haveria nenhuma chance de ele não
perceber o quão íngreme é aquela ruela do inferno. Paro no meio do caminho para
pegar um ar. A máscara já está pendurada na orelha esquerda; respiro pela boca
e tenho a impressão de que vou morrer. Sigo. Quando finalmente chego ao topo,
apoio-me num muro amarelo queimado arfando. Sinto o suor escorrer pela bunda e
por todos os poros do meu corpo. Depois de uns bons segundos, dou mais uns
passos e chego ao portão. Digito a senha, a porta abre, entro. Depois, faço a
mesma coisa de novo. Aperto o botão do elevador, entro nele e chego no andar. Coloco
a mão na maçaneta e a porta estava aberta. Chamo pelo Danilo e ninguém
responde, só os gatos. Procuro o controle do ar condicionado e busco com os olhos
um galão de água na cozinha, mas não encontro. Procuro um filtro na torneira da
lavanderia, nada também. Fico puta porque todas as vezes que chego lá, nunca
tem água mineral, porra!
Mando mensagem perguntando onde está, ele diz que se
esqueceu de mim e escreve: “Bethânia”. Reclamo que vim a pé, que não tem água e
digo que não vou mais lá. Penso que já que estava toda derretida mesmo, ia
gastar a luz dele colocando o ar-condicionado no mínimo e assistir, por que
não, um pouco mais de jornal e ficar mais por dentro da invasão russa – porque
alienação “informativa” nunca é demais. Tiro minha calça suada e a coloco sobre
o encosto da cadeira. Pego uma toalha para colocar no sofá dele e poder me
sentar com a minha bunda suada sobre o novo tecido – que não é suede, mas é
muito bonito.
Me alieno mais um tanto nas redes sociais e converso um
pouco com você, que me sugere dar uma olhada na geladeira. Excelente ideia! Faço
um sanduíche com manteiga, mussarela de búfala e presunto defumado. Abro um
energético e encontro na despensa um saco de stroopwafel de canela – nunca tinha
comido e acho muito bom. Como os quatro que havia, mas no último já vejo que não
gostaria mais de comer aquilo em muitos meses. Decido, então, assistir ao
último episódio de uma série curta, engraçada e desgraçada. Quando faltavam
menos de dez minutos para que ela acabasse, a porta se abre e o Danilo aparece
cheio de sacolas junto com uma moça e ele não me vê de cara. Eu me assusto de
ver que não era a Thaís junto com ele e me sinto levemente constrangida por
estar de camiseta e calcinha na casa do meu ex-marido enquanto ele chega
acompanhado e eu estou no sofá assistindo tv.
Ha ha ha aqui e acolá, coloco a calça enquanto digo que a
havia tirado porque a rua dele era muito íngreme e tinha feito minha bunda suar,
sendo que qualquer calor faz a minha bunda e todo o resto suar. Ele me pergunta
de você e eu digo que nos veremos logo mais. Eu acabo a série um pouco indignada
com o final que ela tem, dou um beijo na moça, despedindo-me e me desculpando
pelo suor, pego uns pedaços fininhos da carne que estava no forno e eu nem
sabia, dou um beijo no Danilo e vou-me embora.
Fico impressionada como descer a rua é muito mais rápido do
que subi-la, apesar de também demandar um pouco de atenção e nenhuma pressa. Vou
caminhando tranquila e passando pela frente do cemitério de novo. Olho lá para
dentro e vejo que, mais adiante, o portão ainda está aberto. Fico animada e
resolvo entrar, só para dar um passeio rápido. Vejo que o passeio não vai mesmo
poder se alongar porque estou de chinelos e porque, durante a noite, as baratas
estão por toda a parte ali. Vejo até um pequeno conluio com quatro juntas;
talvez estejam armando para me atacar, mas eu não lhes dou intimidade. Continuo
andando, meio marchando, com medo que uma delas suba pelos meus pés. Sinto-me
um pouco importante como quando atravesso a rodovia, porque parece que abrem
caminho para que eu passe; são muitas.
Enquanto cuido para não as pisar, converso com as lápides,
falando sozinha. Falo para os moradores do cemitério o que está acontecendo
fora dali porque acho que eles não ficam muito por dentro das notícias. Passo em
frente à lápide de uma mocinha que nascera em 1997 e que morrera no ano
passado; penso como era jovenzinha, mas não sou capaz de fazer as contas para
descobrir quantos anos tinha... no meio da conversa, penso que a guerra é mais
um meio de ir parar ali. Acho que é melhor ir embora por causa das baratas e
voltar em um fim de tarde, quando elas estejam escondidas e eu possa ver bem
as lápides e descobrir as “famosas”, penso. As “importantes”, penso. As “históricas”,
penso. Daí me corrijo, porque para quem ficou, quem morreu era importante ou
histórico ou famoso praquela pessoa. Saio do cemitério e passo de novo pelas
capelas funerárias. Agora há um velório tímido acontecendo e um homem sozinho
está sentado no banco em frente a ela. Ele olha para o vazio e parece
consternado. De novo, penso na guerra, no cemitério, na morte que se evita a
todo custo, mas na vida que também pouco vale, ou que não vale nada. Sinto por
ele, sinto por todos que não puderam escolher fazer parte ou não do momento que
estão vivendo, do momento que nós todos estamos vivendo, que o mundo está vivendo,
daí, por um segundo, penso que uma guerra de proporções atômicas, que acabasse com
a gente de uma vez por todas, talvez não fosse tão ruim assim.
Volto-me para mim e sigo. Passo novamente pela cerca caída e
penso que a atriz de fleabag sempre se dá mal nas séries que ela escreve. Caminho
mais um pouco e logo chego em casa. Sinto saudades da Ana. Escrevo. Vou tomar
banho e te espero. Chega de notícias por hoje.