o quarto lugar, esse sim, apto a receber o animal.
segunda-feira, 22 de agosto de 2022
sobre morrer de raiva
o quarto lugar, esse sim, apto a receber o animal.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022
sobre o que é mais importante
Cheguei. Quando saí da casa do Danilo até senti a brisa mais forte, mas na medida em que fui andando, aquele suor seco voltou a me molhar o corpo, como um grude tropical, a brea. Cheguei e servi-me de um copo gelado de água; um copo de inox, daqueles muito comuns no meu tempo de infância, mas esse é mais baixo, mais gordinho, não tinha a função de servir bebida, mas sim de guardar a pasta e escova de dentes da Ana. Estava no box do seu banheiro, com o fundo encardido de lodo de banheiro; lodinho de baba, de vapor de água, de restinhos de coisas de banho. Depois que ela foi embora, eu quis limpar o banheiro e dei nova função ao copo. Lavei-o bem; inox não pega cheiro nem gosto de nada e agora é meu favorito. Ele serve 300ml; eu medi.
Cheguei e vim aqui escrever. Tirei toda a roupa, e agora o
sutiã porque me aperta. Não queria me esquecer e nem conectei a internet no
computador; vim aqui antes porque não queria me esquecer, eu já disse. Vou começar
do começo do dia então.
Quando estávamos tomando café da manhã, vi na rede social
que a Rússia havia invadido a Ucrânia e disse: está vendo?! a gente fica
transando e não sabe o que tá acontecendo no mundo! E daí comecei a ler e ouvir
e a me entupir com as notícias. Você foi embora e eu até trabalhei durante a
manhã. Enquanto almoçava, ouvia o jornal. Passei o restante da tarde na drogadição
digital e, ao mesmo tempo em que limpava as caixas de areia dos gatos, ouvia um
cara dizer que desde a Segunda Guerra não havia uma invasão como essa a um
país. Percebi que o desinfetante estava acabando e também tive a sensação de
que ele se embananou um pouco em relação ao que falava. Senti vergonha por ele
e pensei em todos os outros países que estão em guerra neste exato momento – e eu
nem sou boa ou entendida de geopolítica –, mas que não fazem parte da Europa,
talvez por isso sejam desimportantes para os noticiários, ou talvez porque eles
não tenham armas de destruição em massa ou talvez porque não sei, como disse,
não sou boa no assunto.
Apesar da apreensão criada pela mídia, parece que a Terceira
Guerra tem poucas chances de acontecer, acho que o mercado reagiria mal (sério,
Karla?) – e Danilo tinha me convidado pra ir à casa dele. Eu devia a visita e
disse que iria às 18h. já passava do horário e, depois de lavar a louça,
coloquei minha calça nova – costurada especialmente para mim e muitíssimo bem-feita
e acabada – e saí de casa com o saco de areia suja dos gatos e a chave do
carro. Coloquei a areia no contêiner e olhei para o carro. Já era final da
tarde e pensei que seria uma boa ideia ir a pé até lá; movimentaria o corpinho
amorfo. Olhei para a chave, olhei para o carro, pensei com meus botões, falei
com 32 habitantes de mim e decidi fazer o diferente: resolvi ir andando,
bravamente andando. De chinelo, com sutiã apertado, calça nova, bolsa transversal
no peito, fone nos ouvidos e notícias da invasão russa comendo a minha mente.
Vou andando e desviando de alguns cocôs de cachorro pelo
caminho; chego à rodovia e me sinto importante porque os carros param para que
eu atravesse. Corto o caminho passando por cima de uma cerca de metal caída no
chão; passo pelas capelas funerárias e vejo que não tem ninguém sendo velado
naquele momento. Atravesso a rua novamente e ando pela frente do cemitério que
tanto gosto. Vou passando por mais umas duas ou três ruas até que entro na rua
que vai dar no prédio dele, lááá em cima. Vou andando e olhando para o chão. Evito
ficar olhando para frente na intenção de enganar meu cérebro; acho que se ele
não vir a altura do diabo da rua vai me fazer cansar menos. Descubro que meu
cérebro é muitíssimo esperto e que não haveria nenhuma chance de ele não
perceber o quão íngreme é aquela ruela do inferno. Paro no meio do caminho para
pegar um ar. A máscara já está pendurada na orelha esquerda; respiro pela boca
e tenho a impressão de que vou morrer. Sigo. Quando finalmente chego ao topo,
apoio-me num muro amarelo queimado arfando. Sinto o suor escorrer pela bunda e
por todos os poros do meu corpo. Depois de uns bons segundos, dou mais uns
passos e chego ao portão. Digito a senha, a porta abre, entro. Depois, faço a
mesma coisa de novo. Aperto o botão do elevador, entro nele e chego no andar. Coloco
a mão na maçaneta e a porta estava aberta. Chamo pelo Danilo e ninguém
responde, só os gatos. Procuro o controle do ar condicionado e busco com os olhos
um galão de água na cozinha, mas não encontro. Procuro um filtro na torneira da
lavanderia, nada também. Fico puta porque todas as vezes que chego lá, nunca
tem água mineral, porra!
Mando mensagem perguntando onde está, ele diz que se
esqueceu de mim e escreve: “Bethânia”. Reclamo que vim a pé, que não tem água e
digo que não vou mais lá. Penso que já que estava toda derretida mesmo, ia
gastar a luz dele colocando o ar-condicionado no mínimo e assistir, por que
não, um pouco mais de jornal e ficar mais por dentro da invasão russa – porque
alienação “informativa” nunca é demais. Tiro minha calça suada e a coloco sobre
o encosto da cadeira. Pego uma toalha para colocar no sofá dele e poder me
sentar com a minha bunda suada sobre o novo tecido – que não é suede, mas é
muito bonito.
Me alieno mais um tanto nas redes sociais e converso um
pouco com você, que me sugere dar uma olhada na geladeira. Excelente ideia! Faço
um sanduíche com manteiga, mussarela de búfala e presunto defumado. Abro um
energético e encontro na despensa um saco de stroopwafel de canela – nunca tinha
comido e acho muito bom. Como os quatro que havia, mas no último já vejo que não
gostaria mais de comer aquilo em muitos meses. Decido, então, assistir ao
último episódio de uma série curta, engraçada e desgraçada. Quando faltavam
menos de dez minutos para que ela acabasse, a porta se abre e o Danilo aparece
cheio de sacolas junto com uma moça e ele não me vê de cara. Eu me assusto de
ver que não era a Thaís junto com ele e me sinto levemente constrangida por
estar de camiseta e calcinha na casa do meu ex-marido enquanto ele chega
acompanhado e eu estou no sofá assistindo tv.
Ha ha ha aqui e acolá, coloco a calça enquanto digo que a
havia tirado porque a rua dele era muito íngreme e tinha feito minha bunda suar,
sendo que qualquer calor faz a minha bunda e todo o resto suar. Ele me pergunta
de você e eu digo que nos veremos logo mais. Eu acabo a série um pouco indignada
com o final que ela tem, dou um beijo na moça, despedindo-me e me desculpando
pelo suor, pego uns pedaços fininhos da carne que estava no forno e eu nem
sabia, dou um beijo no Danilo e vou-me embora.
Fico impressionada como descer a rua é muito mais rápido do
que subi-la, apesar de também demandar um pouco de atenção e nenhuma pressa. Vou
caminhando tranquila e passando pela frente do cemitério de novo. Olho lá para
dentro e vejo que, mais adiante, o portão ainda está aberto. Fico animada e
resolvo entrar, só para dar um passeio rápido. Vejo que o passeio não vai mesmo
poder se alongar porque estou de chinelos e porque, durante a noite, as baratas
estão por toda a parte ali. Vejo até um pequeno conluio com quatro juntas;
talvez estejam armando para me atacar, mas eu não lhes dou intimidade. Continuo
andando, meio marchando, com medo que uma delas suba pelos meus pés. Sinto-me
um pouco importante como quando atravesso a rodovia, porque parece que abrem
caminho para que eu passe; são muitas.
Enquanto cuido para não as pisar, converso com as lápides,
falando sozinha. Falo para os moradores do cemitério o que está acontecendo
fora dali porque acho que eles não ficam muito por dentro das notícias. Passo em
frente à lápide de uma mocinha que nascera em 1997 e que morrera no ano
passado; penso como era jovenzinha, mas não sou capaz de fazer as contas para
descobrir quantos anos tinha... no meio da conversa, penso que a guerra é mais
um meio de ir parar ali. Acho que é melhor ir embora por causa das baratas e
voltar em um fim de tarde, quando elas estejam escondidas e eu possa ver bem
as lápides e descobrir as “famosas”, penso. As “importantes”, penso. As “históricas”,
penso. Daí me corrijo, porque para quem ficou, quem morreu era importante ou
histórico ou famoso praquela pessoa. Saio do cemitério e passo de novo pelas
capelas funerárias. Agora há um velório tímido acontecendo e um homem sozinho
está sentado no banco em frente a ela. Ele olha para o vazio e parece
consternado. De novo, penso na guerra, no cemitério, na morte que se evita a
todo custo, mas na vida que também pouco vale, ou que não vale nada. Sinto por
ele, sinto por todos que não puderam escolher fazer parte ou não do momento que
estão vivendo, do momento que nós todos estamos vivendo, que o mundo está vivendo,
daí, por um segundo, penso que uma guerra de proporções atômicas, que acabasse com
a gente de uma vez por todas, talvez não fosse tão ruim assim.
Volto-me para mim e sigo. Passo novamente pela cerca caída e
penso que a atriz de fleabag sempre se dá mal nas séries que ela escreve. Caminho
mais um pouco e logo chego em casa. Sinto saudades da Ana. Escrevo. Vou tomar
banho e te espero. Chega de notícias por hoje.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2022
sobre despedidas, luto e elaborações
minha cabeça está explodindo. é depois de amanhã e eu vou junto, vou te levar, vou te deixar lá, mas é depois de amanhã que você vai embora. eu falei que queria que você fosse um passarinho e aprendesse a voar... bom, tô abrindo a gaiola, tô abrindo mão do controle, não que eu tivesse muita escolha... não é um favor que estou te fazendo, é só a vida chamando, mesmo que não seja da maneira que eu esperava porque também a vida caga muito pro que a gente espera dela... agora estou tendo que lidar com tantas coisas aqui dentro... com o ninho que vai se esvaziar e que vou precisar preencher de mim mesma. fui muito besta de achar que seria fácil, que eu estava preparada pra isso, mas é porque a gente nunca está preparado pra morte. é, sim, é uma morte. enquanto você crescia e mudava de fases - e eu já disse isso antes -, enquanto você deixava de ser um bebê pra se tornar uma criança, quando passava de criança a menina, de menina a menino, de menino a adolescente experimentadora... em todas essas fases, era como se tirassem uma pessoa e colocassem outra no lugar dela, porque um dia você já não era mais o meu neném, mas ainda era lá dentro, só a aparência ia mudando e você ia criando camadas, novos contornos de si, novas formas de ser mais um pouco, de se tornar e foi se tornando, se modificando... eu sentia que te tiravam de mim, mas colocavam outra no lugar e eu não notava porque você continuava aqui, debaixo da minha asa de galinha cacarejante, mesmo quando você já estava percebendo que as suas asas batiam nas paredes de casa, que estava ficando pequena pra você porque o limite da ave é o céu; só esqueceram de falar isso pra mãe dos pintinhos, passarinhos, avezinhas - me coloquei como galinha porque me parece mais maternal do que uma passarinha qualquer, abstraiam a mistura dos seres de penas.
daí vem a morte, porque um pedaço meu vai indo pela vida. foi ela que foi mudando você, mas fui eu que cuidei de você enquanto ela te mudava diante dos meus olhos cotidianos que não se apercebiam de que esse dia iria chegar. o dia em que você vai voar sozinha e que eu vou me encher de vazio de não te ter mais aqui. dia em que vou me encher de culpa porque se você falhar diante da vida - e você vai, porque ninguém consegue ser um sucesso o tempo todo -, isso vai mostrar pro mundo que eu não fui uma boa mãe, que eu te criei errado, que eu não dei tudo o que poderia ter dado, que eu não fiz tudo o que poderia ter feito, que eu sou um fracasso na tarefa mais difícil de todas que é criar um ser humano e há bilhões deles por todos os lados, criados e se criando. a gente se ajeita como pode e eu preciso aceitar que não poderia ser perfeita, porque nunca fui perfeita em nada, nada. nunca fui o destaque de porra nenhuma, daí o normal é que também não fosse uma mãe perfeita. eu fui a mãe possível. fui a mãe que deu pra ser porque apesar da grande responsabilidade do papel, eu não sou só mãe; tenho outros papéis. sou uma pessoa e foi assim que consegui dessacralizar a minha mãe. vi que a minha mãe tomou decisões na vida primeiro considerando-se uma mulher e depois levando em conta o papel de mãe; depois levando em conta que, na bagagem, sempre levaria dois filhos.
ser a mãe possível é ser a mãe que faz merda, mas que está sempre tentando acertar. claro, a menos que você seja uma psicopata, você nunca vai foder o mental dos seus filhos de propósito. essas coisas são acidentes de percurso; são coisas que acontecem quando a gente trabalha com o que tem, com as ferramentas de que dispõe, dando o amor que a gente recebeu ou não. eu sou a mãe possível que há quase 16 anos em terapia tenta não reproduzir o padrão da minha própria mãe, embora me veja igual a ela em tantos momentos e procure me distanciar disso; isso é um pouco como enxugar gelo porque ela está em mim, por mais que eu negue, por mais que eu tente ir pra longe. a gente se separa no físico, mas no campo subjetivo é um pouco mais difícil. a questão é que agora se trata do meu papel de mãe.
nesse papel, junto com todos os outros, fico com a sensação de que não fui muito boa em nenhum deles. me desmereço por um lado e me acho muito foda por outro. será que um dia você vai perceber que eu fui muito foda dentro das minhas possibilidades de ser foda? ou será que você vai me culpar pra sempre por todas as faltas e traumas e questãs que existiram, existem e existirão? é muita responsabilidade... é como se no momento em que for pra vida, não só você, mas eu também serei colocada à prova. a vida manda as questões, dizendo: vamos ver se a Karla foi uma boa mãe ou uma mãe de merda? e se você falhar, isso atestará minha incapacidade como mãe. bom, incapaz ou capaz, consegui fazer você chegar até aqui... e, não, isso não é o suficiente, mas nunca nada é o suficiente, então dá pra eu ficar em paz, mesmo lutando contra a ambivalência da maternidade, a ambivalência do amor, a ambivalência minha e a sua em relação a mim.
talvez confiar em você, no seu potencial e em toda a sua capacidade de adaptação seja difícil porque eu acho que não consegui te ajudar a desenvolver tudo isso satisfatoriamente. tenho medo de não ter te preparado, por isso tenho receio de te soltar. tenho medo que você fracasse porque isso seria sinal do meu fracasso e sei que isso é muito egocêntrico, mas é como me sinto. acontece que agora é que vem a oportunidade de ver na prática você sendo você, com o que pôde aprender comigo ou não, com o que pôde aprender com tudo o que já viveu; é a oportunidade de ver o que você vai ser capaz de fazer com quem você é, do jeito que é, que está. existem tantos jeitos e maneiras... são tantos os caminhos e quantas as escolhas... que você faça as melhores escolhas, que tenha as melhores experiências, isso é o que eu desejo. que você sempre se lembre que decidir por algo é abrir mão de todo o resto. e que escolher ou não escolher tem consequências, tudo tem. ainda assim, que você se lembre de que decisões podem ser revistas, que acordos podem ser mudados; que apesar de não saber como a vida vai te tratar, não tenho dúvidas da sua bondade, da sua sensibilidade, do seu talento, da sua entrega e da sua inteligência. não permita que te desrespeitem, que te machuquem... olhe sempre pra você primeiro; os outros vêm depois. isso não é ser egoísta; às vezes, isso só quer dizer que você não é otária. vai dar tudo certo, mesmo que de vez em quando dê errado. a vida é safada mesmo e tá sempre brincando com a gente, do jeitinho estúpido e prosaico que só ela tem. com o tempo, você vai se familiarizando.
no mais e pra sempre, te amo.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2022
sobre tirar vícios e colocar outras coisas no lugar deles
faz 55 dias que parei de fumar; não parece muito porque fumei durante mais de 7.500 dias da minha vida. o negócio está desbalanceado por enquanto, mas confesso que estou bem. tenho fugido de escrever sobre isso não porque está sendo difícil, é porque eu não sabia exatamente como seria estar aqui, digitando, sem um cigarro comigo. então eu digo: estou mais preocupada com o fluxo das ideias do que com o cigarro. ele me trazia um senso de continuidade, parece que tudo fluía melhor com um cigarro entre os dedos. eu já falei sobre isso em diversas ocasiões, mas o fato de eu ser asmática, sedentária e fumante não era algo que me favorecesse até então e menos ainda me favoreceria conforme os anos fossem avançando. este ano completo 38 e, apesar de perceber que estou derretendo com o passar do tempo, gosto da ideia de envelhecer - embora o que vem embutido nela (a morte) não me agrade muito.
por ter medo da morte, por não querer ficar doente, por não querer sofrer e por não querer ficar dependente de alguém em razão de uma enfermidade, já vinha considerando parar - sem fazer absolutamente nada pra isso. Continuava fumando em média um maço de cigarros por dia, tendo crises eventuais de tosse, falta de ar durante a madrugada, sentindo forte as mudanças no clima tanto pelo combo rinite/sinusite, quanto pela junção asma/cigarros, mas estava lá, abraçada nele. ai, que sempre fomos tão amigos... escrevi sobre nossa intimidade aqui e aqui. por gentileza, considerem que o primeiro texto é de quase treze anos atrás, tempo em que eu era uma verdadeira imbecil. gosto de como ele se inicia, mas depois descamba pro senso comum de gente otária. ainda bem que os anos passaram.
tirando tudo pelo que passamos juntos e toda a consideração que tinha por ele, eu não o deixei fazendo um esforço grande e, talvez, possa dizer que trapaceei no jogo de largar o vício, uma vez que tive ajuda para isso e nem me dei conta. vejamos, no ano passado, reencontrei o amor. senti-me feliz e leve de uma forma que não imaginava ser possível. a vida foi correndo descontrolada, não porque estivesse negativamente indomável, mas porque eu só não quis segurar as rédeas pelo caminho. claro que essas coisas não acontecem sem medo, e ter iniciado a análise no começo do ano foi me dando segurança para o fato de que pouco temos controle do que é externo a nós, mas ainda estou praticando esse fato, tornando-o palpável dentro da minha realidade. bem, depois do arrebatamento feliz, senti que apesar do amor, estava sem energia, um pouco estuporada, como se tivesse um interruptor que me ligasse e que me desligasse quando na presença dele ou não.
diante da sensação instigante de estar feliz e amando e, ainda assim, não ter muita energia para as outras demandas da vida, numa consulta com meu psiquiatra, falei como me sentia e perguntei se não poderíamos fazer algo. ele aumentou a dose do meu remédio, que ainda era de início de tratamento, embora já o tomasse havia mais de um ano. aos poucos, a nova dosagem foi se colocando e dois meses depois, sem que eu atribuísse isso ao remédio, fui fumando cada vez menos (o medicamento que tomo também é usado por pessoas que querem parar de fumar, mas a minha dosagem nunca havia influenciado no vício até então). de um maço diário, passei a fumar três cigarros por dia e passava outros dois sem fumar. sem esforço, sem fissura, sem sofrimento, sem me dar conta. eu simplesmente não sentia vontade de fumar como antes.
assim estava, até que no dia 19 de novembro, meu outro vício - em redes sociais - teve uma utilidade prática na minha vida. exercitando meus dedos rolando o feed infinito na tela, vi uma postagem que dizia que a indústria tabagista usava animais - cães, gatos, camundongos, coelhos, porquinhos da índia - para fazer testes. o que fazem é basicamente tortura, como colocar uma máscara com fumaça de cigarro na cara do bichinho e fazê-lo inalar essa merda por dez horas diárias para verem o que pode causar. sabe o que pode causar? pode causar câncer, filhos da puta! milhões de imbecis como eu, fumam e sabem exatamente dos riscos que correm, então fiquei indignada de saber que torturam os bichos para descobrir os males que o cigarro pode causar! e já não sabemos?! fiquei puta com toda essa patifaria e disse que não compactuaria mais com essa merda. disse a mim mesma que não colocaria mais um cigarro na minha boca, não sem antes chorar a ponto de soluçar vendo a foto do cachorro com uma venda nos olhos e máscara no focinho inalando fumaça.
eu sei que isso pode soar muito hipócrita da minha parte, uma vez que como carne e não quero entrar nesse mérito. eu sei que pode soar extremamente individualista a minha decisão ter se baseado no fato de eu ter imaginado que poderia ser meu gatinho mais novo, o Suri, naquela situação - porque sempre imagino meus gatos em todas as situações, boas e ruins -, mas também me compadeço por todos os outros animais, apesar de ainda comê-los e, sim, somos contraditórios, precisamos aprender a lidar com isso também. a questã é que desde aquele dia, não fumo mais. já estive em várias ocasiões cercada por fumantes e fiquei bem, sem tremeliques, sem lições de moral, sem bancar a ex-fumante chata porque cada um sabe de si e, eu, sabendo de mim, estou muito melhor sem o cigarro.
falta-me agora instaurar um vício saudável, liberador de endorfinas que me torne uma pessoa ativa e tudo o que o meu recalque não permite que eu admita. consegui me livrar do cigarro, mas ainda não consegui me livrar da persona fumante; ainda acho que "perco" em aura de mistério por não fumar; minha adolescente interna ainda acha que fumar é cool, mas a Karla adulta pensa que cool é não ter enfisema pulmonar, que cool é subir escadas sem colocar os bofes para fora. enfim, muitas habitantes minhas têm opiniões diversas sobre parar de fumar e sobre deixar de ser quem eu era quando fumava e isso envolve anos e anos não só de vício, mas também de armaduras que me serviram, de atitudes que me preservaram, de momentos e situações em que o cigarro foi mesmo um amigo, mas ser adulto é fazer o que nos faz bem, mesmo que a gente não queira. mesmo que a minha adolescente tenha uma crise porque muito da nossa identidade se forjou em cima de uma carteira de cigarros e de tudo o que ela representava pra gente.
parar de fumar é também deixar ir, é calar, é adormecer, é talvez matar muitas vozes dentro de mim, vozes que só querem prazer a satisfação, vozes que não veem consequências, vozes que não se importam com o que fazem comigo porque não sabem distinguir certo e errado; isso poderia caracterizar meu id, mas serve perfeitamente para denotar um comportamento de adolescente desvairado. eu já fui essa adolescente. eu já fui a menina insegura que com um cigarro na mão adquiria superpoderes: o de ser notada, de ser segura, de ser adulta, de ser sensual e misteriosa. lindo! me serviu por muito tempo, me ajudou incontáveis vezes a me sentir melhor comigo mesma. mas o cigarro não pode me definir porque, com o passar dos anos, eu me fiz notar, me senti segura, cresci e fui interessante e sensual e todos os adjetivos positivos que me cabem não graças ao cigarro, mas apesar dele. eu fui tudo isso porque sou tudo isso. os anos me deram isso. todas as coisas boas e todos os acontecimentos majoritariamente cagados da minha vida me fizeram ser essa mulher incrivelmente foda que eu sou e o cigarro estava ali do ladinho, mas não foi por causa dele que vivi nenhuma dessas experiências. sou eu, e todas as várias da minha mente que me trouxeram até aqui. sou tantas que os outros não veem e sou muitas mais que nem conheço, mas algumas delas, deixo ir, e quando elas se vão é porque outras já surgiram e, assim, seguimos.
bebam água.