segunda-feira, 22 de agosto de 2022

sobre morrer de raiva

foi no mês passado e eu quis esperar um tempo a mais para escrever a respeito porque achei que poderia estar comemorando antes da certeza, daí poderia ser punida por alguma ironia da vida, mas agora, tenho segurança de que não morrerei de raiva - mas talvez morra, vai saber...

a gente fala em sentir raiva e pensa no quê? olhos faiscantes, cara retraída, perdigotos expelidos aos berros; é uma emoção genuína, primal, daquelas que nos levam de volta aos cinco anos de idade cada vez que algo não sai como planejamos ou quando somos contrariados em nossos desejos. sentir raiva e frustração se jogando no chão, batendo o pé, esperneando, fazendo birra. 

quando a gente cresce, vai aprendendo a enfiar a raiva no cu. a gente aprende a não demonstrar a maioria das coisas que sente, daí viram isso, "coisas", sentimentos e emoções inomináveis diante dos quais não sabemos como agir, e é então que aparece o nosso pequeno eu, aquele que é ainda um animalzinho no processo de castração, que ainda está se moldando ao que a sociedade espera dele.

quando somos pequenos nos deixamos levar pelas emoções e eu me deixei levar quando, naquele dia, parei o carro no meio da rua, a caminho do trabalho, para ver o que parecia ser um sagüi sobre o asfalto, mas entre a via e o chão batido. ele estava com a cara voltada para o chão, com as maõzinhas espalmadas ao lado da cabeça, os pezinhos esticados junto com a cauda que media metade do seu tamanho e estava toda armada, como uma pinha fofa.

ele não se mexia; à primeira vista, parecia estar morto. eu, então, o cutuquei e percebi que ele inspirou profundamente; tinha vida ali! eu já estava nervosa e não sabia o que fazer. eu queria pegá-lo, mas tinha medo de sentir em minhas mãos que aquele pequeno corpinho poderia estar todo quebrado por dentro. tive receio de que se desconjuntasse, se esparramasse, que eu não pudesse contê-lo. Por sorte, havia um pano de praia no porta-malas do carro. Dobrei-o e fui com ele nas mãos tentar pegar o sagüi, que não mostrou nenhuma resistência. Coloquei-o em meu colo e fui para o estacionamento do meu trabalho que era apenas uns poucos metros à frente. eu falava para o macaco: "vai ficar tudo bem, amiguinho".

segue, então, uma parte que não será detalhada, mas que envolve a ida a três lugares diferentes até que chegássemos a


o quarto lugar, esse sim, apto a receber o animal.

durante o período em que estive com o pequeno, apesar de haver um pano entre nós, eu fiquei com ele por cerca de três horas. em mais ou menos metade desse tempo, ele ficou no meu colo enquanto eu dirigia. acordado o tempo todo, ele emitia uns silvos que me davam medo porque eu não sabia se eram de dor ou um pedido de ajuda para os seus. ele não tinha forças para andar, mas em alguns momentos parecia que estava tentando ficar em pé, dando impulso com suas perninhas. durante a outra metade do tempo, ele fez a viagem dentro de uma caixa de papelão - com alguns furos para que ele pudesse respirar -, junto com o pano de praia. às vezes, ele arranhava a caixa querendo sair; noutras, ficava em silêncio.

eu toquei seu pelo muito macio algumas vezes. tanto a pelagem fofa quanto a cara de coitado me lembraram a Chico, minha gata. pude vê-la nos olhinhos dele, tão assustadoramente humanos. ele parecia um pequeno adulto no meu colo. via sua boquinha entreaberta e conseguia enxergar seus mini mini dentes. o bichinho era uma obra perfeita e tão vulnerável diante da sua fortuna. a sorte dele poderia ter sido também a minha. meu destino e minha vida poderiam ter sido selados por aquele bichinho indefeso e adorável porque eu havia me solidarizado com ele.

em duas da três paradas que mencionei antes, comecei a perceber que meu bom gesto poderia ter consequências não calculadas. no primeiro lugar, quando viram o sagüi já disseram que eu deveria ter cuidado porque animais silvestres são vetores de doenças, e eu carregando a criatura no colo como se fosse um bebê reborn. eu estava tão fora de mim, no misto de defensora de animais e de senhora compadecida com a dor alheia, que sequer havia me lembrado de que se tratava de um animal silvestre - silvestre como se está praticamente no quintal da universidade? - eu pensei, em um lampejo de imbecilidade... 

entre um lugar e outro fui me dando conta de que tinha agido de maneira impulsiva mas que, no momento em que o resgatei, me tornei responsável por ele. me senti a porra da raposa do pequeno príncipe. eu poderia ter sido uma escrota e tê-lo jogado em qualquer canto porque, né, foda-se! ele não era problema meu, mas eu o havia tornado meu problema quando o peguei. como eu iria viver bem comigo mesma se não tivesse ajudado aquele sagüi, ou pior, se o tivesse tirado da cara no asfalto com o intuito de fazer algo por ele, mas tivesse desistido no meio do caminho porque não havia nenhum filho da puta disposto a fazer alguma coisa por aquela vida que parecia tão insignificante aos olhos de todo o resto da gente?!

as pessoas pelas quais eu passei me fizeram sentir medo e culpa por tentar ajudar o animal que, até aquele momento, eu achava que poderia ter sido atropelado (abre-se aqui um parêntese para dizer que não, não havia me ocorrido que se um bichinho daquele tamanho e porte tivesse sido atropelado eu sequer seria capaz de identificar a que espécie ele pertencia), até que uma dessas pessoas disse que ele poderia ter levado um choque e caído do poste, pois era comum que recebessem ligações pedindo ajuda por essa razão. foi quando notei que isso fazia total sentido, pois ele estava no chão bem abaixo da linha do fio de luz do poste da rua em que o peguei.

depois de toda a romaria para conseguir encontrar um lugar que pudesse acolhê-lo adequadamente, chegamos ao parque estadual que recebia animais silvestres que precisassem de atendimento veterinário. a minha preocupação ao deixá-lo era de saber se, caso ele ficasse bom, seria devolvido para a mesma rua em que eu o havia encontrado porque estava preocupada com a família dele, e pensei que se ele voltasse apenas à natureza, tipo aquela natureza do parque, não seria a mesma vizinhança à que ele estava acostumado. pensei nos vínculos familiares do macaco; me senti uma filha da puta por tê-lo tirado de lá e por, talvez, ser a responsável por ele nunca mais ver a família dele. dito isso, o senhor que o recebeu me assegurou de que os animais recuperados sempre eram devolvidos aos lugares em que tinham sido encontrados; isso me deixou com menos peso na consciência. 

deixei-o lá, me despedi, desejei que ficasse bem, mas senti enorme alívio por ter me livrado do fardo peludo. tinha cumprido minha missão. depois de cerca de 40 quilômetros percorridos no processo, me senti sugada pelos pensamentos todos que o macaco me suscitou. pensei muito nele, mas pensei também muito em mim. benevolência, culpa, remorso, raiva, angústia e mais um monte de outros sentimentos e sensações passaram pela minha cabeça e pelos meus intestinos. que tipo de pessoa eu era? uma boa pessoa burra? uma pessoa boa impulsiva? uma pessoa irresponsável? que diabo de pessoa se coloca em risco sem nem se dar conta de que está fazendo isso? honestamente, acho que qualquer pessoa um pouco mais desatenta para os perigos racionais estaria sujeita ao mesmo risco que eu.

e por que eu falo tanto de riscos, perigos e o caralho? porque no final da tarde daquele dia, eu recebi uma ligação do parque avisando que o sagüi havia morrido e pedindo que eu buscasse um centro de saúde para tomar a vacina antirrábica porque eu havia tido contato direto com o animal e havia a possibilidade dele ter morrido com raiva; não em decorrência dela porque parecia que a causa da morte tinha sido a queda mesmo, mas ele poderia estar contaminado com o vírus. uma amostra de sangue dele havia sido enviada para testagem, mas o resultado só sairia em 15 dias (!). a ligação foi lá pelas 18h15, momento em que comecei a entrar em pânico. eu disse que não havia sido nem mordida, nem lambida, nem arranhada, nem nada pelo macaco. eu disse que o macaco não tinha nenhum machucado, nem tinha qualquer secreção saindo de seu corpo. ele não babava e nem estava agressivo, mas a sujeita que falou comigo disse que eu deveria procurar o centro de saúde por precaução.

a partir daquele instante, comecei a buscar no google informações sobre a transmissão de raiva, sobre os horários de atendimento dos postos de saúde. liguei para minha sobrinha que trabalha na área da saúde e mandei mensagem desesperada para um amigo que é médico. eram quase 19h quando saí de casa rumo ao pronto-socorro na tentativa de tomar a vacina porque o destino do macaco já havia sido selado e o meu ainda parecia atrelado ao dele.

depois de perder tempo no pronto-socorro pela lotação e por não haver a vacina lá; depois de conversar com a minha sobrinha e com o meu amigo, e de ter sido tranquilizada por eles, a melhor ideia era voltar para casa e procurar o hospital certo na manhã seguinte. naquele noite, não dormi direito pensando que o vírus da raiva poderia já estar se espalhando pelo meu corpo. procurando pelos sintomas da doença era um grande ironia saber que eu tinha a maior parte deles: mal-estar geral, náusea, inquietude, sensação de angústia e irritabilidade, mas esses são sintomas que a população em geral tem nos dias de hoje pelo simples fato de estarmos todos vivos nessa porra de país.

me senti confusa, triste, angustiada de pensar que eu poderia morrer, acabar, encerrar minha existência, virar adubo - e tudo isso de uma forma horrível! - espumando, enraivecida, até que entrasse em coma e  finalmente fosse embora em alguns dias... pensei que ficaria tensa durante todo o período em que o vírus poderia estar incubado em mim, se preparando para me atacar, para me obrigar a mostrar o meu lado mais grotesco e eu senti raiva de mim por talvez ter me contaminado com raiva. que inferno! vida filha da puta querendo me foder até na hora de me matar, eu pensei. você sabe quantas pessoas se recuperaram da raiva depois de tê-la contraído? somente cinco pessoas no mundo inteiro! na porra do mundo inteiro e é bem óbvio que eu não faria parte dessa estatística porque pior do que morrer de raiva é sobreviver a ela, já que essas pessoas ficaram com sequelas. pelo menos essa sorte eu teria, de morrer de uma vez.

no outro dia, cedo, eu já estava na sala de espera do hospital para ser atendida, para ser vacinada, eu achava. Sabrina é o nome da enfermeira que prestou meu primeiro atendimento. ela foi muito atenciosa e humana, dizendo que eu poderia "acalmar meu coração" porque o simples contato com o pelo do animal, sem haver lesões em mucosas ou coisa parecida, não seria o suficiente para me contaminar, mesmo que o macaco tivesse raiva. saí de lá mais tranquila, mas não totalmente confiante. cada vez que meu telefone tocava, eu atendia pensando que seria alguém do centro e zoonoses dizendo que o macaco tinha raiva e ter raiva me enchia de medo.

tinha medo de morrer contra a minha vontade, medo de morrer só por ter sido boa, só por ter sido compassiva, me senti injustiçada antecipadamente, para logo em seguida pensar que a vida não é justa, que na verdade certas coisas só são como são e ponto. depois que acontecem a gente pode se perguntar por que, mas se culpar não muda acontecimentos, fatos que se sucedem apenas porque estamos vivos e, vivendo, estamos sujeitos a qualquer coisa do mundo. está tudo posto, todas as possibilidades estão diariamente à nossa frente, mas na maior parte das vezes, a gente nem se dá conta disso porque está seguindo a cartilha, fazendo o planejado, cumprindo o cronograma.

curioso é que justamente no dia em que eu saí pouquinha coisa da minha rotina, tomando café da manhã na padaria - coisa que faço quase nunca -, foi quando eu passei pela rua precisamente naquela hora e prestei atenção a algo que parecia destoar do caminho. naquele dia, eu desviei do meu caminho. mas quando é que a gente não desvia, não é? mesmo o dia mais monótono e parecido com todos os dias anteriores a ele é apenas isso, parecido. algo sempre muda; estamos sempre desviando, como adultos ou como crianças, por amor ou com raiva, o caminho é o desvio.


                                      

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

sobre o que é mais importante

Cheguei. Quando saí da casa do Danilo até senti a brisa mais forte, mas na medida em que fui andando, aquele suor seco voltou a me molhar o corpo, como um grude tropical, a brea. Cheguei e servi-me de um copo gelado de água; um copo de inox, daqueles muito comuns no meu tempo de infância, mas esse é mais baixo, mais gordinho, não tinha a função de servir bebida, mas sim de guardar a pasta e escova de dentes da Ana. Estava no box do seu banheiro, com o fundo encardido de lodo de banheiro; lodinho de baba, de vapor de água, de restinhos de coisas de banho. Depois que ela foi embora, eu quis limpar o banheiro e dei nova função ao copo. Lavei-o bem; inox não pega cheiro nem gosto de nada e agora é meu favorito. Ele serve 300ml; eu medi.

Cheguei e vim aqui escrever. Tirei toda a roupa, e agora o sutiã porque me aperta. Não queria me esquecer e nem conectei a internet no computador; vim aqui antes porque não queria me esquecer, eu já disse. Vou começar do começo do dia então.

Quando estávamos tomando café da manhã, vi na rede social que a Rússia havia invadido a Ucrânia e disse: está vendo?! a gente fica transando e não sabe o que tá acontecendo no mundo! E daí comecei a ler e ouvir e a me entupir com as notícias. Você foi embora e eu até trabalhei durante a manhã. Enquanto almoçava, ouvia o jornal. Passei o restante da tarde na drogadição digital e, ao mesmo tempo em que limpava as caixas de areia dos gatos, ouvia um cara dizer que desde a Segunda Guerra não havia uma invasão como essa a um país. Percebi que o desinfetante estava acabando e também tive a sensação de que ele se embananou um pouco em relação ao que falava. Senti vergonha por ele e pensei em todos os outros países que estão em guerra neste exato momento – e eu nem sou boa ou entendida de geopolítica –, mas que não fazem parte da Europa, talvez por isso sejam desimportantes para os noticiários, ou talvez porque eles não tenham armas de destruição em massa ou talvez porque não sei, como disse, não sou boa no assunto.

Apesar da apreensão criada pela mídia, parece que a Terceira Guerra tem poucas chances de acontecer, acho que o mercado reagiria mal (sério, Karla?) – e Danilo tinha me convidado pra ir à casa dele. Eu devia a visita e disse que iria às 18h. já passava do horário e, depois de lavar a louça, coloquei minha calça nova – costurada especialmente para mim e muitíssimo bem-feita e acabada – e saí de casa com o saco de areia suja dos gatos e a chave do carro. Coloquei a areia no contêiner e olhei para o carro. Já era final da tarde e pensei que seria uma boa ideia ir a pé até lá; movimentaria o corpinho amorfo. Olhei para a chave, olhei para o carro, pensei com meus botões, falei com 32 habitantes de mim e decidi fazer o diferente: resolvi ir andando, bravamente andando. De chinelo, com sutiã apertado, calça nova, bolsa transversal no peito, fone nos ouvidos e notícias da invasão russa comendo a minha mente.

Vou andando e desviando de alguns cocôs de cachorro pelo caminho; chego à rodovia e me sinto importante porque os carros param para que eu atravesse. Corto o caminho passando por cima de uma cerca de metal caída no chão; passo pelas capelas funerárias e vejo que não tem ninguém sendo velado naquele momento. Atravesso a rua novamente e ando pela frente do cemitério que tanto gosto. Vou passando por mais umas duas ou três ruas até que entro na rua que vai dar no prédio dele, lááá em cima. Vou andando e olhando para o chão. Evito ficar olhando para frente na intenção de enganar meu cérebro; acho que se ele não vir a altura do diabo da rua vai me fazer cansar menos. Descubro que meu cérebro é muitíssimo esperto e que não haveria nenhuma chance de ele não perceber o quão íngreme é aquela ruela do inferno. Paro no meio do caminho para pegar um ar. A máscara já está pendurada na orelha esquerda; respiro pela boca e tenho a impressão de que vou morrer. Sigo. Quando finalmente chego ao topo, apoio-me num muro amarelo queimado arfando. Sinto o suor escorrer pela bunda e por todos os poros do meu corpo. Depois de uns bons segundos, dou mais uns passos e chego ao portão. Digito a senha, a porta abre, entro. Depois, faço a mesma coisa de novo. Aperto o botão do elevador, entro nele e chego no andar. Coloco a mão na maçaneta e a porta estava aberta. Chamo pelo Danilo e ninguém responde, só os gatos. Procuro o controle do ar condicionado e busco com os olhos um galão de água na cozinha, mas não encontro. Procuro um filtro na torneira da lavanderia, nada também. Fico puta porque todas as vezes que chego lá, nunca tem água mineral, porra!

Mando mensagem perguntando onde está, ele diz que se esqueceu de mim e escreve: “Bethânia”. Reclamo que vim a pé, que não tem água e digo que não vou mais lá. Penso que já que estava toda derretida mesmo, ia gastar a luz dele colocando o ar-condicionado no mínimo e assistir, por que não, um pouco mais de jornal e ficar mais por dentro da invasão russa – porque alienação “informativa” nunca é demais. Tiro minha calça suada e a coloco sobre o encosto da cadeira. Pego uma toalha para colocar no sofá dele e poder me sentar com a minha bunda suada sobre o novo tecido – que não é suede, mas é muito bonito.

Me alieno mais um tanto nas redes sociais e converso um pouco com você, que me sugere dar uma olhada na geladeira. Excelente ideia! Faço um sanduíche com manteiga, mussarela de búfala e presunto defumado. Abro um energético e encontro na despensa um saco de stroopwafel de canela – nunca tinha comido e acho muito bom. Como os quatro que havia, mas no último já vejo que não gostaria mais de comer aquilo em muitos meses. Decido, então, assistir ao último episódio de uma série curta, engraçada e desgraçada. Quando faltavam menos de dez minutos para que ela acabasse, a porta se abre e o Danilo aparece cheio de sacolas junto com uma moça e ele não me vê de cara. Eu me assusto de ver que não era a Thaís junto com ele e me sinto levemente constrangida por estar de camiseta e calcinha na casa do meu ex-marido enquanto ele chega acompanhado e eu estou no sofá assistindo tv.

Ha ha ha aqui e acolá, coloco a calça enquanto digo que a havia tirado porque a rua dele era muito íngreme e tinha feito minha bunda suar, sendo que qualquer calor faz a minha bunda e todo o resto suar. Ele me pergunta de você e eu digo que nos veremos logo mais. Eu acabo a série um pouco indignada com o final que ela tem, dou um beijo na moça, despedindo-me e me desculpando pelo suor, pego uns pedaços fininhos da carne que estava no forno e eu nem sabia, dou um beijo no Danilo e vou-me embora.

Fico impressionada como descer a rua é muito mais rápido do que subi-la, apesar de também demandar um pouco de atenção e nenhuma pressa. Vou caminhando tranquila e passando pela frente do cemitério de novo. Olho lá para dentro e vejo que, mais adiante, o portão ainda está aberto. Fico animada e resolvo entrar, só para dar um passeio rápido. Vejo que o passeio não vai mesmo poder se alongar porque estou de chinelos e porque, durante a noite, as baratas estão por toda a parte ali. Vejo até um pequeno conluio com quatro juntas; talvez estejam armando para me atacar, mas eu não lhes dou intimidade. Continuo andando, meio marchando, com medo que uma delas suba pelos meus pés. Sinto-me um pouco importante como quando atravesso a rodovia, porque parece que abrem caminho para que eu passe; são muitas.

Enquanto cuido para não as pisar, converso com as lápides, falando sozinha. Falo para os moradores do cemitério o que está acontecendo fora dali porque acho que eles não ficam muito por dentro das notícias. Passo em frente à lápide de uma mocinha que nascera em 1997 e que morrera no ano passado; penso como era jovenzinha, mas não sou capaz de fazer as contas para descobrir quantos anos tinha... no meio da conversa, penso que a guerra é mais um meio de ir parar ali. Acho que é melhor ir embora por causa das baratas e voltar em um fim de tarde, quando elas estejam escondidas e eu possa ver bem as lápides e descobrir as “famosas”, penso. As “importantes”, penso. As “históricas”, penso. Daí me corrijo, porque para quem ficou, quem morreu era importante ou histórico ou famoso praquela pessoa. Saio do cemitério e passo de novo pelas capelas funerárias. Agora há um velório tímido acontecendo e um homem sozinho está sentado no banco em frente a ela. Ele olha para o vazio e parece consternado. De novo, penso na guerra, no cemitério, na morte que se evita a todo custo, mas na vida que também pouco vale, ou que não vale nada. Sinto por ele, sinto por todos que não puderam escolher fazer parte ou não do momento que estão vivendo, do momento que nós todos estamos vivendo, que o mundo está vivendo, daí, por um segundo, penso que uma guerra de proporções atômicas, que acabasse com a gente de uma vez por todas, talvez não fosse tão ruim assim.

Volto-me para mim e sigo. Passo novamente pela cerca caída e penso que a atriz de fleabag sempre se dá mal nas séries que ela escreve. Caminho mais um pouco e logo chego em casa. Sinto saudades da Ana. Escrevo. Vou tomar banho e te espero. Chega de notícias por hoje.

 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

sobre despedidas, luto e elaborações

minha cabeça está explodindo. é depois de amanhã e eu vou junto, vou te levar, vou te deixar lá, mas é depois de amanhã que você vai embora. eu falei que queria que você fosse um passarinho e aprendesse a voar... bom, tô abrindo a gaiola, tô abrindo mão do controle, não que eu tivesse muita escolha... não é um favor que estou te fazendo, é só a vida chamando, mesmo que não seja da maneira que eu esperava porque também a vida caga muito pro que a gente espera dela... agora estou tendo que lidar com tantas coisas aqui dentro... com o ninho que vai se esvaziar e que vou precisar preencher de mim mesma. fui muito besta de achar que seria fácil, que eu estava preparada pra isso, mas é porque a gente nunca está preparado pra morte. é, sim, é uma morte. enquanto você crescia e mudava de fases - e eu já disse isso antes -, enquanto você deixava de ser um bebê pra se tornar uma criança, quando passava de criança a menina, de menina a menino, de menino a adolescente experimentadora... em todas essas fases, era como se tirassem uma pessoa e colocassem outra no lugar dela, porque um dia você já não era mais o meu neném, mas ainda era lá dentro, só a aparência ia mudando e você ia criando camadas, novos contornos de si, novas formas de ser mais um pouco, de se tornar e foi se tornando, se modificando... eu sentia que te tiravam de mim, mas colocavam outra no lugar e eu não notava porque você continuava aqui, debaixo da minha asa de galinha cacarejante, mesmo quando você já estava percebendo que as suas asas batiam nas paredes de casa, que estava ficando pequena pra você porque o limite da ave é o céu; só esqueceram de falar isso pra mãe dos pintinhos, passarinhos, avezinhas - me coloquei como galinha porque me parece mais maternal do que uma passarinha qualquer, abstraiam a mistura dos seres de penas.

daí vem a morte, porque um pedaço meu vai indo pela vida. foi ela que foi mudando você, mas fui eu que cuidei de você enquanto ela te mudava diante dos meus olhos cotidianos que não se apercebiam de que esse dia iria chegar. o dia em que você vai voar sozinha e que eu vou me encher de vazio de não te ter mais aqui. dia em que vou me encher de culpa porque se você falhar diante da vida - e você vai, porque ninguém consegue ser um sucesso o tempo todo -, isso vai mostrar pro mundo que eu não fui uma boa mãe, que eu te criei errado, que eu não dei tudo o que poderia ter dado, que eu não fiz tudo o que poderia ter feito, que eu sou um fracasso na tarefa mais difícil de todas que é criar um ser humano e há bilhões deles por todos os lados, criados e se criando. a gente se ajeita como pode e eu preciso aceitar que não poderia ser perfeita, porque nunca fui perfeita em nada, nada. nunca fui o destaque de porra nenhuma, daí o normal é que também não fosse uma mãe perfeita. eu fui a mãe possível. fui a mãe que deu pra ser porque apesar da grande responsabilidade do papel, eu não sou só mãe; tenho outros papéis. sou uma pessoa e foi assim que consegui dessacralizar a minha mãe. vi que a minha mãe tomou decisões na vida primeiro considerando-se uma mulher e depois levando em conta o papel de mãe; depois levando em conta que, na bagagem, sempre levaria dois filhos.

ser a mãe possível é ser a mãe que faz merda, mas que está sempre tentando acertar. claro, a menos que você seja uma psicopata, você nunca vai foder o mental dos seus filhos de propósito. essas coisas são acidentes de percurso; são coisas que acontecem quando a gente trabalha com o que tem, com as ferramentas de que dispõe, dando o amor que a gente recebeu ou não. eu sou a mãe possível que há quase 16 anos em terapia tenta não reproduzir o padrão da minha própria mãe, embora me veja igual a ela em tantos momentos e procure me distanciar disso; isso é um pouco como enxugar gelo porque ela está em mim, por mais que eu negue, por mais que eu tente ir pra longe. a gente se separa no físico, mas no campo subjetivo é um pouco mais difícil. a questão é que agora se trata do meu papel de mãe.

nesse papel, junto com todos os outros, fico com a sensação de que não fui muito boa em nenhum deles. me desmereço por um lado e me acho muito foda por outro. será que um dia você vai perceber que eu fui muito foda dentro das minhas possibilidades de ser foda? ou será que você vai me culpar pra sempre por todas as faltas e traumas e questãs que existiram, existem e existirão? é muita responsabilidade... é como se no momento em que for pra vida, não só você, mas eu também serei colocada à prova. a vida manda as questões, dizendo: vamos ver se a Karla foi uma boa mãe ou uma mãe de merda? e se você falhar, isso atestará minha incapacidade como mãe. bom, incapaz ou capaz, consegui fazer você chegar até aqui... e, não, isso não é o suficiente, mas nunca nada é o suficiente, então dá pra eu ficar em paz, mesmo lutando contra a ambivalência da maternidade, a ambivalência do amor, a ambivalência minha e a sua em relação a mim.

talvez confiar em você, no seu potencial e em toda a sua capacidade de adaptação seja difícil porque eu acho que não consegui te ajudar a desenvolver tudo isso satisfatoriamente. tenho medo de não ter te preparado, por isso tenho receio de te soltar. tenho medo que você fracasse porque isso seria sinal do meu fracasso e sei que isso é muito egocêntrico, mas é como me sinto. acontece que agora é que vem a oportunidade de ver na prática você sendo você, com o que pôde aprender comigo ou não, com o que pôde aprender com tudo o que já viveu; é a oportunidade de ver o que você vai ser capaz de fazer com quem você é, do jeito que é, que está. existem tantos jeitos e maneiras... são tantos os caminhos e quantas as escolhas... que você faça as melhores escolhas, que tenha as melhores experiências, isso é o que eu desejo. que você sempre se lembre que decidir por algo é abrir mão de todo o resto. e que escolher ou não escolher tem consequências, tudo tem. ainda assim, que você se lembre de que decisões podem ser revistas, que acordos podem ser mudados; que apesar de não saber como a vida vai te tratar, não tenho dúvidas da sua bondade, da sua sensibilidade, do seu talento, da sua entrega e da sua inteligência. não permita que te desrespeitem, que te machuquem... olhe sempre pra você primeiro; os outros vêm depois. isso não é ser egoísta; às vezes, isso só quer dizer que você não é otária. vai dar tudo certo, mesmo que de vez em quando dê errado. a vida é safada mesmo e tá sempre brincando com a gente, do jeitinho estúpido e prosaico que só ela tem. com o tempo, você vai se familiarizando.

no mais e pra sempre, te amo.





quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

sobre tirar vícios e colocar outras coisas no lugar deles

faz 55 dias que parei de fumar; não parece muito porque fumei durante mais de 7.500 dias da minha vida. o negócio está desbalanceado por enquanto, mas confesso que estou bem. tenho fugido de escrever sobre isso não porque está sendo difícil, é porque eu não sabia exatamente como seria estar aqui, digitando, sem um cigarro comigo. então eu digo: estou mais preocupada com o fluxo das ideias do que com o cigarro. ele me trazia um senso de continuidade, parece que tudo fluía melhor com um cigarro entre os dedos. eu já falei sobre isso em diversas ocasiões, mas o fato de eu ser asmática, sedentária e fumante não era algo que me favorecesse até então e menos ainda me favoreceria conforme os anos fossem avançando. este ano completo 38 e, apesar de perceber que estou derretendo com o passar do tempo, gosto da ideia de envelhecer - embora o que vem embutido nela (a morte) não me agrade muito.

por ter medo da morte, por não querer ficar doente, por não querer sofrer e por não querer ficar dependente de alguém em razão de uma enfermidade, já vinha considerando parar - sem fazer absolutamente nada pra isso. Continuava fumando em média um maço de cigarros por dia, tendo crises eventuais de tosse, falta de ar durante a madrugada, sentindo forte as mudanças no clima tanto pelo combo rinite/sinusite, quanto pela junção asma/cigarros, mas estava lá, abraçada nele. ai, que sempre fomos tão amigos... escrevi sobre nossa intimidade aqui e aqui. por gentileza, considerem que o primeiro texto é de quase treze anos atrás, tempo em que eu era uma verdadeira imbecil. gosto de como ele se inicia, mas depois descamba pro senso comum de gente otária. ainda bem que os anos passaram.

tirando tudo pelo que passamos juntos e toda a consideração que tinha por ele, eu não o deixei fazendo um esforço grande e, talvez, possa dizer que trapaceei no jogo de largar o vício, uma vez que tive ajuda para isso e nem me dei conta. vejamos, no ano passado, reencontrei o amor. senti-me feliz e leve de uma forma que não imaginava ser possível. a vida foi correndo descontrolada, não porque estivesse negativamente indomável, mas porque eu só não quis segurar as rédeas pelo caminho. claro que essas coisas não acontecem sem medo, e ter iniciado a análise no começo do ano foi me dando segurança para o fato de que pouco temos controle do que é externo a nós, mas ainda estou praticando esse fato, tornando-o palpável dentro da minha realidade. bem, depois do arrebatamento feliz, senti que apesar do amor, estava sem energia, um pouco estuporada, como se tivesse um interruptor que me ligasse e que me desligasse quando na presença dele ou não.

diante da sensação instigante de estar feliz e amando e, ainda assim, não ter muita energia para as outras demandas da vida, numa consulta com meu psiquiatra, falei como me sentia e perguntei se não poderíamos fazer algo. ele aumentou a dose do meu remédio, que ainda era de início de tratamento, embora já o tomasse havia mais de um ano. aos poucos, a nova dosagem foi se colocando e dois meses depois, sem que eu atribuísse isso ao remédio, fui fumando cada vez menos (o medicamento que tomo também é usado por pessoas que querem parar de fumar, mas a minha dosagem nunca havia influenciado no vício até então). de um maço diário, passei a fumar três cigarros por dia e passava outros dois sem fumar. sem esforço, sem fissura, sem sofrimento, sem me dar conta. eu simplesmente não sentia vontade de fumar como antes.

assim estava, até que no dia 19 de novembro, meu outro vício - em redes sociais - teve uma utilidade prática na minha vida. exercitando meus dedos rolando o feed infinito na tela, vi uma postagem que dizia que a indústria tabagista usava animais - cães, gatos, camundongos, coelhos, porquinhos da índia - para fazer testes. o que fazem é basicamente tortura, como colocar uma máscara com fumaça de cigarro na cara do bichinho e fazê-lo inalar essa merda por dez horas diárias para verem o que pode causar. sabe o que pode causar? pode causar câncer, filhos da puta! milhões de imbecis como eu, fumam e sabem exatamente dos riscos que correm, então fiquei indignada de saber que torturam os bichos para descobrir os males que o cigarro pode causar! e já não sabemos?! fiquei puta com toda essa patifaria e disse que não compactuaria mais com essa merda. disse a mim mesma que não colocaria mais um cigarro na minha boca, não sem antes chorar a ponto de soluçar vendo a foto do cachorro com uma venda nos olhos e máscara no focinho inalando fumaça.

eu sei que isso pode soar muito hipócrita da minha parte, uma vez que como carne e não quero entrar nesse mérito. eu sei que pode soar extremamente individualista a minha decisão ter se baseado no fato de eu ter imaginado que poderia ser meu gatinho mais novo, o Suri, naquela situação - porque sempre imagino meus gatos em todas as situações, boas e ruins -, mas também me compadeço por todos os outros animais, apesar de ainda comê-los e, sim, somos contraditórios, precisamos aprender a lidar com isso também. a questã é que desde aquele dia, não fumo mais. já estive em várias ocasiões cercada por fumantes e fiquei bem, sem tremeliques, sem lições de moral, sem bancar a ex-fumante chata porque cada um sabe de si e, eu, sabendo de mim, estou muito melhor sem o cigarro.

falta-me agora instaurar um vício saudável, liberador de endorfinas que me torne uma pessoa ativa e tudo o que o meu recalque não permite que eu admita. consegui me livrar do cigarro, mas ainda não consegui me livrar da persona fumante; ainda acho que "perco" em aura de mistério por não fumar; minha adolescente interna ainda acha que fumar é cool, mas a Karla adulta pensa que cool é não ter enfisema pulmonar, que cool é subir escadas sem colocar os bofes para fora. enfim, muitas habitantes minhas têm opiniões diversas sobre parar de fumar e sobre deixar de ser quem eu era quando fumava e isso envolve anos e anos não só de vício, mas também de armaduras que me serviram, de atitudes que me preservaram, de momentos e situações em que o cigarro foi mesmo um amigo, mas ser adulto é fazer o que nos faz bem, mesmo que a gente não queira. mesmo que a minha adolescente tenha uma crise porque muito da nossa identidade se forjou em cima de uma carteira de cigarros e de tudo o que ela representava pra gente. 

parar de fumar é também deixar ir, é calar, é adormecer, é talvez matar muitas vozes dentro de mim, vozes que só querem prazer a satisfação, vozes que não veem consequências, vozes que não se importam com o que fazem comigo porque não sabem distinguir certo e errado; isso poderia caracterizar meu id, mas serve perfeitamente para denotar um  comportamento de adolescente desvairado. eu já fui essa adolescente. eu já fui a menina insegura que com um cigarro na mão adquiria superpoderes: o de ser notada, de ser segura, de ser adulta, de ser sensual e misteriosa. lindo! me serviu por muito tempo, me ajudou incontáveis vezes a me sentir melhor comigo mesma. mas o cigarro não pode me definir porque, com o passar dos anos, eu me fiz notar, me senti segura, cresci e fui interessante e sensual e todos os adjetivos positivos que me cabem não graças ao cigarro, mas apesar dele. eu fui tudo isso porque sou tudo isso. os anos me deram isso. todas as coisas boas e todos os acontecimentos majoritariamente cagados da minha vida me fizeram ser essa mulher incrivelmente foda que eu sou e o cigarro estava ali do ladinho, mas não foi por causa dele que vivi nenhuma dessas experiências. sou eu, e todas as várias da minha mente que me trouxeram até aqui. sou tantas que os outros não veem e sou muitas mais que nem conheço, mas algumas delas, deixo ir, e quando elas se vão é porque outras já surgiram e, assim, seguimos.

bebam água.