sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Legião

Tenho medo de dormir. Fico com os olhos arregalados diante da luz do monitor; meu corpo não se aquieta e tenho medo de dormir. Medo porque sei que no meio da madrugada, meu coração vai dar pulos tão fortes que vou ter a sensação de que me salta à boca, e isso me desespera.

Sono até tenho, mas tenho medo de pensar. O Torpe sempre chega mostrando o pior, o mais escroto do que pode haver, e é ele que me faz tremer, que me descontrola. Quando ele já está sentadinho à mesa da cozinha em que fica a minha mente, e começa a me dizer todos os impropérios que uma tia velha, invejosa e frustrada diria, o Razoável sai lá de dentro, dos cafundós emaranhados de mim pra vir ver o que está acontecendo.

Quando o Razoável chega, começa a briga. Torpe e Razoável não se dão muito bem, e por bastante tempo o descontrole do primeiro sapateou no meu palquinho; fez e desfez; mandou mais do que filho escroto de pais quarentões de primeira viagem. Era o caos.

O que controla vivia numa letargia, a base de conformismo, dor de barriga, preguiça e fome. Ele ficava numa cama grande, gordinho, vendo a merda ficar cada dia mais fedida, mas sem se manifestar, porque o básico, afinal, ele tinha.

Mas agora Razoável percebeu que precisava de dieta, que a casa estava uma zona e que a porra do Torpe não poderia mais mandar na bagaça dessa maneira! E ele achou que seria fácil... Ledo engano, pois enquanto ele rolava nos lençóis macios do comodismo, Torpe aprontava sem parar, sem parar, sem parar. Possuído. Dê-me comida, dê-me sexo, dê-me amor. Dê-me. Dê-me mais. Dê-me agora!

Essas coisinhas quando se automatizam são como uma praga. A sorte é que o apaziguador contou com os chacoalhões muito úteis de alguém que nem morava naquela bagunça. Essa pessoa foi quem primeiro brigou feio com o Torpe; deixou-o ensandecido, com os olhos faiscantes de ódio, de contrariedade, de orgulho, soberba e arrogância. E quando essa pessoa fez isso, Torpe se sentiu tão atingido, tão humilhado ao ver que sua vontade de manipular não vingaria diante dele, que gritou muito alto. Chorou, esperneou e não cessava sua raiva. Foi tudo isso que fez Razoável levantar da caminha confortável e ir ver o que rolava naquele muquifo.

Apesar de a pessoa ter brigado com Torpe e tê-lo atingido em cheio, ela não podia entrar naquele domínio tão pessoal que é a mente de cada um, porque cabeças não se abrem literalmente, a menos que uma força muito grande seja exercida sobre elas, mas aí há grandes chances delas estourarem, quebrarem ou amassarem, e o objetivo não é esse.

Razoável ouviu a discussão e só então percebeu que aquilo ali era trabalho dele. Ele agradecia imensamente à pessoa de bom coração e boa cabeça que o tinha despertado, mas dali em diante, a responsabilidade era só dele.

Cabia a ele domar, com toda sua pequenez, aquele enorme monstro que vivia de cabeça erguida, babando maldades e desejando ser satisfeito a qualquer custo.

E assim deve ser. Comigo, que começo agora a ter consciência de quem realmente sou, para que adiante, depois de matar meu Torpe e agradecer pelos serviços de Razoável, tenha a certeza de que sou muito mais do que o conflito de poder e dominação de dois lados dentro de um único corpo. Eu sou todos e ninguém ao mesmo tempo. Sou tudo e nada. Eu já sei disso, mas ainda não sinto.

Orai e vigiai.

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