Isto aconteceu enquanto eu morava naquela cidade, mas já não era mais criança; tinha dezesseis anos e estava no terceiro ano do ensino médio. Lembro que no sábado anterior ao que aconteceu, era dia 23 de junho do ano de 2001, um sábado, e eu tinha ido à festa junina do meu colégio.
Eu fazia o tipo porra-louca-rebelde e fui pra tal festa usando um vestido de cetim bordô estampado com caras de bichinhos fofos que eram cor de creme, estava de meia-arrastão e com meu inseparável All-Star preto; no pescoço, usava uma enforcadeira de metal; eu adorava fazer o tipo que chama a atenção, e chamava, de fato. Minha melhor amiga estava comigo e foi uma noite divertida. Lembro de ter invejado os cabelos escorridos de uma menina que estava lá. Lembro disso até hoje, sabe-se lá por que.
Não me lembro do que houve naquele domingo, dia 24, exatamente um mês antes do meu aniversário, mas lembro perfeitamente do que sonhei naquela noite, que viraria a segunda-feira.
No meu sonho, eu estava em casa, não era a minha casa de verdade, mas era na ocasião. Dois homens entravam lá pra roubá-la e atiravam em mim. Fui baleada duas vezes e um dos tiros me acertou no pescoço. Eu não sentia qualquer dor, e me via caindo no chão em câmera lenta. Já caída, sentia o sangue escorrer formando uma poça espessa; eu sentia um enorme alívio e desfalecia. Parecia uma libertação, como se eu tivesse morrido. Acordei, então, no que era o meu quarto, deitada em uma cama de casal e minha mãe estava sentada ao meu lado, numa cadeira. Em frente à cama havia uma grande penteadeira com um espelho oval; eu me levantei, fui em direção ao espelho e vi os pontos que haviam sido dados no meu pescoço.
Acordei com uma estranha sensação. Era segunda-feira, e na escola ainda comentei com algumas pessoas que tinha a impressão de que algo fora do comum aconteceria, e aconteceu.
Fui pra casa na hora do almoço, como em todos os outros dias. No meio da tarde, minha mãe me liga. Ela disse que estava indo pra casa e que tinha algo muito sério a me dizer. O seu tom me perturbou profundamente. Pensei em milhares de coisas, sendo que todas elas a envolviam. Pensei que ela iria me dizer que tinha aids, que tinha sido demitida, que tinha alguma outra doença gravíssima. Fiquei com o coração pesado de maneira que eu não sabia explicar.
Quando ela chegou, me disse: "Teu pai morreu, ele se matou". Pronto, caí numa outra vida, paralela a tudo. Eu não sabia como reagir, não conseguia chorar, só não acreditava. Uma tia dela, que morava na ilha, tinha ligado pra ela e contado que naquele dia, de manhã, ele havia dado cabo da sua vida. A porra toda era inconcebível pra mim. Como assim meu pai morreu? Pior, como assim ele se matou? Era a notícia mais surreal que eu poderia receber. Pra mim, ele era um homem católico, dedicado ao trabalho e que condenaria qualquer pessoa que tivesse atitude semelhante, mas é claro que eu não fazia ideia de quem era o meu pai de verdade.
Aí, então, liguei pros meus irmãos, cobrando uma satisfação, pois a filha de longe não soube da morte do próprio pai pela família dele, soube por outros. Ouviu deles um telefone desligado na cara e a resposta de que haviam tido uma preocupação muito grande com a caçula. Ah sim, todos ficaram muito mexidos com o fato, mas a família, os tios de estirpe muito distinta, rica, fina e religiosa, tinham que enterrar de uma vez a vergonha que o filho mais novo lhes trouxera. Morreu em torno das sete horas da manhã e às cinco da tarde já estava sendo escondido no jazigo da família, junto com os seus pais e avós.
Que merda, eu não o via já havia seis anos e nunca mais o veria novamente.
Baixaram na nossa casa pessoas da federação espírita, lembro de um cara careca e barbudo, falando sobre a morte, tentando confortar e eu só tinha vontade de mandá-lo tomar no cu. Minha mãe teve os surtos de culpa tardia e se vitimou pela morte do homem que ela tinha passado a vida inteira detonando pra mim. Eu liguei pro carinha de quem eu era a fim na época, e que vivia me maltratando e me dando foras pra contar a novidade, esperando algum tipo de consolo. Ele, obviamente, não sabia o que dizer, mas eu queria ser apaziguada pela perda, procurando ânimo e pena, esperando que assim ele fosse me amar.
Usei a morte do meu pai, desde o primeiro dia pra que sentissem pena de mim, mas isso não deu muito certo. A noite já tinha aparecido quando eu achava que ia explodir se continuasse dentro de casa com todas aquelas pessoas estranhas dando condolências por um morto que já estava enterrado. Desembestei pela rua, e fui parar no prédio do meu cursinho, achando que conseguiria assistir à aula de física e esperando a piedade de quem estivesse por perto.
Não lembro quando foi que consegui chorar a morte dele, só sei que queria fazer de conta que aquilo não tinha acontecido. Não fazia nem uma semana que ele tinha morrido e eu inventei de ir a uma festa, sob os protestos da minha mãe. Era muita falta de respeito minha sair pra me divertir quando eu deveria estar de luto. A festa era em uma casa grande; lembro da escuridão, da música alta, das muitas pessoas que estavam lá e lembro também que dentro de mim só havia um silêncio gigante. Eu estava lá, mas não estava.
Um mês depois, foi meu aniversário de dezessete anos, em casa, com bolo e salgadinhos pra dois amigos que me suportavam. Era uma vida de bosta. Não sentia nada, a ficha não tinha caído, ainda.
Meu pai foi um estranho pra mim, o tempo todo. As lembranças que eu tinha dele, em sua maior parte, eram ainda do tempo em que eu era uma meninota e ele me chamava de galega. Minhas lembranças eram de tristes conversas pelo telefone, nas quais eu tinha que fazer o que mais odiava em toda a vida, pedir.
Ele nunca disse que me amava, e a coincidência de tudo isso foi o sonho. No dia em que ele morreu, eu sabia que algo estranho aconteceria, eu tinha levado um tiro no pescoço, e foi se enforcando que ele teve paz. Sempre esperei que ele tivesse o mesmo alívio e sensação de libertação que eu tive, quando caí ensanguentada e leve no chão do meu sonho. Nossas vidas se tocaram e eu pude sentir, então, um pouco do que ele buscava.
quarta-feira, 14 de setembro de 2011
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
Atrás da porta
Eu não sei o que ele tinha, mas seja lá o que fosse, tinha nascido com ele, acho que tinha nascido com ele. Um homem que já fora "normal" não aceitaria viver nas condições em que ele vivia. Mas o que eu sei da loucura dos outros? Se é que era loucura... Vou contar como era, mas antes preciso me inserir no meio disso, porque essa história não é minha, mas eu vi algo da história dele.
Minha mãe namorava o irmão desse homem, e tínhamos voltado praquela cidade depois de quase um ano fora. Recém-chegados, ficamos na casa da mãe deles. Lá, moravam muitas pessoas. A matriarca, que cuidava de uma loja de muambas junto com a filha única, que era separada de algum marido mau-caráter e carregava três filhos pequenos nas costas; o patriarca fora de atividades, um senhor acamado há algum tempo e que já vivera a glória que almejava sendo delegado na cidade; um filho mais novo, solteiro e também policial, mas com uma índole duvidosa; o outro irmão, namorado da minha mãe, desparafusado e professor de História, como ela, e ser essas duas coisas é quase um sinônimo; a empregada espevitada e o homem que mencionei no início.
A família inteira tinha algo fora do comum, não no bom sentido, mas no sentido de perturbações emocionais; tantas que formavam uma nuvem pesada no ambiente meio decrépito do lugar em que viviam. Estavam todos juntos, protegiam-se uns aos outros, mas sequer sabiam do que faziam parte.
Não sei ao certo se ele era o primogênito ou o caçula, sei que tinha o nome do pai, e que por sua cara, passaria tranquilamente pelo filho mais moço. Ele vivia quase que numa masmorra. Na cozinha, bem em frente à mesa de refeições, havia uma porta de ferro, com uma pequena janela de vidro vedada. Era como a porta de uma solitária em um hospício, mas lá dentro as paredes não eram acolchoadas e nem ele vivia com uma camisa-de-força branca. Ele morava lá, nu, num ambiente sem janelas, sem luz, sem móveis; havia apenas uma rede. A única claridade que entrava lá, era através do vidro.
Às vezes, quando a empregada abria a porta para lhe dar de comer, ele fugia. Corria pelado pela casa, indomável. Quando isso acontecia, chamavam sua mãe, que era a única capaz de apaziguá-lo. Deixava o filho manso, quase em transe. Quando ele ficava nervoso, gritava, e os seus gritos abafados pelas paredes, pareciam uivos desesperados. Ela lhe fazia a barba, quando já estava muito grande. E frequentemente o quarto era lavado, pois fedia à merda e comida estragada.
Ele não falava. Não sei se porque não sabia, ou se porque desaprendera, já que naquela casa ninguém estava disposto a ouvi-lo. Quando ficava manso, soltavam-no e até lhe vestiam uma cueca ou algo como uma fralda, não lembro ao certo, e ele dava um passeio pela casa. Tinha o olhar débil e lascivo, e constantemente tocava sua genitália. Babava, ria, comia com as mãos. As pessoas da casa faziam gracejos, aos quais ele respondia com um riso de deboche. Ele era franzino, mas tinha força física, e acredito que ele usava isso a seu favor. Se ele ficasse fora de controle, o que poderia acontecer? Ele não era tratado como um retardado, era tratado como um bicho, e eu tinha medo dele.
Não sei se ele é vivo ainda hoje, porque faz quinze anos que presenciei o que contei aqui, mas mesmo na loucura e na debilidade em que ele vivia, imagino que ainda tinha algum desejo de ser visto como gente, e não como o monstro escondido no quartinho da cozinha. Eu não o conheci de verdade, talvez a mãe dele o tenha conhecido ou talvez, ainda, ela apenas soubesse como amansá-lo para parecer que não havia nada de errado ou de diferente dentro daquela casa. Desprezo no cuidado, aquele homem simplesmente não existia.
Minha mãe namorava o irmão desse homem, e tínhamos voltado praquela cidade depois de quase um ano fora. Recém-chegados, ficamos na casa da mãe deles. Lá, moravam muitas pessoas. A matriarca, que cuidava de uma loja de muambas junto com a filha única, que era separada de algum marido mau-caráter e carregava três filhos pequenos nas costas; o patriarca fora de atividades, um senhor acamado há algum tempo e que já vivera a glória que almejava sendo delegado na cidade; um filho mais novo, solteiro e também policial, mas com uma índole duvidosa; o outro irmão, namorado da minha mãe, desparafusado e professor de História, como ela, e ser essas duas coisas é quase um sinônimo; a empregada espevitada e o homem que mencionei no início.
A família inteira tinha algo fora do comum, não no bom sentido, mas no sentido de perturbações emocionais; tantas que formavam uma nuvem pesada no ambiente meio decrépito do lugar em que viviam. Estavam todos juntos, protegiam-se uns aos outros, mas sequer sabiam do que faziam parte.
Não sei ao certo se ele era o primogênito ou o caçula, sei que tinha o nome do pai, e que por sua cara, passaria tranquilamente pelo filho mais moço. Ele vivia quase que numa masmorra. Na cozinha, bem em frente à mesa de refeições, havia uma porta de ferro, com uma pequena janela de vidro vedada. Era como a porta de uma solitária em um hospício, mas lá dentro as paredes não eram acolchoadas e nem ele vivia com uma camisa-de-força branca. Ele morava lá, nu, num ambiente sem janelas, sem luz, sem móveis; havia apenas uma rede. A única claridade que entrava lá, era através do vidro.
Às vezes, quando a empregada abria a porta para lhe dar de comer, ele fugia. Corria pelado pela casa, indomável. Quando isso acontecia, chamavam sua mãe, que era a única capaz de apaziguá-lo. Deixava o filho manso, quase em transe. Quando ele ficava nervoso, gritava, e os seus gritos abafados pelas paredes, pareciam uivos desesperados. Ela lhe fazia a barba, quando já estava muito grande. E frequentemente o quarto era lavado, pois fedia à merda e comida estragada.
Ele não falava. Não sei se porque não sabia, ou se porque desaprendera, já que naquela casa ninguém estava disposto a ouvi-lo. Quando ficava manso, soltavam-no e até lhe vestiam uma cueca ou algo como uma fralda, não lembro ao certo, e ele dava um passeio pela casa. Tinha o olhar débil e lascivo, e constantemente tocava sua genitália. Babava, ria, comia com as mãos. As pessoas da casa faziam gracejos, aos quais ele respondia com um riso de deboche. Ele era franzino, mas tinha força física, e acredito que ele usava isso a seu favor. Se ele ficasse fora de controle, o que poderia acontecer? Ele não era tratado como um retardado, era tratado como um bicho, e eu tinha medo dele.
Não sei se ele é vivo ainda hoje, porque faz quinze anos que presenciei o que contei aqui, mas mesmo na loucura e na debilidade em que ele vivia, imagino que ainda tinha algum desejo de ser visto como gente, e não como o monstro escondido no quartinho da cozinha. Eu não o conheci de verdade, talvez a mãe dele o tenha conhecido ou talvez, ainda, ela apenas soubesse como amansá-lo para parecer que não havia nada de errado ou de diferente dentro daquela casa. Desprezo no cuidado, aquele homem simplesmente não existia.
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