Naquela cidade, a menina aprendeu sobre o amor e sobre as perdas. Lá, ela enterrou um irmão que esperou por nove meses pra nascer; que nasceu num dia e morreu no outro. Ela nunca viu seu rostinho pequeno, apesar dele ter tido um nome. Ela nunca o conheceu, mas sentiu todo o pesar de sua mãe por tê-lo perdido.
Por vários dias, depois de ter voltado do hospital, a menina viu sua mãe no choro sofrido de quem perdeu uma cria; com os seios empedrados e com febre por não poder alimentar seu bebê. Ela via aquilo e não entendia a dimensão da dor, da separação depois da longa espera por ficar juntos, por conhecer de fato quem se carregou no ventre, pela convivência e aprendizado que nunca viriam.
Naquela cidade, a menina acompanhou o sofrimento dela tantas outras vezes, como quando ela perdeu o amigo tão querido. Ele era bonito, tinha os olhos claros, e ela guardava uma foto 3x4 em que ele parecia um jesus borrado. Ele era tão novo pra morrer, mas se foi em um acidente brutal de motocicleta. Nas estradas do interior, cheias de cascalho, ele derrapou. Chegou a ser levado pro hospital com vida, mas tinha perdido um braço, e dizem, que pela enorme ferida do braço amputado, podiam ver seu coração.
Não é assim que se esperava ver o coração de um rapaz tão bom e católico. Ele não acreditava no além, e várias vezes depois de sua morte, a mãe da menina sonhou com ele; remoía-se de culpa por ele ter partido brigado com ela, mas essa foi só uma das muitas culpas que ela carregou pelo tempo em que viveu naquele lugar.
A menina também sentia culpa. A primeira grande culpa que sentiu foi pela morte do pequeno cachorro de pelo encardido que tinham. Ele era adorado pelas pessoas da casa, mas um dia, a menina esqueceu o portão aberto, até que um homem gordo bateu à sua porta perguntando-lhe se o cachorrinho de pelos encaracolados não era dela, ao que ela respondeu "sim", e foi quando o homem disse que ele estava na esquina, morto. Havia sido atropelado. Ela correu, chorando. Viu-o mole, o sangue tingiu seu pelo de tapete, seu pequeno focinho preto, molhado e sujo de areia, não fungaria mais nada.
Foi a primeira vez que perdeu alguém e sentiu enorme culpa por isso. Fora a responsável pela morte de um ser e isso era terrível. A menina não tinha nem dez anos ainda, e já era responsável por tirar do convívio dos seus um dos seus.
Naquela cidade, a menina tivera incontáveis gatos e cachorros, que tiveram incontáveis ninhadas de animaizinhos que foram amados e queridos por todos os cantos das muitas casas em que ela morou. Depois de um tempo, um de seus quintais tornou-se um verdadeiro cemitério de animais. Os bichinhos morriam, atropelados ou por doenças que os faziam cagar sangue. O cheiro daquela merda, era o cheiro da morte, da doença que não tem volta, que aniquila. E ela chorava sobre eles, e depois seu irmão mais velho os enterrava no fundo do quintal, em meio às árvores e folhas caídas.
Logo a menina percebeu que quando a morte aparecia, seres humanos e animais eram iguais. O cachorro do vizinho, atropelado por um caminhão caçamba, e deixado no asfalto com seu crânio esmagado e seus lindos olhos azuis saltados das órbitas, era igual à criança atropelada pelo ônibus na frente da escola; igual à mulher que andava de bicicleta e que também fora atropelada por um ônibus.
As doenças matavam os bichos, assim como matavam as pessoas, os amigos de sua mãe, com caras assustadoramente cadavéricas, dentro de caixões baratos. Amigos morriam afogados, com seus buchos inchados e línguas pra fora, olhos saltados como os de sapos-boi que quacham sob as casas de palafita daquela cidade.
quinta-feira, 21 de julho de 2011
domingo, 17 de julho de 2011
Infância II
Naquela cidade, a menina cresceu ouvindo histórias de rasgas mortalhas que eram prenúncio da morte de pessoas próximas. Ouvia isso da avó de um vizinho. A velha negra era muito boa com as lendas que envolviam a floresta, o rio e os seres bizarros. Ela falava sobre visagens e sobre a cobra Sofia, uma cobra gigante que engoliria uma ilha que ficava ali por perto, caso a estátua de São José fosse arrancada de onde estava. E a estátua estava fincada no chão do rio, sobre uma pilastra, ao lado do trapiche que ficava na beira do rio.
Maré alta, maré baixa, todo mundo conseguia ver São José. E quando a maré estava baixa, tão baixa que se podia andar naquele chão, garotos se juntavam para jogar o que eles chamavam de futelama. Havia pedaços de madeira cravados no solo que faziam as vezes de traves, e todo mundo que jogava, saía de lá coberto da lama meio marrom, meio cinza.
Naquela cidade, a menina morou duas vezes no mesmo cortiço, e o cortiço ficava perto da catedral, e atrás dessa catedral, havia um prédio enorme que fora muito anos atrás um hospital psiquiátrico, e depois uma escola. Ele estava fechado e era administrado pela Igreja. Seu irmão, arteiro que era, uma vez entrou lá pra explorar o que meninos de doze anos exploram. Entrou não sabia como, junto com um vizinho, e fazendo barulhos lá dentro entre carteiras velhas, acabou chamando a atenção do padre. "Quem está aí? Não gosto de assombrações!". Ele saíra de lá depois de assustar o pobre pároco.
Juntavam-se em bando, sob a luz do poste que ficava no meio-fio daquela travessa, para conversar e brincar com toda a molecada que circundava o lugar. "Ô, Giiiilson!!!", chamava a mãe de um deles, e logo todas as mães berravam em coro, porque já estava na hora ir pra casa.
Ali também, havia uma casa de dois pisos, que estava em construção eterna, com uma montanha de areia na sua frente. Durante a semana, a menina e seus vizinhos pulavam e rolavam sobre aquela areia como cachorros que gostam de deixar seu cheiro nos lugares por onde passam. Nos fins de semana, com a construção fechada, pegavam enormes caixas de papelão e levavam para dentro da casa. Instalavam-se nelas e faziam de conta que estavam em uma nave espacial ou em um avião. As conversas eram de "gente grande", porque pilotar uma nave não era coisa pra crianças.
Ali, naquele monte de areia, não havia só areia, e também não havia só cocô de cachorro. Havia tábuas, com pregos virados para cima, e num deles, no meio da brincadeira, a menina fincou-lhe o pé. Aiii, o prego entrou inteiro, bem ao lado do dedão! Atravessou o chinelo de borracha, e daí só se via dor, sangue e areia; aquela sujeira típica de machucados infantis. Naquela ocasião não precisou de pontos, mas a anti-tetânica foi indispensável; o prego estava enferrujado, claro.
Naquela cidade estupidamente quente, em épocas de chuva, apareciam baratas cascudas, mas não eram simples baratas. Eram baratas do tamanho de mãos adultas, com cascos que pisados, não eram destroçados como os das baratinhas domésticas que se vêem por aí. Pior de tudo é que elas voavam... Pior ainda é que elas surgiam aos montes. Quando a menina acordava de manhã para ir para a escola, no caminho via duas grandes variedades de coisas pelo chão. Mangas e caroços de mangas, porque lá havia inúmeras mangueiras, e as baratas. Podiam ser varridas, pisadas. Tinha-se que escolher onde pisar, porque elas estavam por toda a parte; e mortas. A menina nunca soube porque elas amanheciam mortas, mas era assim que amanheciam. À noite voavam, picavam, aterrorizavam-na e, de manhã, estavam mortas. Eram como um pesadelo de verdade, que durante o dia podia ser visto, mas não fazia mal a ninguém.
E não é porque só fazia parte da imaginação dela, que não poderia lhe fazer mal, ou bem.
Maré alta, maré baixa, todo mundo conseguia ver São José. E quando a maré estava baixa, tão baixa que se podia andar naquele chão, garotos se juntavam para jogar o que eles chamavam de futelama. Havia pedaços de madeira cravados no solo que faziam as vezes de traves, e todo mundo que jogava, saía de lá coberto da lama meio marrom, meio cinza.
Naquela cidade, a menina morou duas vezes no mesmo cortiço, e o cortiço ficava perto da catedral, e atrás dessa catedral, havia um prédio enorme que fora muito anos atrás um hospital psiquiátrico, e depois uma escola. Ele estava fechado e era administrado pela Igreja. Seu irmão, arteiro que era, uma vez entrou lá pra explorar o que meninos de doze anos exploram. Entrou não sabia como, junto com um vizinho, e fazendo barulhos lá dentro entre carteiras velhas, acabou chamando a atenção do padre. "Quem está aí? Não gosto de assombrações!". Ele saíra de lá depois de assustar o pobre pároco.
Juntavam-se em bando, sob a luz do poste que ficava no meio-fio daquela travessa, para conversar e brincar com toda a molecada que circundava o lugar. "Ô, Giiiilson!!!", chamava a mãe de um deles, e logo todas as mães berravam em coro, porque já estava na hora ir pra casa.
Ali também, havia uma casa de dois pisos, que estava em construção eterna, com uma montanha de areia na sua frente. Durante a semana, a menina e seus vizinhos pulavam e rolavam sobre aquela areia como cachorros que gostam de deixar seu cheiro nos lugares por onde passam. Nos fins de semana, com a construção fechada, pegavam enormes caixas de papelão e levavam para dentro da casa. Instalavam-se nelas e faziam de conta que estavam em uma nave espacial ou em um avião. As conversas eram de "gente grande", porque pilotar uma nave não era coisa pra crianças.
Ali, naquele monte de areia, não havia só areia, e também não havia só cocô de cachorro. Havia tábuas, com pregos virados para cima, e num deles, no meio da brincadeira, a menina fincou-lhe o pé. Aiii, o prego entrou inteiro, bem ao lado do dedão! Atravessou o chinelo de borracha, e daí só se via dor, sangue e areia; aquela sujeira típica de machucados infantis. Naquela ocasião não precisou de pontos, mas a anti-tetânica foi indispensável; o prego estava enferrujado, claro.
Naquela cidade estupidamente quente, em épocas de chuva, apareciam baratas cascudas, mas não eram simples baratas. Eram baratas do tamanho de mãos adultas, com cascos que pisados, não eram destroçados como os das baratinhas domésticas que se vêem por aí. Pior de tudo é que elas voavam... Pior ainda é que elas surgiam aos montes. Quando a menina acordava de manhã para ir para a escola, no caminho via duas grandes variedades de coisas pelo chão. Mangas e caroços de mangas, porque lá havia inúmeras mangueiras, e as baratas. Podiam ser varridas, pisadas. Tinha-se que escolher onde pisar, porque elas estavam por toda a parte; e mortas. A menina nunca soube porque elas amanheciam mortas, mas era assim que amanheciam. À noite voavam, picavam, aterrorizavam-na e, de manhã, estavam mortas. Eram como um pesadelo de verdade, que durante o dia podia ser visto, mas não fazia mal a ninguém.
E não é porque só fazia parte da imaginação dela, que não poderia lhe fazer mal, ou bem.
quinta-feira, 14 de julho de 2011
Cheiro feliz de meninice
Hoje, quando fui buscar a Ana na escola, senti o cheiro mais doce de todos; o cheiro do qual já falei antes, o da minha infância pretensamente feliz. Ele apareceu do nada, entranhou-se no meu nariz e eu comecei a ver na calçada por onde eu andava, as boas lembranças do que já foi.
Fiquei tão distraída pensando que esse cheiro tinha aparecido para mim como o prenúncio de coisas boas, que quase fui atropelada por um carro vermelho. Eu não olhei para atravessar a rua, como não olhava quando era criança.
Quando o carro me tomou de sobressalto, dancei no ar, de susto. Mesmo assim, o cheiro permaneceu. Fui e voltei com ele, e amanhã é o último dia de aula dela. Teremos férias, como quando eu era pequena.
Fiquei tão distraída pensando que esse cheiro tinha aparecido para mim como o prenúncio de coisas boas, que quase fui atropelada por um carro vermelho. Eu não olhei para atravessar a rua, como não olhava quando era criança.
Quando o carro me tomou de sobressalto, dancei no ar, de susto. Mesmo assim, o cheiro permaneceu. Fui e voltei com ele, e amanhã é o último dia de aula dela. Teremos férias, como quando eu era pequena.
terça-feira, 5 de julho de 2011
Infância I
Naquela cidade, havia muitas coisas diferentes pra uma menininha que morava antes em um ilha bonita.
Das praias de água azul, foi conhecer o rio, enorme, tão largo que quase não se via a outra margem. Aquele rio de águas escuras e ao mesmo tempo doces escondia toda a história daquele povo, daquele lugar onde ela foi morar.
Lá, as meninas andavam só de calcinhas pelas ruas sem asfalto. As casas eram de madeira e na cidade não havia prédios. A escola em que estudava também era de madeira, e ela não tinha muitos amigos, nenhum, na verdade, porque era vista como diferente da maioria. As pessoas de lá tinham traços caboclos, indígenas e a menina branca, de nariz fino, dentes separados e comportamento introvertido não era das mais agradáveis.
Naquela cidade, que era banhada pelo maior rio que existe, havia um lugar que chamavam de Beira-Rio, e ela era acostumada com a Beira-Mar. De salgada pra doce, de mar azul pra rio marrom. Lá na frente da cidade havia inúmeras carrocinhas com enorme panelas de óleo fumegante, onde os donos desses carrinhos fritavam batatas, e as batatas eram colocadas em copinhos descartáveis e vendidas com um pouco de queijo ralado e um palito. Ela as espetava e via o rio. Era a programação de todos da cidade nos fins de semana. Na época em que só os refrigerantes em garrafinhas de vidro eram populares, esses mesmos vendedores de batatas-fritas, viravam a garrafa de Coca-Cola em um pequeno saco plástico transparente, davam um nó e colocavam nele um canudinho. Era estranho. Bebidas em sacos, comidas em copos, mas era divertido.
Naquela cidade as pessoas também gostavam muito de redes, redes eram mais comuns do que camas e a menina gostava de se embalar nelas. Eram grandes e divertidos balanços quando ela estava acordada, e quando queria dormir, eram como o aconchego confortável de um colo de mãe.
Mas aquela cidade, tão no meio da floresta, também tinha muitos animais rastejantes, e qual foi a surpresa, então, quando um dia, enquanto a menina dormia na rede, uma cobra restejou em direção a ela, colocando-se bem embaixo de onde a pequena estava. Mal pior não aconteceu, porque um vizinho destemido e já acostumado com tais visitas, veio com um terçado dar fim ao animal.
Viveu ela em inúmeras casas com quintal e esgoto a céu aberto. Quando chegava da escola, gostava de parar em frente a sua casa para ver, por debaixo da camada verde de limo sujo, pequenos vermes e girinos que ali se criavam. Eram pequenas vidas asquerosas que se moviam aleatoriamente, como se se debatessem querendo sair dali.
Em um terreno baldio do lado de sua casa, havia também um enorme formigueiro marrom, onde moravam centenas de milhares de formigas de fogo. A menina gostava de perturbá-las. Pegava um pequeno graveto e desmoronava toda a cidade das pequenas raivosas. Várias vezes saíra de lá correndo, por ter sido mordida por várias delas nos pés, mas ela sempre voltava pra desarmonizar o micromundo.
Crescia assim, mudando de casa, de escola. E já não podia mais andar só de calcinhas pela rua, apesar do calor desumano daquela terra.
Das praias de água azul, foi conhecer o rio, enorme, tão largo que quase não se via a outra margem. Aquele rio de águas escuras e ao mesmo tempo doces escondia toda a história daquele povo, daquele lugar onde ela foi morar.
Lá, as meninas andavam só de calcinhas pelas ruas sem asfalto. As casas eram de madeira e na cidade não havia prédios. A escola em que estudava também era de madeira, e ela não tinha muitos amigos, nenhum, na verdade, porque era vista como diferente da maioria. As pessoas de lá tinham traços caboclos, indígenas e a menina branca, de nariz fino, dentes separados e comportamento introvertido não era das mais agradáveis.
Naquela cidade, que era banhada pelo maior rio que existe, havia um lugar que chamavam de Beira-Rio, e ela era acostumada com a Beira-Mar. De salgada pra doce, de mar azul pra rio marrom. Lá na frente da cidade havia inúmeras carrocinhas com enorme panelas de óleo fumegante, onde os donos desses carrinhos fritavam batatas, e as batatas eram colocadas em copinhos descartáveis e vendidas com um pouco de queijo ralado e um palito. Ela as espetava e via o rio. Era a programação de todos da cidade nos fins de semana. Na época em que só os refrigerantes em garrafinhas de vidro eram populares, esses mesmos vendedores de batatas-fritas, viravam a garrafa de Coca-Cola em um pequeno saco plástico transparente, davam um nó e colocavam nele um canudinho. Era estranho. Bebidas em sacos, comidas em copos, mas era divertido.
Naquela cidade as pessoas também gostavam muito de redes, redes eram mais comuns do que camas e a menina gostava de se embalar nelas. Eram grandes e divertidos balanços quando ela estava acordada, e quando queria dormir, eram como o aconchego confortável de um colo de mãe.
Mas aquela cidade, tão no meio da floresta, também tinha muitos animais rastejantes, e qual foi a surpresa, então, quando um dia, enquanto a menina dormia na rede, uma cobra restejou em direção a ela, colocando-se bem embaixo de onde a pequena estava. Mal pior não aconteceu, porque um vizinho destemido e já acostumado com tais visitas, veio com um terçado dar fim ao animal.
Viveu ela em inúmeras casas com quintal e esgoto a céu aberto. Quando chegava da escola, gostava de parar em frente a sua casa para ver, por debaixo da camada verde de limo sujo, pequenos vermes e girinos que ali se criavam. Eram pequenas vidas asquerosas que se moviam aleatoriamente, como se se debatessem querendo sair dali.
Em um terreno baldio do lado de sua casa, havia também um enorme formigueiro marrom, onde moravam centenas de milhares de formigas de fogo. A menina gostava de perturbá-las. Pegava um pequeno graveto e desmoronava toda a cidade das pequenas raivosas. Várias vezes saíra de lá correndo, por ter sido mordida por várias delas nos pés, mas ela sempre voltava pra desarmonizar o micromundo.
Crescia assim, mudando de casa, de escola. E já não podia mais andar só de calcinhas pela rua, apesar do calor desumano daquela terra.
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