eu disse que tinha que fazer musculação, né? isso quereria dizer que eu precisaria frequentar uma academia. a questão é que eu era avessa a esse tipo de ambiente. eu abracei tanto a fase da autoaceitação que achava que movimentos que fizessem meu corpo mudar eram uma traição a todo esse trabalho. a academia era o lugar para os superficiais, para as pessoas que só se importavam com o espelho – eu sempre amei olhar para o meu reflexo –, e não percebia que o fato de as pessoas estarem tão ensimesmadas poderia ser um ponto favorável, uma vez que ninguém prestaria atenção em mim. o primeiro passo foi aceitar que eu precisaria educar meu corpo, a mente precisaria colocar o corpo pra trabalhar e isso era uma decisão consciente.
ocorre que
a mente é safada e ela sempre acaba inventando desculpas para que qualquer
atividade incômoda seja procrastinada, adiada, postergada. se eu me inscrevesse
em uma academia na qual eu pudesse ir a qualquer hora, a hora em que eu fosse
seria assim: num dia a contragosto, eu iria com cara de cu, faria os exercícios
prescritos por quem estivesse lá e iria embora; depois de 24 horas o ácido
lático começaria a agir no meu corpo e eu sentiria dores musculares que fariam
parecer que eu fui atropelada por um patinete elétrico e eu nunca mais
voltaria, apesar de já ter pago o mês inteiro.
para
evitar esse tipo de situação, decidi por me inscrever em uma pequena academia
que, de tão pequena, não permite que todos os seus inscritos a frequentem
quando bem entendem; você vai no horário marcado, em que o professor vai
atender você e mais quatro pessoas ao mesmo tempo. como eu não tinha dinheiro
para pagar um personal trainer, essa me pareceu uma excelente opção. se eu não
fosse no horário combinado, perderia aquele dia. a academia também oferecia
pilates, que era algo que eu gostava de já ter feito antes. consegui agendar a
musculação três dias por semana – segunda, quarta e sexta-feira – e um dia o
pilates, às quintas. decidi começar dia sim, dia não na musculação, para que
não tivesse o ímpeto de desistir de cara, caso me aloprasse com exercícios
todos os dias, já que essa nunca havia sido a minha realidade.
no
primeiro dia, conheci meu professor, que perguntou qual era o meu objetivo. ele
anotou lá no caderno dele: ficar dura (gostosa) – já adianto que passado um
ano, não fiquei dura, mas gostosa eu continuo. no primeiro dia, cheguei com
cara de poucos amigos, meu habitual, e olhava pras pessoas que estavam lá com
raiva, num misto de vocês são uns otários com o que que eu tô fazendo aqui?!
minha mente vociferava críticas direcionadas a todos que estavam lá. logo eu,
que não queria ser julgada por ninguém, tinha dentro da cabeça uma língua que
chibatava qualquer um que passasse na minha frente e as pessoas só estavam ali,
existindo. alguns tinham o desplante de parecerem estar se divertindo,
conversando... como assim? como vocês podem estar aqui sem sofrer? sem achar
esse o pior lugar do mundo para se estar? eu projetava naquelas pessoas a minha
chateação por ter sido negligente com meu corpo por tanto tempo. não estava com
raiva delas, estava era com raiva de mim, por ter demorado a perceber que meu
corpo também precisava daquilo, de esforço.
eu queria
entrar, fazer o que tinha de ser feito e sair. não ia lá pra fazer amizade, nem
pra dar risadinhas, nem pra ficar de conversa, eu chegava pensando em ir
embora. a primeira semana doeu; fisicamente. mas eu fui todos os dias. em casa,
calçando os tênis, pensava em desistir, pensava que estava com o corpo
dolorido, pensava que isso não ia dar em nada, que era uma grande perda de
tempo; mas eu me mandava calar a boca e ia. logo percebi que, por mais dolorido
que você esteja, quando o corpo começa a se aquecer, a dor passa e você faz os
exercícios que precisa sem sentir nada. depois ela volta, e depois de mais uns
dias, o corpo se acostuma e você para de sentir.
quando
esse desconforto físico não é mais uma desculpa para você não querer ir para a
academia, a mente vai tentar inventar outras. durante um bom tempo eu me senti
sobrecarregada, como se estivesse fazendo muita coisa, como se cuidar e educar
o meu corpo fosse algum tipo de punição que me impedia de aproveitar melhor meu
tempo, sendo uma grande vagabunda. pensava puta que pariu, eu vou ter que fazer
isso pra sempre?! é isso mesmo?! quando a gente percebe que o processo não
termina nunca, a gente consegue parar de olhar pro futuro “resultado”. é dia a
dia. é tentar manter o ritmo mesmo que ele saia do compasso às vezes.
tentando
pensar assim, o resultado não é exatamente a bunda dura, o resultado passa a
ser a constância. fui uma semana na academia e não senti diferença nenhuma no
meu corpo. beleza, o que importa é que você foi uma semana. o corpo vai sentir
a diferença quando você tiver ido muitos dias, semanas, meses... aí é que você
vai notar alguma coisa. um grande estímulo é saber que eu fui. me sinto dona de
mim mesma, mesmo sabendo que há tantas aqui dentro e que algumas delas não
gostam nada disso. nunca me arrependo de ter ido. é sempre um alento, me dou
uma estrelinha, penso parabéns, você poderia ter sido sedentária o dia inteiro,
mas durante uma hora e pouquinho, você fez força, estimulou seu corpo a se
mover, foi adulta e fez algo que não gosta, mas que faz bem. eu ainda não
gostava de estar lá, mas eu escolhia estar lá. eu não queria ir, mas ia mesmo
assim. do mesmo jeito que faço com o trabalho. não é segredo que não gosto de
trabalhar, mas preciso do dinheiro que recebo por ele, então eu vou. eu não
gostava de ir para a academia, mas já tinha entendido que, com quase 40 anos, a
gente faz um monte de coisas que não gosta porque precisa.
durante
sete meses eu fui para a academia quase todos os dias em que me propus a ir.
faltei apenas duas ou três vezes. nesse ínterim, consegui deixar de ser tão
defensiva em relação às pessoas que frequentavam aquele lugar. comecei a gostar
de ver que conseguia levantar um pouquinho mais de peso do que na semana
passada. comecei eu a esboçar sorrisos e a me sentir mais solta. depois de um
tempo, eu já sabia os nomes de muitas daquelas pessoas, comecei a seguir
algumas na rede social e conversava animadamente com o meu professor e não tão
animadamente quando meus joelhos começaram a doer e eu precisei aliviar os
exercícios que os envolviam.
dois meses
depois que eu havia começado na academia, procurei por um médico vascular para
ver minhas varizes, daí o homem olhou as minhas pernas e disse ah, você tem
lipedema. eu fiquei indignada com ele. que porra de lipedema? todo mundo tem
essa merda agora? a negação brotou das minhas coxas e panturrilhas na hora, mas
depois o diagnóstico fez muito sentido. lipedema e síndrome de hipermobilidade
são doenças correlacionadas. não quer dizer que só existam juntas, mas é comum
que as duas coincidam. fez sentido pra mim. a região em que mais tenho flacidez
no corpo é nos culotes e coxas. a pele é ultra-estirada. o acúmulo de gordura
que tenho ali não é como celulite normal, assim como o acúmulo de gordura sobre
os joelhos e na própria panturrilha. tenho essa merda em algum grau nos braços
também.
foi
frustrante saber disso no começo. fui vendo que por mais que eu fizesse força
na academia, aquela gordura se mantinha ali, assim como tem se mantido. foi
frustrante, mas foi também um belo ah que se foda, tô fazendo o que dá e é isso
aí. não tive antes, não terei vergonha do meu corpo agora que sei o que é isso.
ter começado a academia depois de fazer uma cirurgia plástica foi, por um lado,
fácil, porque me sentia mais segura. aquela coisa de achar que só quem já é
magro e sarado faz academia, sendo que eu não era nem magra e nem sarada, mas
estava mais dentro do padrão do que jamais estivera em toda a minha vida.
ainda
assim, tava eu lá, com o tônus de um flan de caramelo e cheia de “celulite”.
que se foda, agora minha bunda é grande – antes ela era inexistente. e quando
alguma colega fazia algum elogio ao meu corpo, eu falava logo que era plástica,
porque assim me sentia menos falsa. eu contava a verdade de que o meu corpo,
esse que eu carregava comigo, não era assim naturalmente; havia sido feito,
comprado, cortado, retalhado, cicatrizado. sobrei eu, com a bunda grande, o
peito pequeno, barriga amarrada, cheia de flacidez incorrigível, lipedema nos
membros e sovaco cabeludo.
eu gosto
de mostrar minhas pernas peludas, molengas e cheias buracos disformes nos
shorts curtos que eu visto quando vou pra academia. eu gosto de mostrar meus
sovacos cabeludos cada vez que levanto os braços por lá e por onde eu vou. hoje
eu sou mais padrão do que jamais fui, pero no mucho. porque o padrão, aquele de
influencer com filtro, ele não existe, mas existo eu, me achando linda e
gostosa mesmo que eu cause desconforto nos outros, ou até repulsa porque, sei
lá, tem gente que acha que mulher peluda é nojento, porque tem gente que acha
que se você tem celulite, você deveria poupar os olhos alheios e só usar
calças.
mas eu
acho que é importante saber lidar com o incômodo que o outro pode causar na
gente e com as diferenças. do mesmo jeito que eu cheguei à academia destilando
julgamentos aos outros que só estavam ali, cuidando cada um da sua vida, acho
que se alguém me olhava torto porque uso short curto e top em que meus sovacos
peludos aparecem, já se acostumou e provavelmente não vai achar nada demais
quando vir outras mulheres que tenham características semelhantes às minhas.
mas eu sequer posso dizer que percebi alguém me olhando esquisito. eu entrei em
um ambiente do qual não fazia parte e até considero que fui bem recebida. quem
estava armada era eu.
naturalizar
o que é diferente também é um processo. me exercitar era estranho para mim, não
era nada natural, mas a constância tornou o que me era anormal, o padrão. virei
minha própria norma, sigo a minha regra, criei meu próprio padrão, cujo
estandarte sou eu mesma. eu me carrego para onde quero ir e caminho comigo
mesma até chegar lá. sei nem onde vai dar o lá, mas sigo caminhando.
nesse
decorrer de ano, meus joelhos começaram a me incomodar depois que eu tive a
brilhante ideia de dar uma trotada de leve num domingo aí. no outro dia, meus
joelhos pareciam inflamados, doloridos. doíam pra sentar, pra andar, pra
agachar. de repente, me vi triste porque não conseguia mais fazer os exercícios
a que tinha me acostumado. me senti retrocedendo, com medo de voltar a ficar
parada. eu virei a pessoa que queria continuar se movimentando! olha só isso!
daí fui em médico de joelho, fiz exame caro do inferno e parti pra fisioterapia
lá na academia mesmo, o que era uma grande comodidade porque depois de uma
sessão, eu já fazia a musculação.
nessa
brincadeira aí descobri que meus joelhos sofriam porque os quadris são fracos.
a bunda é mole porque esse raio não é uma coisa só, os bonitos dos músculos que
formam as nádegas são três e parece que todos os três precisam ser trabalhados,
pois vejam! tem que fortalecer a porra toda! dá-lhe fisioterapia pra ensinar a
bunda como ela deve trabalhar. até instituímos que as últimas sessões seriam
voltadas para me preparar pra correr. não porque tenho ambições maratonistas,
mas porque gostaria de ser capaz de “correr” depois dos 40, depois de 21 anos
sendo fumante, asmática e sedentária. cheguei a correr um quilômetro na esteira
um dia. pode parecer pouco pra você, mas pra mim é uma enorme conquista.
apesar das
dores, desde setembro do ano passado, consegui instituir a musculação de
segunda a sexta-feira, mais a aula de pilates às quintas, sendo uma aluna
muitíssimo aplicada e dando a chance de meu corpo mostrar o que ele é capaz de
fazer. durante a tpm, suspeito que ele não possa muito, mas seguimos firmes,
mesmo menstruada, mesmo com cólicas. mesmo quando chove ou quando o sol está
causticante. para as duas situações, tenho usado meu maravilhoso
guarda-chuva/sombrinha. em dias de muita chuva, a vadiagem fala mais alto e vou
de carro; o ponto é que o clima – que poderia ser uma grande desculpa para eu
não ir –, nunca foi um impeditivo.
frequentar
uma academia me trouxe mais rotina, expandiu minha percepção de mim mesma e dos
outros. cheguei lá na defensiva, tensa, mas permiti me enxergar com mais
compaixão, e daí pude ser mais compassiva e até simpática com os demais. me
sinto parte de uma pequena comunidade. conheci mulheres da minha idade e mais
velhas do que eu com quem troco figurinhas e falo de amenidades. isso faz meu
dia melhor. estar na academia me ajuda a desacelerar a cabeça, que é quase um
mingau de tanto rolar o feed do instagram. eu não levo o telefone pra academia
porque esse é o único momento em que consigo ficar longe dessa merda e pensar
só em mim. levei alguns dias pra tentar ouvir música, mas achei que perco parte
da experiência de estar ali, interagindo com as pessoas.
do mesmo
jeito que interajo todos os dias com um senhor barbudo – se bem que ele tirou a
barba recentemente –, dono do boteco que atende as casas funerárias pelas quais
passo no meu trajeto a pé até a academia. uma manhã, ele me deu bom dia e eu
respondi bom dia e, desde então, nos cumprimentamos sempre que o botequim está
aberto. às vezes ele diz bom dia, meu anjo, e às vezes ele comenta do calor e
da minha boa vontade de me exercitar. esse senhor, cujo nome não sei, também
faz parte da minha rotina.
fazer o
caminho para a academia todos os dias passando pelos fundos das casas
funerárias e pela frente do cemitério me faz lembrar da morte, não que eu já
não pensasse nela diariamente, mas um dia senti o cheiro de formol saindo de lá
de dentro. um dia vi um carro chegando e um corpo sendo desembarcado. um dia vi
um carregamento de caixões chegando. fazer o caminho da busca pela saúde, pela
beleza, pela vida passando por detrás dali me faz pensar que uma hora serei eu.
e uma hora
será, mas enquanto a hora não chega, dedico algum tempo do meu dia para a casa
que me leva pra todos os lugares, conseguindo contemplar o trajeto entre lá e
aqui. fazendo da academia um espaço de aprendizado para o corpo e para a cabeça
também, de exercício, de aperfeiçoamento. é como se o bichinho não tivesse tido
a oportunidade de ir à escola quando criança e não tivesse sido alfabetizado.
aí ele aceita, perto dos 40 anos, que o movimento é a melhor forma de ele se
comunicar, é a língua que ele entende, e ele pula direto pra academia!
no ano
passado, me exercitei 195 dias, mais do que em toda a minha vida e este ano
será ainda mais ativo. acho que peguei o jeito, agora é só continuar até que um
dia seja o meu dia.