segunda-feira, 10 de março de 2025

sobre a musculação

eu disse que tinha que fazer musculação, né? isso quereria dizer que eu precisaria frequentar uma academia. a questão é que eu era avessa a esse tipo de ambiente. eu abracei tanto a fase da autoaceitação que achava que movimentos que fizessem meu corpo mudar eram uma traição a todo esse trabalho. a academia era o lugar para os superficiais, para as pessoas que só se importavam com o espelho – eu sempre amei olhar para o meu reflexo –, e não percebia que o fato de as pessoas estarem tão ensimesmadas poderia ser um ponto favorável, uma vez que ninguém prestaria atenção em mim. o primeiro passo foi aceitar que eu precisaria educar meu corpo, a mente precisaria colocar o corpo pra trabalhar e isso era uma decisão consciente.

ocorre que a mente é safada e ela sempre acaba inventando desculpas para que qualquer atividade incômoda seja procrastinada, adiada, postergada. se eu me inscrevesse em uma academia na qual eu pudesse ir a qualquer hora, a hora em que eu fosse seria assim: num dia a contragosto, eu iria com cara de cu, faria os exercícios prescritos por quem estivesse lá e iria embora; depois de 24 horas o ácido lático começaria a agir no meu corpo e eu sentiria dores musculares que fariam parecer que eu fui atropelada por um patinete elétrico e eu nunca mais voltaria, apesar de já ter pago o mês inteiro.

para evitar esse tipo de situação, decidi por me inscrever em uma pequena academia que, de tão pequena, não permite que todos os seus inscritos a frequentem quando bem entendem; você vai no horário marcado, em que o professor vai atender você e mais quatro pessoas ao mesmo tempo. como eu não tinha dinheiro para pagar um personal trainer, essa me pareceu uma excelente opção. se eu não fosse no horário combinado, perderia aquele dia. a academia também oferecia pilates, que era algo que eu gostava de já ter feito antes. consegui agendar a musculação três dias por semana – segunda, quarta e sexta-feira – e um dia o pilates, às quintas. decidi começar dia sim, dia não na musculação, para que não tivesse o ímpeto de desistir de cara, caso me aloprasse com exercícios todos os dias, já que essa nunca havia sido a minha realidade.

no primeiro dia, conheci meu professor, que perguntou qual era o meu objetivo. ele anotou lá no caderno dele: ficar dura (gostosa) – já adianto que passado um ano, não fiquei dura, mas gostosa eu continuo. no primeiro dia, cheguei com cara de poucos amigos, meu habitual, e olhava pras pessoas que estavam lá com raiva, num misto de vocês são uns otários com o que que eu tô fazendo aqui?! minha mente vociferava críticas direcionadas a todos que estavam lá. logo eu, que não queria ser julgada por ninguém, tinha dentro da cabeça uma língua que chibatava qualquer um que passasse na minha frente e as pessoas só estavam ali, existindo. alguns tinham o desplante de parecerem estar se divertindo, conversando... como assim? como vocês podem estar aqui sem sofrer? sem achar esse o pior lugar do mundo para se estar? eu projetava naquelas pessoas a minha chateação por ter sido negligente com meu corpo por tanto tempo. não estava com raiva delas, estava era com raiva de mim, por ter demorado a perceber que meu corpo também precisava daquilo, de esforço.

eu queria entrar, fazer o que tinha de ser feito e sair. não ia lá pra fazer amizade, nem pra dar risadinhas, nem pra ficar de conversa, eu chegava pensando em ir embora. a primeira semana doeu; fisicamente. mas eu fui todos os dias. em casa, calçando os tênis, pensava em desistir, pensava que estava com o corpo dolorido, pensava que isso não ia dar em nada, que era uma grande perda de tempo; mas eu me mandava calar a boca e ia. logo percebi que, por mais dolorido que você esteja, quando o corpo começa a se aquecer, a dor passa e você faz os exercícios que precisa sem sentir nada. depois ela volta, e depois de mais uns dias, o corpo se acostuma e você para de sentir.

quando esse desconforto físico não é mais uma desculpa para você não querer ir para a academia, a mente vai tentar inventar outras. durante um bom tempo eu me senti sobrecarregada, como se estivesse fazendo muita coisa, como se cuidar e educar o meu corpo fosse algum tipo de punição que me impedia de aproveitar melhor meu tempo, sendo uma grande vagabunda. pensava puta que pariu, eu vou ter que fazer isso pra sempre?! é isso mesmo?! quando a gente percebe que o processo não termina nunca, a gente consegue parar de olhar pro futuro “resultado”. é dia a dia. é tentar manter o ritmo mesmo que ele saia do compasso às vezes.

tentando pensar assim, o resultado não é exatamente a bunda dura, o resultado passa a ser a constância. fui uma semana na academia e não senti diferença nenhuma no meu corpo. beleza, o que importa é que você foi uma semana. o corpo vai sentir a diferença quando você tiver ido muitos dias, semanas, meses... aí é que você vai notar alguma coisa. um grande estímulo é saber que eu fui. me sinto dona de mim mesma, mesmo sabendo que há tantas aqui dentro e que algumas delas não gostam nada disso. nunca me arrependo de ter ido. é sempre um alento, me dou uma estrelinha, penso parabéns, você poderia ter sido sedentária o dia inteiro, mas durante uma hora e pouquinho, você fez força, estimulou seu corpo a se mover, foi adulta e fez algo que não gosta, mas que faz bem. eu ainda não gostava de estar lá, mas eu escolhia estar lá. eu não queria ir, mas ia mesmo assim. do mesmo jeito que faço com o trabalho. não é segredo que não gosto de trabalhar, mas preciso do dinheiro que recebo por ele, então eu vou. eu não gostava de ir para a academia, mas já tinha entendido que, com quase 40 anos, a gente faz um monte de coisas que não gosta porque precisa.

durante sete meses eu fui para a academia quase todos os dias em que me propus a ir. faltei apenas duas ou três vezes. nesse ínterim, consegui deixar de ser tão defensiva em relação às pessoas que frequentavam aquele lugar. comecei a gostar de ver que conseguia levantar um pouquinho mais de peso do que na semana passada. comecei eu a esboçar sorrisos e a me sentir mais solta. depois de um tempo, eu já sabia os nomes de muitas daquelas pessoas, comecei a seguir algumas na rede social e conversava animadamente com o meu professor e não tão animadamente quando meus joelhos começaram a doer e eu precisei aliviar os exercícios que os envolviam.

dois meses depois que eu havia começado na academia, procurei por um médico vascular para ver minhas varizes, daí o homem olhou as minhas pernas e disse ah, você tem lipedema. eu fiquei indignada com ele. que porra de lipedema? todo mundo tem essa merda agora? a negação brotou das minhas coxas e panturrilhas na hora, mas depois o diagnóstico fez muito sentido. lipedema e síndrome de hipermobilidade são doenças correlacionadas. não quer dizer que só existam juntas, mas é comum que as duas coincidam. fez sentido pra mim. a região em que mais tenho flacidez no corpo é nos culotes e coxas. a pele é ultra-estirada. o acúmulo de gordura que tenho ali não é como celulite normal, assim como o acúmulo de gordura sobre os joelhos e na própria panturrilha. tenho essa merda em algum grau nos braços também.

foi frustrante saber disso no começo. fui vendo que por mais que eu fizesse força na academia, aquela gordura se mantinha ali, assim como tem se mantido. foi frustrante, mas foi também um belo ah que se foda, tô fazendo o que dá e é isso aí. não tive antes, não terei vergonha do meu corpo agora que sei o que é isso. ter começado a academia depois de fazer uma cirurgia plástica foi, por um lado, fácil, porque me sentia mais segura. aquela coisa de achar que só quem já é magro e sarado faz academia, sendo que eu não era nem magra e nem sarada, mas estava mais dentro do padrão do que jamais estivera em toda a minha vida.

ainda assim, tava eu lá, com o tônus de um flan de caramelo e cheia de “celulite”. que se foda, agora minha bunda é grande – antes ela era inexistente. e quando alguma colega fazia algum elogio ao meu corpo, eu falava logo que era plástica, porque assim me sentia menos falsa. eu contava a verdade de que o meu corpo, esse que eu carregava comigo, não era assim naturalmente; havia sido feito, comprado, cortado, retalhado, cicatrizado. sobrei eu, com a bunda grande, o peito pequeno, barriga amarrada, cheia de flacidez incorrigível, lipedema nos membros e sovaco cabeludo.

eu gosto de mostrar minhas pernas peludas, molengas e cheias buracos disformes nos shorts curtos que eu visto quando vou pra academia. eu gosto de mostrar meus sovacos cabeludos cada vez que levanto os braços por lá e por onde eu vou. hoje eu sou mais padrão do que jamais fui, pero no mucho. porque o padrão, aquele de influencer com filtro, ele não existe, mas existo eu, me achando linda e gostosa mesmo que eu cause desconforto nos outros, ou até repulsa porque, sei lá, tem gente que acha que mulher peluda é nojento, porque tem gente que acha que se você tem celulite, você deveria poupar os olhos alheios e só usar calças.

mas eu acho que é importante saber lidar com o incômodo que o outro pode causar na gente e com as diferenças. do mesmo jeito que eu cheguei à academia destilando julgamentos aos outros que só estavam ali, cuidando cada um da sua vida, acho que se alguém me olhava torto porque uso short curto e top em que meus sovacos peludos aparecem, já se acostumou e provavelmente não vai achar nada demais quando vir outras mulheres que tenham características semelhantes às minhas. mas eu sequer posso dizer que percebi alguém me olhando esquisito. eu entrei em um ambiente do qual não fazia parte e até considero que fui bem recebida. quem estava armada era eu.

naturalizar o que é diferente também é um processo. me exercitar era estranho para mim, não era nada natural, mas a constância tornou o que me era anormal, o padrão. virei minha própria norma, sigo a minha regra, criei meu próprio padrão, cujo estandarte sou eu mesma. eu me carrego para onde quero ir e caminho comigo mesma até chegar lá. sei nem onde vai dar o lá, mas sigo caminhando.

nesse decorrer de ano, meus joelhos começaram a me incomodar depois que eu tive a brilhante ideia de dar uma trotada de leve num domingo aí. no outro dia, meus joelhos pareciam inflamados, doloridos. doíam pra sentar, pra andar, pra agachar. de repente, me vi triste porque não conseguia mais fazer os exercícios a que tinha me acostumado. me senti retrocedendo, com medo de voltar a ficar parada. eu virei a pessoa que queria continuar se movimentando! olha só isso! daí fui em médico de joelho, fiz exame caro do inferno e parti pra fisioterapia lá na academia mesmo, o que era uma grande comodidade porque depois de uma sessão, eu já fazia a musculação.

nessa brincadeira aí descobri que meus joelhos sofriam porque os quadris são fracos. a bunda é mole porque esse raio não é uma coisa só, os bonitos dos músculos que formam as nádegas são três e parece que todos os três precisam ser trabalhados, pois vejam! tem que fortalecer a porra toda! dá-lhe fisioterapia pra ensinar a bunda como ela deve trabalhar. até instituímos que as últimas sessões seriam voltadas para me preparar pra correr. não porque tenho ambições maratonistas, mas porque gostaria de ser capaz de “correr” depois dos 40, depois de 21 anos sendo fumante, asmática e sedentária. cheguei a correr um quilômetro na esteira um dia. pode parecer pouco pra você, mas pra mim é uma enorme conquista.

apesar das dores, desde setembro do ano passado, consegui instituir a musculação de segunda a sexta-feira, mais a aula de pilates às quintas, sendo uma aluna muitíssimo aplicada e dando a chance de meu corpo mostrar o que ele é capaz de fazer. durante a tpm, suspeito que ele não possa muito, mas seguimos firmes, mesmo menstruada, mesmo com cólicas. mesmo quando chove ou quando o sol está causticante. para as duas situações, tenho usado meu maravilhoso guarda-chuva/sombrinha. em dias de muita chuva, a vadiagem fala mais alto e vou de carro; o ponto é que o clima – que poderia ser uma grande desculpa para eu não ir –, nunca foi um impeditivo.

frequentar uma academia me trouxe mais rotina, expandiu minha percepção de mim mesma e dos outros. cheguei lá na defensiva, tensa, mas permiti me enxergar com mais compaixão, e daí pude ser mais compassiva e até simpática com os demais. me sinto parte de uma pequena comunidade. conheci mulheres da minha idade e mais velhas do que eu com quem troco figurinhas e falo de amenidades. isso faz meu dia melhor. estar na academia me ajuda a desacelerar a cabeça, que é quase um mingau de tanto rolar o feed do instagram. eu não levo o telefone pra academia porque esse é o único momento em que consigo ficar longe dessa merda e pensar só em mim. levei alguns dias pra tentar ouvir música, mas achei que perco parte da experiência de estar ali, interagindo com as pessoas.

do mesmo jeito que interajo todos os dias com um senhor barbudo – se bem que ele tirou a barba recentemente –, dono do boteco que atende as casas funerárias pelas quais passo no meu trajeto a pé até a academia. uma manhã, ele me deu bom dia e eu respondi bom dia e, desde então, nos cumprimentamos sempre que o botequim está aberto. às vezes ele diz bom dia, meu anjo, e às vezes ele comenta do calor e da minha boa vontade de me exercitar. esse senhor, cujo nome não sei, também faz parte da minha rotina.

fazer o caminho para a academia todos os dias passando pelos fundos das casas funerárias e pela frente do cemitério me faz lembrar da morte, não que eu já não pensasse nela diariamente, mas um dia senti o cheiro de formol saindo de lá de dentro. um dia vi um carro chegando e um corpo sendo desembarcado. um dia vi um carregamento de caixões chegando. fazer o caminho da busca pela saúde, pela beleza, pela vida passando por detrás dali me faz pensar que uma hora serei eu.

e uma hora será, mas enquanto a hora não chega, dedico algum tempo do meu dia para a casa que me leva pra todos os lugares, conseguindo contemplar o trajeto entre lá e aqui. fazendo da academia um espaço de aprendizado para o corpo e para a cabeça também, de exercício, de aperfeiçoamento. é como se o bichinho não tivesse tido a oportunidade de ir à escola quando criança e não tivesse sido alfabetizado. aí ele aceita, perto dos 40 anos, que o movimento é a melhor forma de ele se comunicar, é a língua que ele entende, e ele pula direto pra academia!

no ano passado, me exercitei 195 dias, mais do que em toda a minha vida e este ano será ainda mais ativo. acho que peguei o jeito, agora é só continuar até que um dia seja o meu dia.