sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

sobre o peso do contraditório

Eu não sei dizer exatamente o que me levou para aquele peso; provavelmente não se tratou de um único fato, acho que foi uma somatória de coisas que envolviam uma mãe muito jovem, mudanças repentinas na vida, um namoro que trazia sensação de conforto, muita comida, pouco movimento, novos traumas sendo causados e antigos traumas sendo revirados, uma graduação e o cuidado com uma filha pequena. Nessa época, eu não trabalhava; não precisava trabalhar e mesmo assim, me sentia consumida, mas só entendi isso recentemente.

Para além de todos esses fatos, hoje, encontro uma explicação que faz sentido para mim. Durante todo o período em que a Ana mamou em meu peito – eu não me dava conta na época –, ela era totalmente minha, totalmente dependente dos meus cuidados. Eu era como uma deusa, lembra? Apesar do cansaço, apesar de viver desgrenhada, apesar de achar meu corpo horroroso, apesar de não me reconhecer, apesar de não ter tempo, apesar de tudo tudo tudo, eu tinha ali um pequeno ser gerado por mim, crescido de mim, nutrido por mim e isso é muito poderoso. Enquanto ela mamava, eu estava só um pouco acima do peso, uns quatro quilos, nada demais. Depois que a amamentação cessou e que eu passei a ser a mãe de uma bebê que comia comida, que não se alimentava mais de mim, acho que – inconscientemente – comecei a comer mais para tentar suprir o vazio de não ser mais a deusa, a fonte de nutrição. Eu comia na tentativa de preencher novamente o ventre flácido, de dar a ele forma, de fazê-lo crescer outra vez, para me dar a sensação de que eu estava grávida, plena, recheada com uma vida que dependesse de mim de novo. E assim, comendo comida, retomei o peso do final da gravidez, ainda com um acréscimo. Eu não estava gestando um novo bebê; eu estava preenchida de gordura e cocô, comendo todas as minhas angústias e as ambivalências que me faziam sentir muito foda, sem saber, e de ter toda a ciência de que me sentia um lixo.

Talvez todo o excesso de peso tenha sido a forma que meu corpo encontrou de enganar meu inconsciente para que ele ainda acreditasse que era tão incrível quanto no período em que gestou e nutriu e teve a maior sensação de potência que poderia ter em qualquer tempo da vida. A questão é que eu não pensava nisso naquele momento; eu não pensava em nada. Eu só era arrastada pelas demandas todas da minha existência, que iam me levando sem que eu soubesse para onde estava indo ou por onde passaria.

Na maior parte do tempo, não me percebia maior, mas quando tirava fotos, me via enorme, disforme, envelhecida; não sabia quem era aquela pessoa, me sentia um fracasso. Meus humores se alternavam entre me achar gorda e achar que precisava emagrecer, e a certeza de que emagrecer seria impossível e, então, aliviava a angústia com mais comida gostosa, compensando os anos de moedas contadas. Durante todo esse período houve momentos em que fiz dietas malucas, restritas, mas que duravam pouco, e outros em que eu só comia. Nunca comi compulsivamente, mas me alimentava muito mal, me nutria pouco e quase nunca me movimentava. O ciclo era retroalimentado diariamente: comida, culpa, inércia, ansiedade, comida...

Não quero que isso seja uma ode a nada, mas eu estava gorda e infeliz e sequer me dava conta de como me sentia de verdade; só ia levando. Não quero também que a maternidade seja a protagonista do que escrevo. Quero escrever acerca do que gerar fez comigo, com meu corpo, e como me afetou em relação a quem eu era antes de engravidar e depois de ter me tornado mãe. Como eu me enxergava antes e como essa compreensão foi sendo revista, editada e elaborada ao longo de todos esses anos.

A onda de feminismo e de aceitação do corpo foi um evento bem mais recente na minha vida, coisa de sei lá, dez anos para cá, e foi um dos motivos mais importantes para que eu pudesse me enxergar em outras mulheres comuns, para que conseguisse ver beleza nelas e daí percebesse que eu também era bonita. Sentia-me segura. Não tinha vergonha do meu corpo, mas não me sentia confortável nele. A princípio, eu o via, mas não me via nele; mais tarde, eu me reconheci tanto naquele corpo que me habituei a ele, a ponto de aceitá-lo, em termos.

O feminismo me ajudou muito com isso, mas nem ele foi capaz de me salvar das arapucas do patriarcado. Me relacionei com muitas pessoas e até me casei, assim, de papel passado, com um homem que quis ficar comigo, que me escolheu – em uma fase na qual eu ainda tinha o sonho dourado do casamento e de todas as idiotices que os filmes americanos e as novelas nos fazem acreditar. Pensei que não poderia abrir mão da proposta porque aquilo era uma oportunidade (!), uma chance de mostrar para o mundo e para mim mesma que eu era digna de ser amada, apesar de gorda e com a barriga feia (sempre carregando o peso daquela barriga comigo). Conseguem perceber aqui as ambivalências?

O casamento não deu certo por inúmeras razões e se transformou em outra coisa: família por escolha – a relação de amizade é muito mais feliz. Fato é que depois do matrimônio, voltei a me relacionar com homens com os quais me sentia ainda mais livre. Eu transava com a luz acesa, usava biquínis de fio-dental, tomava banhos de mar pelada. Eu não me importava com o que pensavam de mim; se me tomariam como uma mulher sem noção do ridículo ou se fariam qualquer outro juízo parecido. A sensação era ótima, tanto que escrevi a respeito e postei uma foto minha pelada aqui -> sobre o corpo e era genuína a maneira que me sentia naquele momento, mas ela continuou se modificando.

Retomando a linha do tempo, dos meus dezenove anos para o ano da foto que acabei de mencionar, passaram-se dezessete, a idade da filha adolescente, que queria se distanciar de mim a todo custo para que pudesse se ver sem que eu fosse uma sombra de projeções sobre ela. Eu era a mãe culpada – como todas as outras –, que tinha receio de ser rejeitada pela filha, que deixava limites serem extrapolados por medo e que depois tentava recolocá-los de maneira tirânica. Era a mãe onerada, descompensada, perdida, que se via em fim de linha quanto ao que fazer, como agir, como ser mãe? Como não errar? Como acertar sempre? Como não traumatizar? Como eu poderia querer tanto em relação ao segundo eu que, finalmente, eu havia entendido, pela dor, que era um outro? De vontade independente e diversa. Eu mal sabia de mim, juro. Nesse ínterim, nós duas, juntas e mesmo separadas, éramos uma grande amálgama de angústias, desejos, frustrações e ânsias.

 

(continua...)