quando começou, e os dias iam se passando indistinguíveis, fui sendo tomada pela angústia que, em outros momentos, aparecia só nos domingos à noite. os dias eram todos iguais, perdidos no calendário que já não importava mais. só conseguia me dar conta de quantos tinham ficado para trás, quando procurava pelos números. a ansiedade subia pela minha espinha e eu me perguntava se era realmente verdade o que estava acontecendo, o que está acontecendo... cada vez que ouço no rádio ou que vejo em alguma tela a notícia da pandemia, é como se tivesse sido jogada em um filme apocalíptico, em que o fim que nos assola não é tão emocionante e cheio de ação como na ficção, mas é tão aterrorizante quanto os piores filmes de terror.
tenho chorado muito nos últimos dias vendo a vulgarização da morte, da asfixia, do esforço coletivo de um lado, para salvar vidas, e da insanidade, de outro, que cegamente acredita na volta da "normalidade" de pouco tempo atrás. sinto raiva, tristeza e entorpecimento; sinto que a vida está em suspensão e que estamos todos, subitamente, diante de nós mesmos, em frente a um espelho que reflete a nossa humanidade com tudo o que há de melhor e de pior nela. de repente, estamos sendo forçados a lidar com a perda abrupta, com a falta de escapatória, com a dor e com a resignação de que nada mais será como antes; ou será?
inesperadamente, temos que lidar com o invisível, temos que nos proteger do que não vemos, como se um fantasma nos assombrasse ou como se deus - o onisciente, onipotente e onipresente -, estivesse a nossa volta para nos castigar por sermos maus e é o que somos. valorizamos a tradição da economia, a convenção de que um pedaço de papel, ao qual atribuímos valor, tem mais importância do que vidas. vidas! vidas que parecem ainda mais preciosas quando estão sobre macas, entubadas, lutando para continuar existindo em desespero, ao lado de corpos inertes que há pouco sofriam igualmente, e que agora precisam ser ensacados para evitar a contaminação dos demais, mas que continuam ali, ao lado dos que ainda agonizam, buscando o sopro da melhora.
que dor tudo isso; que dor não poder apaziguar a situação; que dor pelas perdas, pelas pessoas que viram números, pelas pessoas que não têm a possibilidade de escolher se protegerem porque são obrigadas a saírem de suas casas para prover o sustento dos seus e, assim, tentar sobreviver; pela imbecilidade dos cegos, pela cretinice de muitos dos que nos governam e representam, pela má-fé dos que não acreditam na praga. que dor pensar que não sabemos o que nos aguarda, mas que o pior ainda está por vir.