Noite dos diabos. Deito, rolo de um lado para o outro; tudo perturba. A criança que se move e faz barulho, os gatos aos pés da cama, brincando com a pequena boneca de cabelos espigados e batendo-a contra o assoalho, o calor do quarto, a quentura das cobertas que preciso usar para me sentir protegida da noite.
Na cabeça tudo vem. Tento me focar na minha respiração, que mais parece a de um animal asmático; inspiro, prendo, solto, prendo e faço de novo umas três vezes, mas os pensamentos me invadem. Penso que tenho de marcar uma consulta, penso que tenho de arrumar a casa, penso que tenho de escrever e daí penso penso na dor, penso na vida. Pensei tanto que não me apercebi quando o sono finalmente veio, uns quarenta minutos depois.
Acordo e estendo a roupa da máquina; resolvo colocar ordem no pardieiro que se tornou minha casa. Começo sempre pelas roupas, depois arrumo os livros de volta no lugar, esvazio os cinzeiros, guardo os pares de sapatos. Pego uma sacola plástica e saio pela casa recolhendo o lixo que se deposita por todos os cômodos; guardo papéis, coloco a bateria de volta na câmera fotográfica, troco a roupa de cama e tiro o pó dos móveis e objetos.
Daí, então, passo o aspirador e a vassoura em todo o apartamento, jogo o limpador cheiroso no chão e passo o pano, uma, duas vezes. Vou para o meu pesadelo maior, a cozinha. Há louça lá de duas semanas; todos os copos que tenho estão na pia e a sujeira já nem fede mais porque se liquefez. Até os vermes da lixeira da pia já morreram, secaram, reencarnaram e morreram de novo, tanto foi o tempo de dor.
Abro a geladeira, e jogo fora comidas estragadas, cristalizadas com suas colônias de bolor coloridas. Deixo-a limpa e lavo a panela de arroz que jazia no frio desde o último dia em que coloquei uma cobra dentro da minha casa. Ela arrastou-se por tudo, comeu e bebeu comigo e depois me deu o bote, mas é o que cobras fazem.
Limpo o chão, os vômitos secos de gatos mortos de fome. Limpo suas fezes na caixa de areia. Limpo minhas privadas, junto os cabelos e pentelhos do chão, tiro o ensebado dos vidros dos boxes, limpo as pias com restos de pasta de dentes e jogo fora a escova que não será mais usada.
Faço tudo isso expurgando a mim mesma, tirando de mim toda a sujeira que poderia haver, limpando minha casa e minha mente. Tentando desgastar a dor de existir com a rotina, com o mecanicismo, com o ocupar para não pensar, ocupar para fazer sentido, ocupar para poder ser.
Dói ainda, é fato, mas de tanto repetir isso, acabo por me imiscuir no meu todo. Sou meu corpo, minha mente, minha casa. E as coisas finalmente se ajeitam, até que estejam novamente uma bagunça e seja necessário mais um esforço demandante de movimento, que me tire da letargia e me lembre que mesmo que tudo pareça parado, a movimentação é contínua.