Dezenove anos atrás, no dia de hoje, eu recebia a notícia de que meu pai tinha morrido. Ele não tinha morrido em um acidente, não tinha morrido em decorrência de uma doença. Ele se matou. Eu era uma adolescente. Não tínhamos convívio; eu o via nas férias, quando vinha de outra cidade, e passava mais tempo com a minha madrasta do que com ele, porque ele trabalhava o dia todo. Eu o esperava chegar do trabalho para o almoço, enquanto brincava com o papagaio enjaulado do tio Orlando na garagem dele. Eu passava o tempo enroscada na linda estátua nua, em tamanho natural, que havia no jardim desse mesmo tio. Contava as grandes lajotas no terreno da Bocaiúva. Eu olhava as árvores, as formigas e a grama. Quando ele finalmente aparecia, subia o caminho e vinha assobiando, aquele assobio que meu irmão mais velho faz igual, e que eu também faço de vez em quando. O seu jeito de andar, o rubor da face no calor de dezembro. Ele entrava em casa e a primeira coisa que fazia era lavar as mãos na pia bonita de latão dourado e reluzente do lavabo. Ele comia cebolinhas em conserva, as adorava, eu me lembro. Depois do almoço, ele descansava brevemente no quarto, escovava os dentes e voltava para o trabalho, e eu o veria novamente só quando o sol começasse a se por, nesses fins de tarde avermelhados do verão.
As lembranças que tenho dele não são tantas quanto eu gostaria, mas eu gosto de associá-lo às luzes coloridas de natal na árvore central, na entrada do terreno, porque uma noite saímos para passear a pé e passamos por ela. Cada vez que me lembro, volto pra lá.
Esse homem que não conheci de verdade sofreu a vida toda, não o tempo todo, mas a dor e a sombra estiveram ali, à sua espreita. No dia em que ele morreu, tive um sonho, e mesmo sem entender o que ele queria dizer - mais tarde, no mesmo dia, eu entendi -, acredito ter sentido o mesmo que ele quando foi embora: alívio. Acho que meu sonho e sua morte se juntaram em um momento único de conexão, que nunca mais se repetirá. As dores e o vazio que carregamos dentro de nós às vezes podem ser implacáveis. Depois do suicídio dele, me encantei pela morte. Fiquei obcecada por ela. Assistia a vídeos e vídeos de pessoas que se matavam de todas as maneiras e pensava: qual é o grau de sofrimento que leva uma pessoa a abdicar da vida? Não acho, de forma alguma que quem se mata é um covarde. Acho que são bravos, corajosos, mas também tristes e vazios. O que nos leva ao fim é a falta de perspectiva, a impossibilidade de ver caminhos, saídas, razões para ficar.
A angústia e a falta do que não se sabe já me fizeram titubear em momentos de desespero. A apatia, a letargia, a impotência diante da sombra que nos suga diariamente. Quando se cai no poço, quando a vibração fica baixa, quando a energia se esvai e você sente que nada mesmo vale a pena porque tudo um dia acaba. Muitos dizem que é por isso que ela precisa ser vivida, porque tem fim, a vida.
Meu pai nunca disse que me amava. Ele foi embora me devendo isso. Não devam amor a quem vocês amam, porque nunca se sabe. Frequentemente sonho com esse homem; sonho com a sua casa, a casa onde vivi meus primeiros anos. Lá, sempre quero entrar em seu quarto, quero mexer nas suas coisas, quero bisbilhotar sua vida, quero conhecê-lo. Na maior parte das vezes, não tenho acesso, fico frustrada. O mesmo acontece com a cozinha do térreo, onde ele se matou. Quero entrar lá, mas os espaços se modificam nos sonhos; não é mais uma cozinha ou há uma porta trancada. Nunca posso entrar! Quero entrar! Quero entender! A sensação é sempre de assombro, de paredes que me olham, que cochicham pelas minhas costas. São pequenas portas seladas e eu nunca sei o que elas escondem por detrás de si.
Apesar disso, já tivemos lindos encontros nos meus sonhos. Em um deles, em frente à casa do tio Toninho, em uma festa aberta, cheia de pessoas, ele aparece no meio da multidão e me abraça. Eu sei que ele está morto e só eu o enxergo. Que abraço gostoso, pai, que eu nunca te dei sabendo o que sei hoje de ti. Só depois da tua morte foi que te conheci um pouco mais. A Lili me falou que você me amava, e eu acreditei. A Adri me deu algumas fotos, minhas e do Felipe, de quando éramos pequenos, que estavam em uma de suas cadernetas. A Simone me deu um de seus pijamas e ganhei de presente do Calo um de seus suéteres, bonito, branco, elegante, que uso com gosto em dias frios de inverno. Relembramos sua vida quando nos encontramos e rimos de suas histórias engraçadas, assim você continua vivendo.
Carrego os seus genes tristes e os genes tristes de minha mãe. Não digo que seja uma maldição porque não foi de propósito, mas a sombra que vivia em você também vive um pouco em mim e ela me bate forte em alguns dias. Dói. O exemplo da sua morte voluntária me obriga a viver, mas quando a sombra cresce, há dias em que eu queria nunca ter existido.
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