no meio do tanto de alienação em que me enfio, na mesma medida que sinto, me entorpeço com o irrelevante. acontece que ainda assim, sinto bastante. talvez fuja do sentir correndo pra rolar os dedos na tela, mas as sessões de análise não me deixam mentir que sinto e choro até pelo bem-estar da tartaruga. sinto porque acho que não lhe dei a melhor vida, a melhor escolha, o melhor espaço e me sinto um deus tirânico por determinar como ela deve viver sem ter certeza absoluta nem do que é mais adequado pra mim mesma. sinto porque o mundo é injusto e comandado por poucos filhos da puta que tomam as decisões mais cruéis e sinto porque parece que a tendência é sempre piorar. sinto e vou dando meu jeito de sentir de outro jeito, de sentir de leve, de sentir distraída, de sentir meio tentando deixar pra lá.
já tem tanto acontecendo e ainda vou sentir a dor alheia? sim, porque sentimento a gente não racionaliza, a gente sente. quando fiquei sabendo da notícia, um pouquinho do chão da cozinha se abriu porque é assim que acontece quando é com a gente, só que o buraco é bem grande e a gente cai inteira dentro dele. o chão da minha cozinha abriu só um pouquinho e eu pude me ver lá dentro, quando tinha 16 anos e recebi essa notícia pra mim. mas na terça-feira a notícia não era pra mim, eu era só uma espectadora da dor alheia, mas uma espectadora familiar (a minha notícia veio em uma segunda-feira).
me dói porque eu pensei primeiro nela, que ficou, porque eu também fiquei quando ele decidiu ir embora. nossos pais fazem escolhas difíceis todos os dias porque ser pai/mãe é por muito tempo decidir pelos filhos, para o bem e para o mal, e mesmo que a escolha seja deles para eles, ah, eles não se lembraram de que a morte escolhida sempre recai sobre quem fica como se o corpo suicidado caísse sobre as nossas cabeças e respingasse seus pedaços em tudo à sua volta? eu senti primeiro por ela porque eu já fui ela, porque eu poderia ser a mãe dela e porque ela poderia ser a minha filha. eu senti primeiro por ela porque ela ficou, porque é ela quem tem que lidar com a vida adiante sem contorno. por um tempo a gente fica sem contorno.
quando a gente tem a certeza de que eles ainda são carne viva, essa certeza gera um contorno invisível em volta de nós. a gente sabe um pouco quem é porque eles estão por aí no mundo. quando a perda se dá, seja da forma que for, esse contorno some por um tempo. é como andar descoberto por aí quando todos os dias são de ventania e você está pelada pela rua. quando a gente tem acolhimento, se sente um pouco coberta, contornada, quentinha. mas logo que a gente se percebe sozinha de novo, vê que está sem contorno. é como ter o abismo na ponta dos pés o tempo todo. é como a sensação de frio na boca do estômago quando você percebe que nunca mais vai ver aquela pessoa. é como um peso no coração que faz ele bater devagar de tanta dor e de tristeza por tudo o que não foi dito e nem nunca será.
a gente perde a fina película da segurança de que há alguém no mundo por nós, e até houve e até há outras pessoas, mas essa borda nunca mais será como antes. a dor faz com que nossos novos contornos se deem na gente mesmo, na altura da pele; me rasgam, me remendo de mim mesma e me bordo diferente. margeio um bordado estranho pra enfeitar minha cicatriz. crio uma nova fibra, por cima do que havia antes, por cima do vazio que é preenchido com o estofo de tudo o que sinto.
o vazio é fugidio e fica entre mim e o contorno, como a fáscia que recobre tudo por dentro dos nossos tecidos. sou preenchida pelo vazio. sou esvaziada pela perda. leva tempo e não vai passar; a gente só aprende a lidar com a dor e se distrai dela lavando a louça e sentindo a dor dos outros de vez em quando.